No melhor espírito relaxado da Alemanha moderna, as autoridades locais de Seelow queriam construir uma ciclovia para que o número crescente de turistas possa expandir seus passeios sobre a planície tranquila do Rio Oder, até a vizinha Polônia.
Como esse foi o local da maior batalha da Segunda Guerra Mundial em território alemão, uma equipe foi escolhida para examinar o caminho proposto para a ciclovia em busca de objetos abandonados. Porém, eles logo revelaram não apenas munições, mas também uma vala comum, com os restos mortais de até 28 soldados soviéticos.
A descoberta, feita em maio, confirma mais uma vez a história sangrenta da planície do Oder, onde dezenas de milhares de soldados nazistas e soviéticos morreram na batalha de abril de 1945 pelo controle do Monte Seelow. A montanha rochosa é apenas 100 metros mais alta que a planície, mas foi o suficiente para que 80 mil se entrincheirassem e matassem até um milhão de soldados soviéticos enviados em massa para dominar o inimigo e abrir o caminho até Berlim.
Essa história deixou suas marcas, tornando Seelow um exemplo da maior verdade da guerra: os vencedores ficam com os espólios e, principalmente, com a chance de impor a sua versão dos fatos.
Depois que os Aliados esmagaram a Alemanha de Hitler, o Monte Seelow se tornou um exemplo para Stalin. Dois escultores soviéticos, Lev Kerbel e Vladimir Zigal, criaram uma estátua de bronze de um soldado do Exército Vermelho olhando enlutado em direção à pátria, de acordo com a diretora do monumento, Kerstin Niebsch.
Vidas descartáveis
A figura passa “mais tristeza que raiva”, mas sem deixar dúvidas de sua superioridade – moral e militar –, ao se erguer no chão onde a Alemanha nazista foi trucidada. Sob a estátua e o penhasco sobre o qual foi construída, é possível ver os túmulos e 66 soldados soviéticos mortos em batalha, alguns com apenas 19 anos de idade, ao lado de lápides adornadas com estrelas negras, ao invés do vermelho dos comunistas.
Trata-se de uma imagem poderosa, cercada de árvores e de uma vista estonteante da planície onde esses homens encontraram a morte. Conforme Niebsch destacou a diversos visitantes durante uma visita recente, esse é um lugar que mostra como a vida humana pode se tornar descartável. “Até mesmo homens acostumados às agruras da vida”, como um grupo recente de oficiais da antiga república soviética da Geórgia, “engolem o choro”.
A próxima camada da história digna de nota é o período da Alemanha Oriental, entre 1972 e 1989. À medida que os soviéticos abriam mão de seu comando sobre a Alemanha socialista, o controle do memorial de Seelow foi entregue às autoridades locais.
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Um museu de troncos e pequenas janelas de barras de ferro foi construído, imitando as trincheiras cavadas pelos nazistas antes do ataque soviético. O exército da Alemanha Oriental elaborou uma sequência de cerimônias da troca da guarda no local, incluindo até desfiles de tochas.
A ênfase era na inquebrável aliança entre soviéticos e alemães orientais. Lápides de mármore vermelho com o nome de soldados soviéticos foram transferidos para as proximidades do cemitério de 1945.
Em uma mostra das inconstâncias que levaram à queda da Alemanha Oriental, os restos mortais dos soldados veteranos cujos nomes estavam nas lápides não foram transferidos nos anos 1970, mas apenas em 2006, depois que o erro foi percebido.
A Alemanha Oriental também exibiu orgulhosamente uma das luzes poderosas que o Marechal Georgi P. Zhukov utilizava para iluminar o campo de batalha quando ordenou que seus soldados avançassem antes do amanhecer em 16 de abril de 1945.
Foi somente após a queda do Muro de Berlim que se admitiu que aquelas luzes, ao invés de auxiliarem o ataque soviético, na verdade cegavam os soldados do Exército Vermelho e destacavam a silhueta dos soviéticos para que os nazistas atirassem, graças à luz refletida na fumaça que cobria o campo de batalha.
