Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
sociedade

As origens apocalípticas do Vale do Silício

 |

When logic and proportion 

Have fallen sloppy dead 

And the White Knight is talking backwards 

And the Red Queen's off with her head 

Remember what the dormouse said 

Feed your head 

Jefferson Airplane, “White Rabbit”. 


Uma das experiências mais humilhantes que alguém pode ter na sua breve passagem por esse vale de lágrimas chamado Planeta Terra é a de ser despedido do seu emprego — e o pior: sem saber o motivo. Pois foi o que aconteceu com Franklin Foer, filho dileto de uma família de intelectuais progressistas (seu irmão mais velho é o consagrado romancista Jonathan Safran Foer), quando, em um belo dia de dezembro de 2014, ele foi chamado para conversar com o seu patrão, o minimagnata da tecnologia Chris Hughes, cujo maior feito foi ser um dos terceiros testículos de Mark Zuckerberg na criação do Facebook. Naquela época era também o mecenas que bancava financeiramente o estado depauperado da revista The New Republic, publicação de esquerda editada por Foer com o zelo de uma vanguarda que enfrentava a mais dura das cruzadas: a do fim do jornalismo tradicional. 

Hughes tinha menos de 30 anos quando ele resolveu revitalizar The New Republic, que já tinha sido esquecida pelo público normal, exceto por um ou dois membros do status quo da grande mídia. Foer já queria dar uma sobrevida à revista em 2010, numa busca desesperada por alguém que a patrocinasse, mas daí ele foi demitido por uma administração que não entendia a sua estratégia e só voltaria à redação dois anos depois, graças aos pedidos de Hughes, agora no comando. 

Obscurecido pelo sucesso de seu comparsa Zuckerberg, Hughes queria seguir os passos de um Jeff Bezos, o fundador da Amazon, que comprou o jornal The Washington Post em 2013 por apenas 450 milhões de dólares (uma bagatela para uma das marcas mais famosas do jornalismo americano). Sua chance de ir à ribalta foi adquirir The New Republic – e contratar um jornalista progressista que desse o lustro de prestígio para coordenar os textos de escritores, intelectuais e jornalistas que realmente acreditam saber o que está acontecendo no mundo. 

Foer achava que conhecia do riscado — até que, no meio do seu novo reinado, ele descobriu que Hughes estava descontente com o fato de que os leitores da revista não atraíam renda suficiente, muito menos os anúncios das grandes empresas que antes eram a salvação da lavoura de qualquer publicação editorial. 

O minimagnata de Silicon Valley – aquele lugar ensolarado da Califórnia que é inconscientemente dominado pela lei de Moore (calma, leitor, você saberá o que ela significa dentro de instantes) – queria mais, muito mais. Para ele, o importante não era mais a qualidade e a apuração do texto (como acreditava Foer). Era como os algoritmos de cada publicação e de cada anúncio levavam o leitor comum a dar seus dados pessoais para depois comercializá-los de uma tal forma que só Hughes sabia fazer. 

Algoritmo. Essa palavra não fazia parte do vocabulário altamente sofisticado de Foer — e ele só foi tomar conhecimento de que ela tinha alguma relação com o mundo do jornalismo quando finalmente Hughes revelou suas intenções ao comprar a The New Republic. O minimagnata não queria saber de fatos. Não queria saber de texto. Não queria saber de informações checadas de forma rigorosa. Queria saber apenas de algoritmos, das relações aparentemente aleatórias deles com os dados que os leitores traziam para o site da publicação — e como ele, Hughes, teria o controle sobre esses dados e transformá-los em dinheiro. Nada mais. 

Desde o início dessa estranha parceria, quando ficou claro para Foer qual era a verdadeira meta de Hughes, o editor não aceitou o acordo. Mas continuou na revista porque, afinal de contas, um intelectual sempre acha que pode convencer o seu patrão. Não foi o que aconteceu, é claro. The New Republic não atraía mais leitores porque Foer não percebia que a pauta progressista era completamente desinteressante para a maioria da sociedade americana. Como se isso não bastasse, Chris Hughes também não entendia que o tal jornalismo de qualidade não se faz com cálculos e algoritmos — e sim com uma certa independência moral que a grande mídia se esquecera de recuperar desde a eleição de Barack Obama, o Messias do momento. 

Mesmo assim, Foer não sabia o motivo de Hughes dispensá-lo sem nenhuma solenidade — e depois contratar em seu lugar Gabriel Snyder, editor do site Gawker, famoso pelo seu jornalismo baseado não só em – olhem só! — algoritmos, mas também em clickbaits – as manchetes feitas especialmente para chamar a atenção dos leitores incautos, recheadas de dados picantes sobre celebridades. 

É claro que, naquele dia de dezembro de 2014, nenhum dos dois saberia que, menos de um ano e meio depois, o Gawker teria de pedir falência porque resolveu brincar com fogo — leia-se: divulgar a homossexualidade de ninguém menos que Peter Thiel, megamagnata de Silicon Valley que também era um modelo de vida para o minimagnata Chris Hughes (e que, coincidentemente, foi o investidor-anjo que impulsionou o crescimento definitivo do Facebook). 

Notório por ser uma pessoa paranoica a respeito da sua vida particular, tão paranoica que, ao saber da revelação pública feita pelo Gawker, Thiel financiou silenciosamente, durante um ano, a ação judicial que o lutador Hulk Hogan movia contra o site, quando este também resolveu novamente brincar com fogo e lançar na internet um vídeo que mostrava suas estripulias sexuais. A união de Hogan e Thiel foi tão insólita que deu o que tinha de dar: na vitória jurídica sobre o Gawker, uma indenização milionária que provocou a sua falência — e o fim do jornalismo como a turma de Silicon Valley pensava conhecer. 

