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A ascensão e queda dos “faraós dos Bitcoins” e seu esquema de pirâmide que enganou milhares de brasileiros

Hoje presos, Glaidson e Mirelis ludibriaram quase 90 mil pessoas entre 2015 e 2021.
Hoje presos, Glaidson e Mirelis ludibriaram quase 90 mil pessoas entre 2015 e 2021. (Foto: Reprodução/Redes Sociais)

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Entre 2015 e 2021, Glaidson Acácio dos Santos e Mirelis Yoseline Diaz Zerpa movimentaram nada menos do que R$ 38 bilhões a partir de um dos maiores esquemas de pirâmide financeira já registrados no país.

Hoje presos, os dois enganaram quase 90 mil pessoas — de artistas famosos a trabalhadores de baixa renda, todos encantados com a ideia de enriquecimento fácil e rápido.

A ascensão e queda do casal, e de muitos de seus “clientes” ludibriados, é o mote do livro ‘Queda Livre: A História de Glaidson e Mirelis, Faraós dos Bitcoins’, escrito pelos jornalistas Chico Otavio e Isabela Palmeira.

A seguir você lê um trecho da obra, recém-lançada pela editora Intrínseca.

A correria no saguão do Barceló Bávaro Palace dava o tom do que seria o grande encontro da GAS Consultoria e Tecnologia.

Os 500 convidados da festa, muitos de origem humilde, mal disfarçavam o deslumbramento ao chegar a um dos mais luxuosos resorts de Punta Cana, paraíso azul-turquesa da República Dominicana.

Desceram de dois voos fretados pela GAS, nos dias 24 e 25 de agosto de 2021, para o lançamento do programa de compliance da empresa — ou seja, quais regras seriam seguidas a partir dali para garantir que os negócios estivessem de acordo com a legislação, sem atos ilícitos.

Com isso, Glaidson Acácio dos Santos queria conferir mais legitimidade à empresa e dar uma resposta às pressões de parte dos sócios.

Muitos deles não aceitavam o extremo descuido nas práticas gerenciais do grupo, com a contabilidade de milhões de reais praticamente anotada em papel de embrulhar peixe e comprovantes enviados aos clientes por WhatsApp.

No Rio de Janeiro, o anfitrião do evento atravessava a noite em boates na Barra da Tijuca, Zona Oeste da cidade, bairro onde estava hospedado na casa de uma amiga.

O CEO seria a ausência da festa. Com o passaporte retido para a emissão de visto no consulado americano no Rio, Glaidson não pôde embarcar para a ilha caribenha.

Na volta da noitada, exausto, se jogou na cama, de blusa de malha e cueca. Maços de notas de real, dólar, euro e barras de ouro se espalhavam pela casa.

Ele caiu no sono com a convicção de que, em pouco tempo, seria um player do mercado, capaz de fazer frente aos bancos tradicionais.

A favor dele, estava a fé inabalável da clientela, cerca de 89 mil pessoas, que viam nas criptomoedas da GAS, sem entender nada do novo negócio, a redenção econômica de cada uma delas, um atalho fácil para a prosperidade.

“Perdeu, filho da puta!”, gritavam os agentes da Polícia Federal (PF), às seis horas da manhã de quarta-feira, 26 de agosto, no quarto onde Glaidson, o Faraó dos Bitcoins, dormia.

“Perdeu, perdeu”, insistiam os homens, puxando o lençol da cama. Ele deu um salto e demorou alguns segundos até entender que aquilo não era um pesadelo.

Os homens de farda camuflada, armados com submetralhadoras e pistolas, eram agentes do Comando de Operações Táticas da Polícia Federal (COT), braço da elite da PF chamado para casos difíceis. Estavam ali para levá-lo preso na defl gração da Operação Kryptos.

As lágrimas desciam pelo rosto enquanto o Faraó ouvia uma representante do Ministério Público Federal (MPF) explicar a decisão judicial. Ele não podia aceitar que terminava assim, com um xingamento banal, a vida de milionário.

