Solução para a pandemia não está só em máscaras e lockdowns, e sim nas pessoas.| Foto: Bigstock
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Começo a escrever com certo receio. Receio de que quem me estiver lendo ande também tão (ou mais) cansado do que eu de falar ainda neste pesadelo. E, mesmo assim, escrevo na esperança de poder falar apenas de uma única coisa: no meio de tudo isto, como perguntava Walt Whitman, o que há de bom?

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Em 1947, foi publicado o romance A Peste, de Albert Camus. Ele narra como essa epidemia tomou conta, em pouquíssimo tempo, da cidade de Orán, no Norte da África. Camus ganhou o Prêmio Nobel dez anos depois. Camus é profético e terrível, como Rilke diria que todo anjo é.

Há muitas vozes em Orán. Muitas vozes, muitos discursos e muita, mas muita incerteza. Ninguém sabe mesmo se as coisas são ou não são assim.

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Tem a voz da ciência, que, aliás, não é bem da ciência, mas de alguns médicos e cientistas que, para desgraça e desespero da população, não são unânimes e não dão a garantia de 100% que todo o mundo quer.

Há gente nobre e gente canalha em Orán. Há gestos de uma grandeza ímpar e gestos que dão nojo. E há desespero, muito. Porque nunca antes ninguém tinha vivido, nem sequer tinha imaginado ter de viver assim: confinados, fechados, separados, sem um abraço, sem um beijo, sem um oi, sem... É humano isso? E o vírus quer saber do que venha a ser humano? E nós, queremos saber?

Em Orán, nos diz Camus, o problema não era a peste, nem os seus efeitos devastadores. O problema (talvez por isso que Camus seja um dos grandes) não estava mesmo na doença, mas nas pessoas, que não se entendiam mais, que não queriam mais estender pontes, que não estavam mais dispostas a se preocuparem umas com as outras.

O inferno da cidade não era a Peste, mas seus habitantes, que, fechados cada um no seu mundo, iam se isolando mais e mais e, em lugar de criarem espaços de compreensão, de diálogo e de solidariedade, orquestravam uma polifonia de gritos, recriminações e juízos sumários.

Acima das forças humanas

Havia os racionais teóricos: o único que precisa é reconhecer claramente o que precisa ser reconhecido. E, feito isso, tomar as precauções devidas, dizia um dos médicos de Orán numa reunião. Parecia fácil, mas a questão era que nem todos os médicos pensavam da mesma forma, alguns ainda não estavam convencidos de que fosse mesmo a peste. E muitos outros discordavam em quais precauções seguir.

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E ainda havia os políticos, aqueles que teriam de comunicar as medidas ao público e, então, aí a tal da razão desandava, ou melhor, cada um falava uma coisa diferente e parecia que nunca se chegaria a um acordo.

As medidas começaram a ser tomadas pelo Prefeito. Pouco a pouco, sempre esperando que acabasse logo, mas... Não. A peste parecia que estava ficando à vontade nas praias de Orán. E o que no começo eram algumas medidas preventivas, mais ou menos suaves, logo depois começaram a ser cada vez mais draconianas.

E, à medida que a peste ia cobrando mais e mais vidas e que o tempo de confinamento e isolamento já não era mais de um mês, nem de dois, nem de três, os doentes começavam a ficar receosos, os familiares mais ainda, as “salas equipadas” estavam ficando lotadas, o cemitério, então, ainda havia lugar, o que não havia era tempo para enterrar, nem coveiros para fazer o serviço. Tudo estava ficando extremamente confuso e difícil de assimilar. De fato, um flagelo está acima das forças humanas.

E, no meio de tudo isso, desatou-se uma outra pandemia: a pandemia da desinformação. Ninguém conseguia entender-se, ninguém conseguia ter certeza dos números de mortos, nem de contagiados, nem de leitos, nem das UTI lotadas.

Sem sentimentos

Declarem o estado de peste! Fechem a cidade! A ordem chegou finalmente de Paris. E, então, foi como se a salvação estivesse à volta da esquina. Seria só uma questão de tempo, de pouco tempo, provavelmente. Agora que as medidas necessárias finalmente foram tomadas. Mas não foi assim. E a desinformação, a peste, os contágios e o número de mortos não paravam de crescer.