Monopólios do espírito

Neste meio tempo, Franklin Foer resolveu fazer o que todo o jornalista metido a intelectual faz ao ser despedido do seu belo emprego e quer entender os motivos que o levaram à sua queda: escrever um livro. O resultado foi “World Without Mind – The Existential Threat of Big Tech” (“Mundo sem espírito — a ameaça existencial das grandes empresas de tecnologia”), publicado no final de 2017, um relato não só das suas experiências com o mundo particular onde vivia Chris Hughes, mas também uma tentativa de compreender como o “povo eleito” de Silicon Valley transformou o mundo que ele julgava ser o seu. 

Ele ataca as três grandes companhias que mantêm a fama do Vale do Silício — a ferramenta de buscas Google, a rede social Facebook e a loja de varejo virtual Amazon, respectivamente comandadas por seus “líderes-mecenas-messias-generais-estrategistas-ungidos” Sergey Bin e Larry Page (depois Eric Schmidt), Mark Zuckerberg e Jeff Bezos. (A Apple de Steve Jobs, gerida posteriormente por Tim Cook, fica relegada em uma análise bem superficial, mas resolveremos esta lacuna neste texto). 

Para Foer, essas três corporações — apelidadas de Big Tech pela mídia, sempre ávida a classificar o que jamais pode ser classificado — pretendem mudar não só a maneira como nos relacionamos com a tecnologia, e sim sobretudo alterar a natureza humana tal como a conhecemos.

Contudo, é mais do que isso: essas empresas querem nos impor uma visão sobre o ser humano, sem o nosso consentimento. Apesar de se considerarem empresas de teor libertário, as Big Tech desejam, na verdade, nos forçar a crer que somos seres fundamentalmente sociais, nascidos para uma existência especificamente coletiva, sem nenhuma amostra de individualidade, dependentes de uma informação nascida apenas nas redes (networks), em um mundo atomizado, onde a tecnologia soberana contribui para a administração e a burocratização dos nossos desejos, sem se importar se prejudicarão a cadeia inteira da produção cultural do Ocidente em função de um lucro inatingível, sucateando assim as atividades dos intelectuais, dos escritores independentes, dos jornalistas investigativos e dos romancistas que sempre lutaram para manter a sua sobrevivência em uma economia que se transformou sem dar nenhum aviso. 

Se você achou a frase acima longa e confusa — então, desculpem-me, mas ela apenas retrata o universo no qual vivemos e fique com um piparote meu na testa, leitor. Dentro deste cosmos particular que Silicon Valley criou para todos nós, o Google manipula o nosso senso de hierarquia de informações, o Facebook usa os algoritmos — lembrem-se, a palavra mais querida no dicionário de Chris Hughes — para nos atrair a relacionamentos sociais que jamais faríamos no mundo real, além de coordenar a nossa escolha de notícias conforme nossos preconceitos tão bem alimentados, algo que a Amazon também provoca quando manipula preços, tornando-os atrativos aos consumidores, mas prejudicando depois os produtores de um mercado que já não tem mais a chance de expandir algo tão precário — no caso, a propriedade intelectual (vulgo copyright). 

Essas companhias — que nos remetem às grandes empresas da Era Dourada americana (a Gilded Age) do início do século XX pelo ritmo implacável e desumano de seus empreendimentos — formam os “monopólios do espírito”. Ou melhor: é “o espírito do monopólio”, filhote da unidade metafísica, incapaz de entender que o mundo real é plural e variado, que se torna um anseio quase religioso, no qual a concentração de poder feita por essas empresas é idealizada como se fosse um bem social urgente, um fundamento para uma harmonia global que deve ser posta como a única condição para o desenvolvimento da humanidade. 

Há um outro nome para tudo isso descrito acima: loucura. Como este tipo de insanidade tornou-se a nova normalidade é algo que deve ser analisado minuciosamente para que não entremos em uma nova era da “servidão voluntária”. É o que faremos a seguir. 

Coelho Branco

Franklin Foer localiza a origem desta tendência de controle e poder em algo surpreendente para quem ficou hibernado em estado criogênico nas últimas cinco décadas: na contracultura hippie dos anos 1960. 

Naquela época, não houve uma canção que representou melhor a união entre os especialistas de tecnologia e os rebeldes da contracultura do que “White Rabbit”, da banda norte-americana Jefferson Airplane. 

Lançada em 1967, com versos inspirados na famosa obra do inglês Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas (1865), a referência óbvia do seu título é a do bichinho que nos transporta a um mundo subterrâneo onde o uso da lógica e da razão humanas leva-nos a um retrato de um caos que, na verdade, é apenas aparente para quem não percebe a estrutura total da realidade; para quem tem olhos e consegue ver o que ninguém mais quer ver, este caos é um disfarce que oculta a verdadeira ordem, uma outra realidade, na qual os homens que brincam no tabuleiro de xadrez não querem que você perceba sua semelhança com a pequena Alice, tomar a pílula que o levaria ao risco de enfrentar nossas emoções reprimidas e enfim libertar-se das prisões da mente. 

A ordem do dia para esses novos iluminados era a ampliação da consciência. E não há objeto que simbolizasse perfeitamente esse novo processo mental do que aquilo que foi gestado aos poucos nos anos 1960 – a criação do computador pessoal (ou PC, para os íntimos). 

Em “What the Dormhouse Said: How the 60s Counterculture Shaped the Personal Computer Industry”, John Markoff conta que, ao realizar entrevistas para o seu livro, foi conversar com ninguém menos que Steve Jobs. Ele estava particularmente de mau humor naquele dia e deu respostas terríveis, exceto em um momento: foi quando ele mostrou a Markovitz a página de abertura do programa iTunes, recentemente lançado no mercado. Sua entrada era repleta de padrões de cores alucinadas, dançantes – e elas pulsavam na tela do computador Macintosh de Jobs. O jornalista percebeu a emoção nos olhos do dono da Apple. “Isto me lembra da minha juventude”, disse Jobs. 