Para as autoridades brasileiras, Glaidson tentava obter o visto americano porque estava na iminência de fugir e deixar um rombo financeiro em um dos maiores esquemas de pirâmide já vistos no Brasil.

Por isso, a PF pediu ao consulado dos Estados Unidos para reter o passaporte dele. A voz de prisão era o fim da euforia, movida a dinheiro fácil e ambição, e o início de um tempo de perdas, dor e incertezas.

Naquela mesma manhã, a PF cumpriu ainda nove mandados de prisão e 15 de busca e apreensão no Rio, em São Paulo, no Ceará e no Distrito Federal.

Na casa da anfitriã do Faraó, a contadora Rejane Nogueira Laport, os agentes encontraram R$ 20 milhões em espécie, barras de ouro, joias e carros de luxo.

Junto a alguns rolos de dinheiro apreendidos estavam os nomes dos clientes e as datas dos aportes. Havia rolos com data de 2019.

As notas eram mais uma prova de que a jogada do Faraó era esconder por trás do inovador investimento em criptomoedas um esquema clássico de pirâmide financeira.

Esses maços jamais viraram bitcoins, contrariando o que ele assegurava aos investidores. Ao oferecer a garantia de juros mensais de 10%, pagos sempre em dia, ele nada mais fazia do que usar o dinheiro que entrava para cobrir os compromissos com os primeiros clientes da fila

Para dar ao golpe uma aparência de seriedade, sempre caprichando na linguagem rebuscada, Glaidson teve a ajuda fundamental da mulher, a venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Zerpa.

Hábil com números e com a tecnologia blockchain [que possibilita as transações com moedas digitais], Mirelis foi apontada por muitos como a verdadeira mentora do esquema.

As investigações mostraram que, anos antes, ela havia aplicado o mesmo golpe em seu país de origem, de onde fugiu para escapar dos bolivarianos.

Por operar à revelia da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), Glaidson foi acusado de crimes contra o sistema financeiro nacional, de organização criminosa e de lavagem de dinheiro.

De acordo com a denúncia, ele e outras 16 pessoas eram responsáveis pela montagem, em Cabo Frio, na Região dos Lagos fluminense, de um esquema que movimentou R$ 38 bilhões entre 2015 e 2021 — dos quais, apenas R$ 200 milhões foram apreendidos.

Do restante, é sabido apenas que Mirelis desapareceu após sacar R$ 1 bilhão em bitcoins no dia seguinte ao das prisões.

Com a notícia da prisão, a “família GAS” começou a desmoronar. Investidores famosos, como o ator Rafael Portugal, do canal humorístico Porta dos Fundos, além de amargar o prejuízo, tiveram de dar explicações públicas.

Na base da pirâmide, onde estavam os clientes mais humildes, o choque foi maior.

A lojista Érica da Silva Pereira, de 40 anos à época, assistia à TV na cozinha, na periferia de São Pedro da Aldeia, município vizinho de Cabo Frio, quando o apresentador do Bom Dia Brasil, da Rede Globo, anunciou a prisão, a suspensão do negócio e o bloqueio dos bens da organização criminosa.

Ela sentiu o corpo gelar. Ao investir toda a economia da família nos bitcoins do Faraó, Érica sonhava em não trabalhar mais como comerciária e viver de renda. Havia acabado de contratar um plano de saúde para passar por uma cirurgia de retirada de um nódulo na tireoide e fugir da fila do SUS.

De um lado, pagamentos dos juros sempre em dia, a vida suntuosa de Glaidson. Do outro, a falta de perspectivas profissionais em São Pedro, a doença na tireoide, os dois filhos para criar. Todos os motivos explicariam a aposta de Érica no esquema do Faraó.

