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Há muitas coisas desagradáveis no romance distópico 1984, de George Orwell. Telas espiãs. Tortura e propaganda. Gin e café da vitória são duas coisas que sempre soaram especialmente temerosas. E há a úlcera de Winston Smith, aparentemente um símbolo de seu caráter humano (ou coisa assim), que parece estar sempre latejando. Que nojo.
Nada disso parece muito agradável, mas não é a pior coisa em 1984. Para mim, a parte mais assustadora é o fato de você não conseguir tirar o Grande Irmão da cabeça.
Ao contrário de outros líderes totalitários do século XX, os autoritários de 1984 não estão interessados em controlar o comportamento ou o discurso. Eles controlam isso, claro, mas somente como meio de se atingir um fim. O objetivo real deles é controlar a massa cinzenta entre as orelhas.
“Quando você finalmente se render a nós, deve fazer isso por vontade própria”, diz O’Brien (o vilão) ao protagonista Winston Smith, já no fim do livro.
Não destruímos o herege porque ele resiste: enquanto ele resistir, jamais o destruiremos. Nós o convertemos, nós capturamos seu pensamento interior, nós o remoldamos.
O instrumento do Grande Irmão para conseguir isso é a Polícia do Pensamento, que tem a missão de descobrir e punir pensamentos proibidos. Vemos como isso funciona quando o vizinho de Winston, Parsons, um repugnante puxa-saco do Partido, é delatado pela própria filha, que o ouviu cometendo um crime de pensamento enquanto falava dormindo.
“Foi minha filhinha”, diz Parsons a Winston quando ele lhe pergunta quem o denunciou. “Ela ouviu pelo buraco da fechadura. Ouviu o que eu estava dizendo e contou tudo para a polícia no dia seguinte. Bem inteligente para uma fedelha de sete anos, né?”
Quem compõe a Polícia do Pensamento?
Não sabemos muito sobre a Polícia do Pensamento e parte do que achamos que sabemos talvez não seja real, já que muito do que Winston fica sabendo vem do Partido Interior, e eles mentem.
O que sabemos é isto: a Polícia do Pensamento é a polícia secreta da Oceania — o território fictício de 1984 que provavelmente consiste do Reino Unido, das Américas e de parte da África — que usa vigilância e informantes para monitorar o pensamento dos cidadãos. A Polícia do Pensamento também usa guerra psicológica e operações falsas para enganar livres-pensadores ou inconformistas.
Aqueles que se distanciam da ortodoxia do Partido são punidos, mas não assassinados. A Polícia do Pensamento não pretende matar os inconformistas, e sim destruí-los moralmente. Isso acontece na Sala 101 do Ministério do Amor, onde os prisioneiros são reeducados por meio da humilhação e tortura. (Uma curiosidade: o nome “Sala 101 foi aparentemente inspirado por uma sala de conferências na BBC, onde Orwell era obrigado a se submeter a reuniões longas e tediosas).
As origens da Polícia do Pensamento
Orwell não criou a Polícia do Pensamento do nada. Ela foi inspirada, em certa medida, em suas experiências durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), uma guerra complicada e confusa. O que você precisa saber é que não havia mocinhos no conflito, que terminou com os anarquistas de esquerda e os republicanos derrotados por seus senhores comunistas, o que ajudou os fascistas a vencerem.
Orwell, um socialista idealista de 33 anos quando o conflito teve início, apoiava os anarquistas e os legalistas que lutavam pela Segunda República Espanhola, de tendência esquerdista e que recebia apoio da União Soviética e de Josef Stalin. (Isso soa algo ruim, mas tenha em mente que os nazistas estavam do outro lado). Orwell descreveu a atmosfera em Barcelona no dezembro de 1936, quando tudo parecia bem para seu lado.
Os anarquistas ainda tinham o controle da Catalunha e a revolução ainda estava em andamento (...). Foi a primeira vez que estive numa cidade onde a classe trabalhadora estava no comando”, escreveu ele em Homage to Catalonia [Homenagem à Catalunha]. Todas as paredes estavam marcadas com a foice e o martelo (...) toda loja e café tinha uma inscrição dizendo que tinham sido coletivizados.
Tudo isso mudou rapidamente. Stalin, um cara bem paranoico, queria tornar a República Espanhola leal a ele. Facções e líderes vistos como leais a seu rival comunista no exílio, Leon Trotsky, eram assassinados. Os comunistas leais foram denunciados como fascistas. Os inconformistas e “incontroláveis” desapareceram.