Aproveitando o momento, Markoff disse uma lista de nomes de pessoas que fizeram fama em Silicon Valley e que assumiram publicamente o consumo de drogas psicodélicas nos anos 1960. Jobs sorriu ainda mais e continuou a afirmar que ter experimentado LSD (ácido lisérgico) foi uma das duas ou três coisas mais importantes que ele fez em sua vida — e mais: como as outras pessoas não tiveram essas experiencias alucinógenas, não conseguiam entendê-lo corretamente, o que o fez sempre se sentir como um pária no meio corporativo onde era agora um líder, graças às suas raízes na contracultura. 

Nova Era

Steve Jobs era um filho pródigo de um movimento que atualmente chamamos de “Nova Era”. Trata-se de um termo que, segundo seus seguidores mais fanáticos, indicaria uma terceira era de plenitude, a chamada Era de Aquário, na qual, por meio de uma experiência distorcida das religiões orientais (em especial, o budismo), eles procurariam a integração da personalidade na natureza, dissolvendo assim a desigualdade do mundo em uma liberdade da consciência individual que então redimiria toda a raça humana. 

Essa “nova era” é, portanto, uma experiência religiosa de segunda mão, um decalque da tentativa de querer ampliar a consciência e que, historicamente, vem muito antes da contracultura dos anos 1960. Também aparece no mundo da tecnologia, a partir dos anos 1940, quando dois laboratórios de informática, com pesquisas de desenvolvimento financiadas pelo governo americano, foram fundados ao mesmo tempo, justamente na Universidade de Stanford.

Apesar da semelhança local, tinham filosofias diferentes: a primeira era a de Douglas Engenlbart, dedicada ao conceito de que o computador aumentaria o poder da mente humana; e a segunda era de John McCarthy, que tinha a meta de fazer o computador substituir nada mais nada menos que a inteligência humana. 

Nada disso teria acontecido se o técnico de informática George Moore, um dos fundadores da Intel (junto com Bob Noyce), não tivesse descoberto a lei que depois seria batizada em seu nome (não disse que cumpriríamos a nossa promessa, leitor?). Ela afirmava o seguinte: a redução pela metade do tamanho dos transistores de uma máquina quadruplicaria a área dos circuitos de um computador — o que levaria ao aumento da capacidade de informação armazenada.

Essa simples lei, somada a um estilo de administração que Noyce adotou inspirado na comunidade puritana da sua cidade-natal, Grinnell, em Iowa, na qual levava em conta o espírito comunitário e não o modo corporativo de realizar negócios, foi a principal inspiração para a comunidade nascida próxima da área da cidade de San Francisco e que, a partir dos anos 1970, seria conhecida pelo nome de Silicon Valley (justamente porque os transistores em miniatura eram feitos desse tipo de material, o que os tornava mais duráveis e maleáveis). 

Entretanto, isto era apenas o início da era do “computador pessoal” – apesar de que a da ampliação da consciência já ia de vento em popa. Em todo caso, não seria um exagero afirmar que uma coisa estava intimamente relacionada à outra. 

O computador ainda era um monstrengo que apenas computava os dados em um rolo de papel, igual a um relógio de ponto; contudo, as pesquisas de Engelbart e McCarthy começaram a levar às últimas consequências as ideias centrais da interatividade com a informação e com o controle individual a respeito de quais dados o usuário da máquina poderia manipular. 

Eram ideias que se opunham ao modo como o computador era antes visto. 

No passado, ele era o símbolo das empresas e das instituições burocráticas, ansiosas apenas para determinar quem teria o controle desses objetos; agora, pouco a pouco, o computador tornava-se o símbolo da expressão individual e da libertação humana. 

Esses dois fatores – o ambiente a favor da ampliação da consciência e a criação do computador pessoal – eram um estopim a mais na reviravolta cultural que os EUA viviam nos anos 1960. Além da luta dos direitos civis, o rock psicodélico, a música folk, o assassinato de John Kennedy, a guerra do Vietnam, houve também, é claro, o surgimento de drogas psicodélicas, como o LSD, que era para ser um experimento químico e tornou-se uma droga recreativa, cuja meta era – adivinhem! – abrir “as portas da percepção”, segundo a famosa (e já batida) frase de Aldous Huxley. 

Catálogo do mundo

Stewart Brand foi um dos primeiros sujeitos que percebeu a conexão oculta entre as drogas experimentais e o surgimento da nova tecnologia. Nos anos posteriores, ele sempre disse aos outros que devia muito à contracultura hippie, pois ela seria a principal inspiração para a ideia engenhosa (e incrivelmente simples) de um produto que depois marcaria a história do computador pessoal: o Whole Earth Catalog (algo como “O Catálogo de Toda a Terra”). 

Publicado em 1968, era um livro que também era um almanaque de instrumentos e invenções, que apenas descrevia os objetos em seus detalhes essenciais, sugerindo ao leitor outros instrumentos afins ou complementares. Sim, se você pensou que o Whole Earth Catalog antecipava o que, no futuro, seria a filosofia e o método de pesquisa do Google – parabéns, acertou na mosca. Assim como aconteceria na empresa de Larry Page e Sergey Bin, Brand realmente acreditava, com o Whole Earth Catalog, que unificaria o mundo inteiro, por meio da democracia e o poder descentralizado que então era incipiente em Silicon Valley, com o adicional de que, nesta sua visão utópica, a tecnologia estaria a serviço das revoluções políticas e protegendo a ecologia ambiental. 