No entanto, ela própria confessou o que mais pesou: “Foi uma colega de trabalho. Ela entrou bem antes. Acompanhei as mudanças. Ela passou a desfilar de carrão, a usar as melhores roupas, perfumes importados, a ir a restaurantes chiques, a comer comida japonesa e a fazer viagens. Muitas viagens. Se aconteceu com ela, podia acontecer comigo também. Então, fiz o meu primeiro aporte”.

Esse olhar para a colega do lado, que arrastou Érica para o efeito manada, é o campo de estudos da psicanalista Vera Rita de Mello Ferreira.

Presidente da Associação Internacional de Pesquisa em Psicologia da Economia (Iarep, na sigla em inglês), ela explica que, em geral, o ser humano padece de otimismo excessivo e não enxerga risco futuro. “É o ‘tudo, tudo vai dar certo’”, diz.

Uma autoconfiança exagerada faz com que a pessoa consiga enxergar risco, mas sobretudo para os outros. Mesmo que exista a consciência de que se trata de um esquema de pirâmide, por exemplo, ela se convence de que vai entrar e sair rapidamente.

“A pessoa teme ficar de fora. Odeia perder qualquer coisa, incluindo oportunidade. Está tomada pela euforia.”

O funcionário público João Duarte também se deixou seduzir pelo súbito enriquecimento dos amigos. Ele havia migrado de cliente para consultor da empresa e tinha se saído tão bem com a conquista de novos contratos que estava entre os convidados no resort, em Punta Cana, para o lançamento do programa de compliance.

Duarte já havia separado no cabide o traje que usaria à noite, no jantar de gala na abertura do evento. Um dia após o check-in, contudo, soube da prisão de Glaidson.

Hoje ele se lembra de que os celulares começaram a soar em todos os cantos do hotel. Do Brasil, clientes desesperados cobravam dos consultores da GAS garantias de que teriam o dinheiro de volta.

Era bastante irônico que a prisão do CEO da GAS acontecesse durante o suntuoso evento de lançamento daquele programa. E, à ironia, logo somou-se o pânico diante da perspectiva de outras prisões.

Os voos panorâmicos em Punta Cana sempre foram uma das atrações para que os turistas desfrutassem a vista das águas azul-turquesa do oceano e das densas florestas tropicais da região.

Contudo, naquele 26 de agosto a presença de helicópteros que sobrevoavam o resort causava aversão e desespero. “A polícia está chegando”, alarmavam uns. “É a TV Globo que veio nos filmar!”, exclamavam outros.

Os mais influentes e sócios que ali estavam logo se tornaram inacessíveis, trancados nos quartos sem mostrar a cara para uma multidão afoita por informações e garantias.

Muitos temiam voltar ao Brasil pelo risco de prisão logo no desembarque. Sem condições de permanecer por conta própria, os consultores e as respectivas famílias tiveram de embarcar em voos fretados nos dias 4 e 5 de setembro.

Eles garantem que, para escapar da Justiça brasileira, um grupo de indiciados no inquérito permaneceu em solo dominicano, onde teria alugado uma casa.

“Eram muitos sócios, mas a maioria não estava nem aí. Qualquer pessoa poderia ser consultor da GAS. Não havia processo de recrutamento e seleção. Alguns consultores tinham passagens pela polícia — havia até homicidas e estelionatários. Não havia filtragem alguma”, conta João.

Cada um dos 80 sócios de Glaidson organizava a relação com o cliente da maneira que achasse melhor. Nada era padronizado.

Ele afirma que no curso do inquérito da PF foram encontrados investimentos que chegavam a R$ 900 mil, em dinheiro vivo, de clientes procedentes da Favela do Lixo, em Cabo Frio, num sinal claro de que o tráfico de drogas usava as empresas de Glaidson para lavar dinheiro.

A imagem do Faraó sendo preso, de cabeça baixa e algemado, nem de longe lembrava a do empresário que prometia fortuna, desfilava em carros importados e promovia festas memoráveis em Cabo Frio.

Conteúdo editado por: Omar Godoy

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