Orwell nunca esqueceu os expurgos e as mentiras e a propaganda divulgada pelos jornais comunistas durante o conflito. (Para ser junto, os inimigos nacionalistas também faziam uso de propaganda e mentiras). O NKVD [Ministério do Interior] de Stalin não era exatamente como a Polícia do Pensamento – o NKVD demonstrava ter menos paciência com suas vítimas — mas ela certamente ajudou a inspirar a polícia secreta de Orwell.
A Polícia do Pensamento não se restringia à propaganda e à tortura. Ela também expressa o que Orwell via como verdade. Durante eu tempo na Espanha, ele viu como o poder podia corromper a verdade, ideia que compartilha no seu livro George Orwell: My Country Right or Left, 1940-1943 [George Orwell: meu país à direita ou à esquerda, 1940-1943].
...li notícias de jornal que não correspondiam aos fatos e não tinham relação alguma nem com o assunto sugerido na mentira. Vi histórias sobre grandes batalhas onde não houve batalhas e silêncio sobre conflitos nos quais centenas de homens morreram. Vi tropas que lutaram bravamente chamadas de covardes e traidoras e pelotões que nunca tinham visto conflito considerados heróis de vitórias imaginárias; e vi jornais de Londres reproduzindo essas mentiras e intelectuais construindo superestruturas emocionais sobre acontecimentos que nunca tinham acontecido.
Em resumo, a experiência de Orwell com o totalitarismo o deixou temeroso de que o próprio conceito de verdade objetiva estivesse desaparecendo do mundo.
Isso o assustou. Muito. Ele até escreveu: “Esse tipo de coisa me apavora”.
Por fim, a Polícia do Pensamento também foi inspirada na luta humana pela honestidade e na pressão para se adequar. “O indivíduo sempre sofreu para não se sentir levado pela tribo”, disse certa vez Rudyard Kipling.
A luta para se manter fiel a si mesmo também foi sentida por Orwell, que escreveu sobre “as pequenas ortodoxias fétidas” que disputam a alma humana. Orwell se orgulhava de ter o “poder de enfrentar fatos desagradáveis” – uma raridade entre humanos – embora isso o tenha prejudicado na sociedade britânica.
De certa forma, 1984 é um livro sobre a capacidade humana de se apegar à verdade mesmo diante da propaganda política.
Mais profético do que ele imaginava?
Talvez seja tentador tratar o livro de Orwell como uma farsa literária distópica. Infelizmente, fazer isso não é tão fácil quanto parece. A história contemporânea nos mostra que ele percebera alguma coisa.
Quando o Muro de Berlim caiu, em novembro de 1989, revelou-se que a Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, tinha 91 mil funcionários. Parece muito, e é, mas o assustador mesmo é que a organização tinha quase o dobro disso em informantes, incluindo crianças. E não eram só as crianças que denunciavam os pais; às vezes acontecia o contrário.
Tampouco o uso de espiões estatais para denunciar crimes de pensamento terminou com a queda da União Soviética. Acredite ou não, isso acontece ainda hoje. O New York Times recentemente publicou uma reportagem que mostrava Peng Wei, estudante chinês de química de apenas 21 anos. Ele é um dos milhares “agentes estudantis de informação” que a China usa para denunciar professores que dão sinais de deslealdade para com o presidente Xi Jinping ou o Partido Comunista.
A nova polícia do pensamento
A Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos felizmente protege os norte-americanos dos sistemas autoritários assustadores encontrados em 1984, na Alemanha Oriental e na China; mas a ascensão da “cultura do cancelamento” mostra que a pressão para se adequar a todos os tipos de ortodoxias (fétidas ou não) continua forte.
A nova Polícia do Pensamento pode ser menos sinistra do que a de 1984, mas a próxima geração terá de decidir se buscar a conformidade de pensamento ou linguagem por meio da humilhação pública é algo saudável ou sufocante. Dan Sanchez, da FEE, recentemente disse que muitas pessoas hoje em dia sentem que estão “andando sobre ovos” e vivem com medo de cometerem um erro de fala capaz de condená-los.
Isso é pressão demais, sobretudo para pessoas que ainda estão aprendendo os limites aceitáveis de um novo código moral que está mudando constantemente. A maioria das pessoas, quando pressionadas, acabará dizendo que “2+2=5” só para evitarem o castigo. É exatamente isso o que Winston Smith faz no fim de 1984. Se bem que Orwell dá aos leitores um quê de esperança.
“Fazer parte de uma minoria, nem que seja uma minoria de um só, não faz de você um louco”, escreveu Orwell. “Há verdade e há mentira e, se você se apega à verdade contra o mundo, você não ficou louco”.
Em outras palavras, o mundo pode ser louco, mas isso não significa que você precise ser igual a ele.
Jonathan Miltimore é editor do site FEE.org.