Obviamente, Brand era um notório usuário de LSD e, em suas viagens lisérgicas, alegava ter visões de um mundo interconectado onde, de certa forma, prenunciava o espaço cibernético — e não à toa que, em seus textos, ele criou dois termos que hoje são extremamente comuns na nossa cultura: “computador pessoal” e “hackear” (que vem de to hack; numa tradução aproximada, “invadir”).

O nascimento da internet

Enquanto isso, em 1969, a área da cidade de São Francisco — que abrigava Palo Alto, a Universidade de Stanford e o Vale do Silício — tornava-se um reduto de investimentos pesados do governo americano no assunto de tecnologia, em especial junto a um projeto elaborado cinco anos antes pelo pesquisador Paul Baran para o think tank RAND Corporation que, para combater o desenvolvimento extremamente rápido da União Soviética, defendeu um modelo de organização de informações que jamais poderia ser centralizado, com múltiplos componentes conectados em elos fraquíssimos, numa distribuição aparentemente caótica. Seu nome? Advanced Research Projects Agency Network (“Pesquisa Avançada para a Agência de Projetos e Redes”), depois conhecida como ARPANET. 

No dia 29 de outubro de 1969, a ARPANET foi posta em prática pela primeira vez quando um computador “conversou” com outro computador quando enviou-se uma mensagem incompleta por meio do modelo estruturado por Baran, entre as máquinas do Instituto de Pesquisas da Universidade de Stanford e da Universidade da Califórnia em Los Angeles. Para quem ainda não percebeu, este também foi o início da Internet, que só se tornou possível porque este tipo de modelo de transmissão de informação foi fomentado por um grupo de desajustados, mas peritos em precisão técnica, que tinha um único desejo — o de mudar o mundo por meio desta nova revelação que se tornou a tecnologia, mesmo que fosse às custas dos próprios cérebros derretidos pelas drogas. (Como diria quem sobreviveu àqueles anos, “se você pode se lembrar da década de 1960, é porque não estava lá”.) 

Não foi por acaso que este foi um dos momentos mais importantes na vida de alguém como Steve Jobs. Ele via a si mesmo não apenas como um produto da contracultura. Era um peregrino que tinha atravessado os anos 1960 como se fossem um verdadeiro percurso espiritual — e, neste ponto, sua viagem para a Índia em busca de iluminação pessoal adquire, sem dúvida, um sentido cristalino, junto com a dedicação excessiva a uma prática radical que depois alteraria a sua própria saúde: a meditação zen, feita em conjunto com uma aplicação extrema do vegetarianismo. 

Brand também tinha sido uma grande inspiração para Jobs. O Whole Earth Catalog influenciou a perspectiva da integração tecnológica que depois seria uma das marcas da Apple e, no caso da fusão da ideia de um computador pessoal com a da contracultura, foi a convergência desses dois fatores que impulsionou a amizade entre Jobs e Steve Wozniack, quando ambos criaram um clube de amigos chamado Homebrew Computer Club que, anos depois, seria o germe do que saberíamos ser a empresa responsável pelo modelo supremo dos computadores pessoais: o Macintosh. 

Como qualquer empresa que faz parte do imaginário de Silicon Valley, seja o Facebook, o Google ou a Amazon, a história da criação de uma companhia como a Apple é similar a de um culto composto de seus mitos fundadores, com seus respectivos líderes que devem ser seguidos a qualquer custo — e o mesmo ocorre com toda a indústria do computador pessoal.

Nada disso, entretanto, nos impede de perceber um paradoxo cultural que acentua ainda mais a influência da ideologia utópica da Nova Era no mundo particular desses magnatas da tecnologia. Enquanto essas pessoas querem liberar o indivíduo e ampliar a consciência humana, também o aprisionam na crença de que essa mesma liberdade não precisa de um mínimo de ordem. Por incrível que pareça, os empreendedores de Silicon Valley não conseguem perceber que, sem essa tal de “ordem”, jamais poderiam construir suas próprias empresas. 

Dentro dessa contradição intrínseca entre suas ações e seus pensamentos — aquilo que o grande Thomas Pynchon chamaria de “inherent vice” (vício inerente) —, tiveram que criar a noção de que eram deuses neste mundo paralelo. Assim, quem trabalha para eles não são parceiros. São asseclas. Seguidores. Fanáticos. E para transformar essa pseudo-religião em uma religião minimamente verdadeira, eles precisavam de algo muito mais eficaz. Precisavam de um rito, de uma liturgia. 

Religião da tecnologia

Eis aqui o erro fundamental de Franklin Foer na análise das Big Tech em “World Without Mind”. Não se trata apenas de um problema religioso, espiritual ou de mentalidade utópica. As raízes das corporações que tomaram conta de Silicon Valley – e consequentemente, o mundo todo – estão naquilo que o scholar Richard Landes chama de “expectativa apocalíptica”. 

A maioria das pessoas do nosso tempo acredita que tecnologia e apocalipse não têm nenhuma relação, uma vez que a primeira simboliza nada mais nada menos que o progresso humano, enquanto o segundo é a marca principal do retrocesso que a religião teria provocado nas nossas mentes. Esta é uma afirmação extremamente equivocada, para dizer o mínimo. Na verdade, o discurso apocalíptico é o fundamento da “religião da tecnologia” (a expressão é de David Noble em um notável livro de mesmo título) — e ter isto em mente é o primeiro passo para entender corretamente as implicações da visão de mundo totalitária que Silicon Valley quer impor a todos nós. 

Na explicação de Landes, encontrada no livro “Heaven on Earth”, o discurso e a expectativa apocalíptica sempre começam com o nosso modo de percebermos o tempo – que, no caso, ainda guarda uma forte influência da chamada “filosofia da História” de Santo Agostinho, descrita especificamente em seu tratado “A Cidade de Deus”.

