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No centro dos problemas humanos, pleno de consequências sobre o destino da alma e o restabelecimento da justiça, está o problema da existência de Deus. Até hoje a questão continua a ser debatida na internet e nos lares; e a origem das suas ideias remonta a Xenófanes, da Grécia Antiga, sobre quem escreverei algumas linhas, após nos situarmos nas querelas da nossa era. O espírito do tempo sopra para dois lados: a espiritualidade sem Deus e o ateísmo militante.
Os primeiros ares da espiritualidade ateísta foram inspirados por Friedrich Schleiermacher (1768-1834). Trata-se de um tradutor de Platão, influente nos meios protestantes, que viveu na era do criticismo e romantismo. Ele modificou radicalmente o conceito de religiosidade, ao defender que a religião não é uma doutrina, revelada ou racional, mas um sentimento de participação do finito no Infinito. Portanto, os únicos valores dos dogmas e das expressões intelectuais são simbólicos; traduzem em imagens e ideias os sentimentos da vida interior. A consequência é o direcionamento do fenômeno religioso à subjetividade, a ponto de muitos homens influenciados por ele defenderem “uma religião sem Deus”. Inclusive, a sustentar que esta pode ser muito mais espiritual do que uma religião dogmática.
O seu herdeiro mais notável é Albrecht Ritschl (1822-1889). O teólogo de influência protestante dá um passo adiante em direção ao subjetivismo, ao reafirmar que a religião é uma experiência, sendo menos importante, no entanto, o sentimento de Eternidade, do que o bem-estar da alma humana. Talvez todo homem contemporâneo já tenha ouvido uma afirmação semelhante a esta: “Eu só acredito em Deus porque sem Ele a minha vida careceria de sentido; eu terminaria num hospício ou cometendo suicídio.” A ideia por trás é a seguinte: “A crença na existência de Deus faz-me bem, e o que me é útil é verdadeiro.” O valor subjetivo, portanto, impõe-se à afirmação objetiva.
O resultado é aquele descrito pela equipe Christo Nihil Praeponere, do Padre Paulo Ricado: “Não se procura a religião por causa de uma procura agostiniana da Verdade, mas por uma sede de satisfação pessoal, para resolver alguns problemas temporais e obter algumas consolações.”
A jornada da inteligência humana, quanto ao ateísmo militante, deu os primeiros passos às pegadas do Empirismo de David Hume (1711-1776). O filósofo britânico defende que o conhecimento advém da experiência prática – a observação dos fenômenos, do movimento, dos fatos – de modo que as especulações filosóficas dependem exclusivamente da apreensão dos sentidos. Em decorrência do limite natural do conhecimento, é impossível comprovar a existência de Deus – ou a Causa primeira da realidade. Em linguagem platônica, limitar-se ao conhecimento de Hume é estar aprisionado no mundo das aparências sensíveis, e qualquer tentativa de sair da caverna condenaria o homem à ilusão da mente humana.
Eis que diz o Padre Leonel Franca: “Para tornar Deus inacessível à razão humana foi necessário imolar esta razão e rebaixar o homem às condições do animal. A mesma crítica que pretenderia impossibilitar a demonstração da existência de Deus, não chega a este resultado fatal sem antes haver destruído toda a vida da inteligência.”
Em seguida, há o agnosticismo subjetivista, cujo gérmen tem nascedouro em Immanuel Kant (1724-1804). Embora o filósofo tenha reconhecido “Cristo como um Mestre da pura lei”, ele destruiu a forma de operação da razão tradicional. Como um dos principais expoentes da Filosofia Moderna, defendeu que a natureza da realidade é sempre uma incógnita impenetrável. Ou seja: nós não conhecemos as coisas como são em si mesmas, mas apenas as construções que fazemos delas.
Daí surge a ideia de que a natureza é uma criação do espírito, ou os defensores de que as nossas afirmações objetivas não vêm da estrutura da realidade, mas das condições subjetivas inseparáveis das nossas percepções. A consequência teológica desse pensamento é a de que Deus em si mesmo jamais será objeto de ciência; e a de que as ideias teológicas são puras formas sem conteúdo real. Se há crença em Deus por quem pensa assim, é apenas como exigência prática da ação ou da moralidade. É exatamente como pensam aqueles que afirmam: “Se acredito em Deus é porque, sem Ele, tudo é permitido.”
Já na França, foi o positivismo de Auguste Comte (1798-1857) o grande precursor do agnosticismo radical, sob a defesa de que a intelectualidade humana passou por três estados evolutivos: o teológico, o metafísico e o positivo. O primeiro, próprio à Odisseia e a Bíblia, tem por base a imaginação e apela a seres preternaturais, cujas vontades arbitrárias explicam o que a razão é incapaz de explicar. Já o estado metafísico tem como função principal a destruição do pensamento teológico e a preparação ao advento do positivo, ao substituir as divindades antropomórficas por entidades abstratas. No entanto, o objeto das investigações metafísicas é idêntico às fabulações poéticas: o absoluto, as causas primeiras, a essência de todas as coisas. Até que o homem moderno renuncia as entidades sobrenaturais e os princípios abstratos para investigar as leis dos fenômenos, buscando na ordem científica os fundamentos da natureza e da sociedade. O resultado é a concepção da teologia como a infância, da metafísica como a juventude e da ciência positiva como a maturidade da humanidade.
Porém, os positivistas cometem a falácia da petição de princípio, que consiste em afirmar uma tese (o primitivismo da teologia e a imprecisão da metafísica), que se pretende demonstrar verdadeira na conclusão, já partindo do princípio de que ela é verdadeira. Além de que é bem possível que os três estágios, em vez de serem fases que se sucedem e excluem, sejam três exigências fundamentais do discurso humano, como a harmonia que existe entre o poético, dialético e analítico.
Todos esses pensamentos culminam em Ludwig Feuerbach (1804-1872) – o ateísta antropológico e a grande influência de Marx – que defende como a religião é apenas uma antiga ingenuidade, que se manifesta sob um ritualismo sem sentido, ou simplesmente um costume social. O resultado é o obscurecimento da natureza humana, um aprisionamento no dualismo, que ora aparece como o ópio do povo, ora como a negação dos prazeres carnais. Para ele, teologia é antropologia, no sentido de que tudo o que o homem atribui a Deus é, na realidade, projeção do próprio ego. Os teólogos contam que Deus criou o homem, porque antes o homem criou Deus.
Finalmente, o filósofo grego Xenófanes (478 a.C.-570 a.C.) parte de intuições parecidas, mas tem objetivos distintos. Ele vê os deuses gregos como criações da mente humana, a ponto de julgá-los como fabulações que não refletem a realidade, por causa de seu caráter antropomórfico e do seu desvio moral. De um lado, os etíopes pintam os seus deuses como negros de narizes chatos, e os trácios como entidades de olhos verdes e cabelos ruivos; de outro, os povos todos atribuem às suas divindades tudo o quanto entre os homens é infâmia e vergonha, como roubar, raptar e estuprar. O problema é que eles não alcançam uma divindade realmente metafísica, além de ensinarem uma série de corrupções morais.
Assim, ao contrário dos pensadores modernos, o objetivo do filósofo antigo com as suas críticas à tradição teológica é a ascensão a uma teologia mais pura e profunda: “Um único deus, entre deuses e homens o maior, em nada semelhante aos mortais nem no corpo nem no pensamento. Tudo vê, tudo pensa, também tudo escuta. Sempre no mesmo permanece, não se move, nem lhe convém sair ali e acolá.”