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A peste continuava cobrando vidas e o desespero e o medo e a desesperança e o sem-sentido iam tomando conta de todos. De repente, percebemos que estávamos todos no mesmo barco... E a separação foi tão súbita que não estávamos preparados... De repente, era como se todos fôssemos obrigados a agir como se não tivéssemos mais sentimentos...

Como se não tivéssemos mais sentimentos. Grande Camus! É isso!! Como é que, diante desta loucura, estamos nos obrigando a viver como se não tivéssemos mais sentimentos?!

Já ouvi muitas coisas boas sobre como vai ser diferente depois de tudo isto, mas até agora ainda não ouvi falar sobre essa necessidade de ter sentimentos. Será que conseguiremos reconhecer o que há de profundamente humano naquela pessoa que está diante de nós e nos diz, ao contrário do que nós mesmos pensamos e sentimos, que é melhor fazer isso ou aquilo ou ainda aquilo outro?

Quantas histórias de dor, de medo, de desespero, de mortes e vidas interrompidas não haverá por trás de alguém que diz que o melhor é levar máscara ou tomar a vacina x, y, z ou p, q, r. E desse outro alguém, que também é um ser humano e que também terá as suas histórias e as suas memórias de medo, de pavor e de desesperança e nos diz que não, que ele simplesmente acha que não é melhor.

Mais nada. Ninguém quer ganhar a argumentação. Ninguém está querendo machucar ninguém. Ninguém está querendo provocar mais dor e mais sofrimento em ninguém. Como em Orán, o único que estamos querendo é voltar a ter sentimentos, voltar a ser humanos, voltar a ser entendidos e compreendidos no meio da nossa dor e da nossa pena e da nossa aflição. Mais nada. E sobreviver a esta loucura e salvar e amar nossos seres queridos.

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Um flagelo que ultrapassava o homem

Experimentavam assim o sofrimento profundo de todos os prisioneiros e todos os exilados, ou seja, viver com uma memória que não serve para nada.... Gostariam de fazer tudo o que não tinham feito por aqueles de quem agora estavam separados, mas...

E o pior de tudo era que não se tratava na verdade de um exílio assim em geral. Era um exílio em casa. E isso queimava. Isso desesperava. Isso esmagava.

Nosso amor, sem dúvida, estava presente, mas simplesmente era inutilizável, pesado, inerte,  estéril...Não era mais que uma paciência sem futuro e uma espera obstinada...A peste tinha a cidade sob o seu domínio.

E foi então, precisamente então, que a peste perdeu a batalha. Não foi uma vitória da cidade, nem de todos os cidadãos. Nem do Estado francês, nem da Prefeitura de Orán. Aquilo não era uma luta como todas as outras lutas. Não era uma guerra. Se fosse, seria de proporções humanas. E haveria um vencedor e um vencido. Mas era a peste. Um flagelo, um sonho mau... Aquilo era, realmente, um flagelo que ultrapassava o homem.

A vitória foi de poucos, de muito poucos, como diria Henrique V, na voz de Shakespeare. Poucos homens que souberam extrair o melhor de si. Tornaram-se solidários. Passaram a ouvir. Passaram a conversar. Passaram a cuidar. Passaram a confiar. Não todos. Não a cidade. Alguns. Outros, não. Mas nem por isso foram julgados ou condenados. Os que extraíram o melhor de si souberam aplicar o bálsamo da bondade naqueles que só encontravam dentro de si o “menos melhor”.

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Estavam empenhados em compreender os outros.

Os anjos de Rilke

Camus tenta dar não uma solução, porque não há, mas uma luz que acredito poderá servir-nos não para o “novo normal”, que esse já morreu de velho, mas para o aqui e agora, que esse, sim, é normal e pode ser novo.

Sempre há, sempre houve e provavelmente sempre haverá alguns homens e mulheres que estejam dispostos a se desviver pelos outros e, como procuram não julgar, acabam por ter os mesmos sentimentos que os seus semelhantes e, por isso, são como esses anjos de que falava Rilke, porque sabem compreender as situações dolorosas e as atitudes incompreensíveis. Porque sabem ser profundamente humanos entre os humanos.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]