Apesar da sua reflexão ser a resposta mais responsável já feita sobre o fato de que ninguém sabe o que acontecerá quando o Fim dos Tempos finalmente chegar, pois ele pode ocorrer a qualquer momento, sem nenhum aviso, ainda assim Agostinho moldou a nossa consciência — e, em especial, a consciência daqueles que se autodenominam “intelectuais” — de uma maneira tão paradoxal que, ao contrário do que o bispo de Hipona pretendia, aprendemos a suspender nossos juízos morais e a evitar decisões que envolvam uma distinção nítida entre o Bem e o Mal. 

De acordo com o autor de “Confissões”, vivemos no saeculum, o mundo do tempo e do espaço, da história e dos seus sofrimentos, onde vivemos a existência humana encarnada. Este saeculum é um corpus permixtum, um mundo extremamente confuso e permissivo onde o Bem e o Mal estão misturados, no qual até mesmo uma instituição como a Igreja Católica compartilhava da confusão entre esses dois. O peso deste mundo é evidente quando nos deparamos com a inveja, a libido dominandi (vontade de poder) e a traição dos nossos semelhantes, o que parece nos condenar a uma vida de constante decepção. 

Apesar de nunca afirmar quando exatamente testemunharemos o Fim dos Tempos, Agostinho diz que ele irá acontecer algum dia, com absoluta certeza, porque, ora, as Escrituras previram isso no Apocalipse de São João. Até lá, somos obrigados a viver com o Mal, representados sobretudo pela violência e pela injustiça. Contudo, Agostinho também acreditava na providência divina – ou seja, Deus poderia intervir quando quisesse para impedir o crescimento do Mal. 

Com a passagem do mundo medieval para o moderno, a crença numa providência divina perdeu força na psique do homem, e a teodiceia — a justificativa na existência de um Deus bom e caridoso em um cosmos dominado pela iniquidade — foi sendo devidamente questionada até chegarmos a um momento que nada mais sobrou exceto o “desencantamento” que soçobrou nos nossos corações. 

Tempo apocalíptico

Isso não impediu que a expectativa apocalíptica continuasse em nossas mentes por um bom tempo, transformando-se assim numa espécie de “transcrição oculta” (hidden transcript) no comportamento cotidiano, em especial nas áreas da cultura, da política e da tecnologia. 

Nesta percepção dividida entre o “tempo normal” que pensamos viver e o “tempo apocalíptico” que tomou conta de nosso inconsciente, também descobrimos que a maioria das pessoas opera entre uma “transcrição pública” e outra “oculta”. A primeira seria aquele tipo de atitude em que tentamos aceitar a predominância da ordem social e a segunda seria aquelas narrativas jamais articuladas de forma explícita, em que nós apenas falamos de modo sussurrado e anônimo, igual ao seguinte ditado etíope — “Quando o grande senhor passa por nós, a mulher do camponês acena com a cabeça em respeito e peida silenciosamente”. 

Pois bem: a expectativa apocalíptica é uma “transcrição oculta”. Não queremos admiti-la, mas lá está ela, viva, forte e cada vez mais resiliente. É uma liturgia que não queremos acreditar que ainda comanda nossas ações mais banais. 

A diferença essencial entre ter esse tipo de expectativa na época de Agostinho e no nosso século XXI é o fato de que, com a ausência de uma percepção ativa da presença de Deus nas coisas deste mundo, passamos a acreditar que o Mal só pode ser vencido se um evento definitivo resolver esse desequilíbrio, numa revelação final da justiça divina que, por falta de alguém que faça o trabalho direito, substitua o papel divino. A partir daí, seguir-se-á um período maravilhoso, os mil anos que trarão paz, harmonia e doçura entre os seres humanos, algo que Agostinho jamais imaginou quando escrevia sobre o saeculum em A Cidade de Deus. 

A força desta “transcrição oculta” é tamanha que, como o evento milenar nunca aconteceu (e, ao que parece, jamais acontecerá), a noção apocalíptica do tempo se acentuou cada vez mais entre nós, contagiando assim toda a sociedade, indo das suas franjas — como os desajustados e os excluídos — até atingir o topo da hierarquia. É o caso da elite política que hoje domina o globo terrestre e, principalmente, da elite tecnológica de Silicon Valley. 

Temos aqui um problema grave. Enquanto a expectativa e o discurso apocalípticos se mantêm na periferia da sociedade, elas são perfeitamente administráveis. Todavia, quando elas se transformam em uma epidemia, aquilo que julgávamos conhecer como a “esfera pública” será rompida sem nenhum aviso. E assim os seguintes comportamentos, descritos abaixo por Richard Landes, que antes eram estritamente marginais, passam a se tornar dominantes, sem que o resto da população possa fazer nada a respeito, uma vez que também está completamente mergulhada no contágio dessa “transcrição oculta”. 

Em primeiro lugar, há a perda de uma comunidade geral, mais orgânica, que acompanha a entrada a uma comunidade mais íntima, mais particular, fechada em si mesma. Seus integrantes passam a ter um sentimento de conexão espiritual, de um propósito em comum, de um compromisso cósmico — e assim tornam-se crentes em um grupo que continuará inalterado mesmo quando ficar evidente que o evento derradeiro não aconteceu. 

Em segundo, o crente apocalíptico passa a viver em um constante ato radical de individualismo, rompendo com o passado e, ao mesmo tempo, submetendo-se de forma igualmente radical ao novo grupo, em particular ao líder do movimento que se inspira completamente na “transcrição oculta”. Isso também cria entre eles uma vulnerabilidade psicológica — em especial, quando se põe a mais completa confiança nas mãos desses líderes — que, paradoxalmente, permite aos outros membros do grupo apocalíptico uma certeza de que podem guiar aqueles que estão fora desta comunidade e que, se insistirem nesse tipo de atitude, certamente são fracos ou então passaram por uma “lavagem cerebral”. 