Porém, apesar dos erros, Zhukov triunfou e liderou a tomada de Berlim, ainda que uma semana após o prazo estipulado por Stalin: o Dia Internacional do Trabalhador, no primeiro de maio.
Feridas abertas
Atualmente, o Monte Seelow reflete o desconforto com a Guerra Fria que, embora tenha acabado, ainda deixa feridas abertas.
Na Rússia, onde as mudanças políticas tornam o passado imprevisível, a Igreja Ortodoxa, que sobreviveu ao comunismo ateu, surgiu como uma defensora ferrenha da memória dos soldados soviéticos, conforme atesta uma cruz ortodoxa de mármore preto instalada no local.
Assim como outras embaixadas das antigas forças aliadas em Berlim, a Rússia mantém um adido para túmulos de guerra e para as centenas de cemitérios soviéticos espalhados pela Alemanha.
Apesar dos muitos problemas que o ocidente enfrenta atualmente com o Kremlin, a cooperação entre alemães e russos – voluntários e oficiais – segue intacta, contribuindo para outra visão sobre o significado de Seelow: um símbolo de reconciliação.
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Calafrios
Yevgeny A. Aleshin, o adido russo para túmulos de guerra, afirmou esperar que os corpos encontrados em maio sejam enterrados com as honras devidas em um cemitério próximo. Centenas de corpos são descobertos e enterrados nesta região todos os anos, destacou.
Desde a reunificação, a Alemanha ganhou a reputação de confrontar sua história. Contar sobre o caos e o horror da guerra é uma função importante exercida por testemunhas como Günter Debski, de 89 anos, que visita escolas e conta histórias acompanhadas, no seu caso, de pedaços de papel cuidadosamente preservados, assim como fotos e estilhaços recuperados entre os restos da mochila que salvou sua vida.
Debski sobreviveu a diversos encontros com a morte em 1945. Ele foi forçado a lutar ao lado dos nazistas, foi aprisionado pelo Exército Vermelho, marchou até a fronteira com a Rússia, em Brest, e então foi libertado, para voltar por conta própria a Berlim.
Em um hotel da cidade, suas histórias causavam calafrios.
“De repente, tudo começou”, afirmou a respeito do ataque soviético ao Monte Seelow em 16 de abril de 1945. “Os tiros vinham de todos os lados. Tudo tremia e eu não conseguia nem imaginar o que estava acontecendo. Cheguei a pensar que se tratava de um terremoto. A única coisa que talvez se pareça com aquilo foi o bombardeio de Dresden”, afirmou, referindo-se ao ataque aéreo que ocorreu na cidade em fevereiro de 1945 e que ele também testemunhou.
Debski conta que foi inesquecível o grito de guerra dos soldados soviéticos, que atacavam apesar da artilharia alemã.
O que vai acontecer com a história quando os últimos sobreviventes se forem ainda é uma questão sem resposta. Adolescentes sonolentos e outras crianças vistas em três visitas recentes ao Monte Seelow sugerem que é preciso criar uma apresentação mais animada para o século XXI, ao invés apenas textos detalhados que são comuns nos museus alemães que contam sobre os nazistas e o passado comunista.
Ainda que fossem jovens demais para ter passado pela guerra ou pelo Holocausto, visitantes mais velhos sabem porque vêm a Seelow.
“Muitas pessoas morreram aqui”, afirmou Benjamin Langhammer, de 54 anos, músico de Erfurt.
“Muitas histórias nos foram contadas” nos tempos da Alemanha Oriental, disse ele. “E sempre soubemos que o que ouvimos é apenas metade da verdade, apenas a versão dos vencedores.”
É importante corrigir as distorções, afirmou. Embora, “como alemão, a última coisa que você pode fazer é dar lição de moral nos outros, não é?”
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