Em terceiro, quanto menor for o horizonte temporal desses grupos, muito mais intensa se torna a expectativa apocalíptica. Cada episódio deste tipo é algo semelhante ao do porco que passa a ser bem alimentado para depois ser levado ao abatedouro — e a sua morte é o ponto final que enfim revelará a sua função neste planeta. 

A tensão psíquica resultante deste tipo de atitude é entre a cautela e a paixão e, para quem é de fora, tudo o que parece ser irracional e insano é, para quem está dentro da comunidade, pleno de ardor e propósito — e assim a intransigência do crente cresce cada vez conforme a decepção parece surgir como um fato. 

Os eleitos

E, em quarto, a proximidade do momento apocalíptico induz a um comportamento exaltado e extremo, que vai do ascetismo radical à generosidade extravagante, passando por atos violentos (licenciosidade sexual, a quebra de tabus, consumo de drogas alucinógenas, até mesmo assassinato). 

É um pêndulo psicológico que também observamos nas estruturas sociais dominadas pela expectativa apocalíptica. Todas são, de uma maneira ou outra, profundamente antiautoritárias (pelo menos onde existem as velhas autoridades), geralmente começam como igualitárias radicais (na ode contra a propriedade privada e a favor da propriedade coletiva) e, imersas no desconhecimento de que não há liberdade sem um mínimo de ordem, acabam por se tornarem, conforme as circunstâncias, em sociedades ainda mais autoritárias e repleta de desigualdades ainda mais radicais entre os seus membros. 

De acordo com David Noble, no centro disso tudo há a promessa do milênio que enfim restaurará a humanidade a uma perfeição igual a Deus e que existia antes da nossa Queda do Paraíso de Adão e Eva. 

Mas não pensem que essa salvação é universal. 

Ela será, em sua essência, uma expectativa tipicamente elitista, reservada apenas para alguns eleitos – “os poucos felizes”, na expressão shakespeariana. Com isso, metade da espécie humana é automaticamente excluída, em particular as mulheres, uma vez que esse tipo de movimento só pode ser liderado, na cabeça dessas pessoas, pela população masculina, a ser guiada por sujeitos que devem se comportar como santos.

Portanto, a expectativa apocalíptica começa a se imiscuir na sociedade ocidental por meio dos monges medievais que, reclusos em suas abadias, tornavam-se os soldados espirituais previstos pelo primeiro grande sistematizador do pensamento milenarista, Joaquim de Fiore, o profeta do Terceiro Reino que depois moldaria as escatologias totalitárias do Duce Mussolini (uma variação do Dux ansiado por Fiore como o governante que unificaria o território italiano), do Terceiro Reich de Hitler, do Comunismo que vai de Marx a Stalin e da Nova Era que fascinou a mente de um Steve Jobs. 

Obrigados a criar uma arte (techne em grego, ars em latim) que facilitasse o convívio entre eles, esses viri spirituales também refletiram sobre o papel da tecnologia, da feitura e do artesanato manual em obras que também pudessem mostrar o trabalho de Deus em um mundo onde a presença do Mal era extremamente palpável – e que devia ser combatida. A partir daí, as artes úteis, a técnica rudimentar e, por consequência, a tecnologia feita pelas mãos do homem tornaram-se meios pelos quais podemos não só glorificar Deus, mas lentamente aproximar o primeiro da sua própria natureza divina, compartilhando sua imagem na colaboração com o ato de criar. 

Este sentimento, por assim dizer, contagiou os abades e depois as ordens mendicantes, os missionários e os professores das universidades que então começavam a surgir nos séculos XV e XVI, incitando principalmente os grandes exploradores marítimos, como Cristóvão Colombo, que acreditava realmente que cumpria uma missão providencial na descoberta de um “novo mundo”. 

Com a perda da consciência da presença de Deus — um fenômeno que se conecta com a separação entre a fé e a razão e também com o “desencantamento” do cosmos como um lugar permeado de transcendência —, as visões apocalípticas se intensificaram de tal modo que a tecnologia passou a ser o instrumento definitivo para a elite dos escolhidos manter o seu poder sobre aqueles que ainda não conheciam esses mistérios derradeiros. 

De soldados espirituais da Igreja Católica e revoltados das seitas heréticas, o “povo de Deus” virou as sociedades secretas das organizações ocultistas e maçônicas, sempre dispostas a manterem entre si o artifício da técnica e da tecnologia como um enigma que precisaria ser iniciado a alguns poucos para ser adequadamente compreendido. 

Em paralelo, este tipo de comportamento também se encontra no “colégio invisível” do século XVII e XVIII de cientistas como Galileu, Kepler e Newton, e de filósofos como Francis Bacon e René Descartes, que mostravam um incrível desprezo pelas “pessoas comuns” e, por isso, pretendiam libertá-las por meio de uma educação especificamente técnica que, como diria John Milton, as traria de volta ao reino do Paraíso Perdido. 

Os séculos da razão iluminada chegaram ao ápice de sofisticação tecnológica no século XX, quando as seitas ocultistas e os membros mais notórios do “colégio invisível” se uniram com os poderes e os potentados que formaram essa grande máquina administrativa e burocrática apelidada de o “establishment” – e assim a “religião da tecnologia” teve a sua forma definitiva com esses novos santos que foram os engenheiros das bombas atômicas, os cientistas da física quântica e os estudiosos da inovação econômica. 

É graças a esta nova casta que surgem quatro obsessões marcantes para a nossa época e que influenciarão o “monopólio do espírito” defendido pelas corporações de Silicon Valley: a corrida nuclear, a exploração pelo espaço sideral, a busca pela existência da inteligência artificial e a engenharia genética — sendo que os dois últimos itens são de extrema importância para as empresas de Mountain View (como podemos intuir ao ver os grandes investimentos que o Google faz em relação a estes assuntos, especialmente para os experimentos de Ruy Kurzweil, o novo guru da imortalidade cibernética). 

Neste rápido – e, confesso, bastante amplo – resumo da “transcrição oculta” da expectativa apocalíptica que infectou a perspectiva tecnológica na nossa História, é interessante observar a ironia cruel de que a procura incansável da técnica para encontrar uma forma de aperfeiçoar as nossas vidas transformou-se em uma ameaça mortal à nossa própria sobrevivência. 

Por outro lado, dependemos mais do que nunca dessa mesma tecnologia que pretende nos ver como meras estatísticas. Sem ela, não teríamos o progresso que facilita não só o cotidiano, mas a nossa saúde, como percebemos com qualquer avanço médico que ameniza ou até mesmo cura uma doença gravíssima. 

Essa convergência entre um prisma do pensamento religioso – o discurso apocalíptico – e a crença na tecnologia, como a base para uma “política da perfeição” que se esqueceu da fragilidade do ser humano, nos faz questionar o próprio significado de transcendência. Será que não seria o caso de separar de uma vez por todos os anseios metafísicos da tecnologia para que esta última não se confunda mais com os seus propósitos meramente humanos? 

Suspeito que este não seja o ponto da discussão. Não se deve questionar a transcendência, algo que faz parte da estrutura intrínseca do ser humano, mesmo que os governos totalitários querem substituí-la por uma pseudo-religião — aliás, outra característica de organizações possuídas por visões apocalípticas. 

Deve-se questionar, isto sim, o papel de quem acredita, com toda a sinceridade no seu coração, de fazer parte de uma elite de escolhidos e, por isso mesmo, constrói uma pretensão de ser uma divindade – ou de ser o único guia capaz de acabar com as necessidades mortais da maioria da humanidade, já que, na visão desses luminares, ela mal sabe o que fazer quando se encontra no subterrâneo do país das maravilhas. 

Engrenagem

Confuso e intrigado igual a Alice seguindo o coelho branco. Deve ter sido assim que Franklin Foer se sentiu quando foi demitido por Chris Hughes por não ter compreendido as implicações entre o jornalismo agonizante que queria praticar e o futuro do algoritmo — uma cortesia tecnológica trazida até a nossa época por iluminados racionais como Descartes e Leibniz — como regra para qualquer tipo de comportamento humano. 

Em “World Without Mind”, Foer tenta construir uma narrativa histórica para entender o que torna o “monopólio do espírito” algo tão duradouro na mente das pessoas da nossa época, mas ele mal consegue tocar a superfície do problema que o afetou em sua vida pessoal e profissional. Na verdade, Foer é incapaz de entender que a expectativa apocalíptica é a seiva que alimenta as raízes, o tronco e os galhos desta grande árvore que se tornou as Big Techs no nosso dia-a-dia. Sua confusão mental é tamanha que a única coisa que o preocupa é saber por que perdeu o seu emprego. 

Desculpe-me, caro Franklin, porém a situação é um pouquinho mais complicada do que você pensa. A perda do seu belo emprego de editor de uma revista já decadente é apenas mais uma engrenagem em um grande mecanismo que o historiador Niall Ferguson descreveu, em seu grande painel “The Square and the Tower”, como produto da tensão entre as redes sociais (networks) e as hierarquias centralizadoras, corporativistas e autoritárias. As primeiras se fundamentam na arte da subversão política; as segundas se aferram no controle de cada detalhe de um plano que poucos conseguem decifrar, exceto os seus integrantes privilegiados — a tal da “elite”. 

Para sermos mais ousados e acompanharmos o raciocínio de Ferguson, as redes sociais são uma constante na história da Civilização Ocidental, conforme já expliquei no artigo “O Mito da Inovação”. Elas podem ser encontradas desde as sociedades secretas (como os Illuminati e os Rosa-Cruzes, incapazes de criar alguma conspiração política, como muitos supõem, mas fundamentais para estabelecerem uma estrutura flexível de informação) à mudança de pensamento provocada pela criação da imprensa por Gutenberg (e, posteriormente, pela revolução religiosa atiçada por Martinho Lutero), passando pela era das Grandes Navegações (que criaram, para o bem ou para o mal, a nossa noção do mundo globalizado). 

O seu contraponto seriam as hierarquias de comando e de conhecimento — cuja amostra mais sinistra foi sem dúvida os regimes comunista e nazista. Por meio de decisões que sempre surgem de cima para baixo, elas querem controlar esses organismos descentralizados, pelo simples motivo de que esses últimos desestabilizam qualquer espécie de poder autossuficiente. 

Mas, neste conflito, ninguém sabe quem é o vilão e quem é o herói. A partir da imagem da Piazza del Campo, localizada no Palazzo Pubblico da cidade de Siena, onde podemos ver a imponente Torre del Mangia que, com sua sombra, sufoca a praça de comércio logo abaixo, Ferguson argumenta que existe uma dinâmica peculiar entre as hierarquias e as redes sociais, na qual as primeiras podem absorver a novidade das segundas, justamente para fortalecerem ainda mais o seu domínio absoluto. 

Transcendência fajuta

Por outro lado, o mesmo pode ocorrer com as redes, que não hesitarão de criar uma nova hierarquia para justamente mudar o fluxo e o centro do poder. É o que acontece com as Big Tech analisadas por Franklin Foer, como Facebook, Apple, Amazon e Google, que criaram uma batalha pelos “corações e mentes” da sociedade que poucos percebem — camufladas pela retórica atraente da “neutralidade da rede” — e com profundas consequências políticas e culturais para todos nós. 

Esses grupos lutam entre si nesta demanda pelo “monopólio do espírito”, iludidos de que a religião da tecnologia é o principal impulso no surgimento das redes sociais, quando, na verdade, o que está em jogo é o comportamento humano de acreditar que existem respostas fáceis para problemas extremamente complicados. Para eles, a liturgia da expectativa apocalíptica, traduzida em bits e bytes, será finalmente a resolução e – mais – a concretização de todos os problemas aqui na Terra, em especial o da morte e o da imperfeição humana. 

É a crença nesta transcendência fajuta que a cultura do Vale do Silício incorporará em si mesma, como se fosse uma espécie de justificativa idealista, na mobilização de um imaginário libertário. Como argumenta Benjamin Loveluck em “Redes, Liberdade e Controle”, as Big Techs se inspiraram “nas fontes transcendentalistas da cultura democrática” dos Estados Unidos – o movimento literário e filosófico liderado por Ralph Waldo Emerson e Henry David Thoreau, cujo foco principal é “a radicalização da liberdade individual, autossuficiência (self-reliance), no igualitarismo democrático, no racionalismo, na comunhão com a natureza, na unidade espiritual do mundo e na ‘transparência a si e aos outros’”, em um vínculo que liga essa tendência não só com as estruturas das seitas apocalípticas como também marca — olhem só quem voltou para contar a história! — a “continuidade existente entre a contracultura dos anos 1960 e a cultura da internet atualmente — em particular, em suas dimensões mais utópicas”. 

Transcendentalismo e o libertarismo 

Assim, temos a inusitada síntese entre o transcendentalismo e o libertarismo que, junto com o discurso apocalíptico incrustado nesses novos líderes, forma o libertarianismo – uma espécie de liberalismo “total” (no sentido americano de “progressista”, não no sentido tupiniquim de “direita”) — ao mesmo tempo social, econômico e político, quando não existencial — que é “caracterizado por uma Teoria do Estado Mínimo, assim como pela ideia de que os indivíduos deixados livres são capazes de se auto-organizarem, e não apenas no campo econômico”. 

No fundo, é o triunfo da razão autossuficiente, autônoma e imanente, sem nenhum contato com o espírito realmente aberto à transcendência, mas que, para ser eficaz em termos políticos, é fundamental a existência de uma “elite natural” (a expressão é de um dos gurus intelectuais dos libertários, Ludwig von Mises) que nos oriente nesse processo histórico para que ele se torne finalmente uma realidade concreta. 

Como podemos perceber, as estruturas mudam, mas a substância permanece a mesma — a expectativa apocalíptica de um evento definitivo, o Fim dos Tempos, que precisa ser previsto por uma pessoa ou por um grupo de escolhidos, para então exterminar de uma vez por todas o bom e velho problema do Mal e do sofrimento. 

Devemos relembrar, neste ponto, que a tensão histórica entre redes sociais e hierarquias centralizadoras diagnosticada por Niall Ferguson é uma ameaça permanente no tecido da civilização quando as visões apocalípticas saem das conexões descentralizadas e tomam conta de quem está no comando das centrais do poder organizado.

Anticivilização

Era este o grande temor de Eric Voegelin em seu estudo sobre “O Povo de Deus”, incluído no quarto volume de “História das Ideias Políticas” (trad. Elpídio Fonseca): o de que poucos percebessem que “essa tensão entre as instituições [sinônimo de hierarquias] e o movimento milenar do povo [as networks] não é uma peculiaridade ocidental [e sim] um traço geral do processo civilizacional”, no qual, no caso de um mundo permeado pela dicotomia entre o “tempo apocalíptico” e o “tempo normal” articulada por Santo Agostinho, “a ideia da pessoa cristã funcionaria como um agente da revolta contra a institucionalização das relações entre a alma e Deus e como um agente de regeneração das instituições”. 

Similar a uma igreja, Silicon Valley pretende concretizar essa “regeneração” a qualquer custo, mesmo que tenha de substituir homens por máquinas dotadas de inteligência artificial ou manipular o nosso livre-arbítrio por meio de um algoritmo perfeito.

É a pretensa revolta a favor do espírito que se transforma em uma revolta espiritual que, por sua vez, ganha relevância social, graças às nossas súplicas. Pouco importa se será via Google, Facebook, Amazon ou Apple: o verdadeiro perigo está no fato de que a expectativa apocalíptica, ao perceber que jamais será realizada a contento (porque, lembrem-se, ninguém sabe quando o dia chegará), é o combustível para o surgimento de um ressentimento que enfim destruirá o resto de civilização que ainda julgamos conhecer tão bem, um ressentimento que, na descrição afiada de Voegelin, se torna “um traço praticamente inevitável” desses movimentos de escala social – como são os de Big Tech – e que se revelam “contra os valores intelectuais e estéticos realizados pela classe mais alta [aqui, a elite considerada ultrapassada]”, dando um poder enorme ao “clamor por reforma espiritual”, obrigado a se unir “às exigências de uma ‘queima de livros’, de uma supressão da cultura literária e artística, da abolição da ordem de propriedade prevalecente”, da ameaça à liberdade de expressão – sem nos esquecermos, é claro, da metamorfose planejada do ser humano de carne, osso, sangue e vísceras, em uma nuvem de cinzas. 

O “monopólio do espírito” não afeta apenas o emprego de editor de um jornalista metido a intelectual, como foi a história de Franklin Foer. Trata-se de uma anticivilização que destrói principalmente a natureza humana de tal maneira que, se for levada às últimas consequências, sem dúvida não seremos mais como Alice a ser guiada pelo coelho branco nos subterrâneos do real. Seremos o próprio coelho, perdido na escuridão dos nossos pensamentos, um cego guiado por outros cegos. 

Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015); pós-doutorando pela FGV-EAESP.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.