O homem suspeito de atacar o Salman Rushdie, Hadi Matar, cresceu nos Estados Unidos e nasceu nove anos depois de o Aiatolá Khomeini decretar a famosa fatwa contra o escritor. Pouco se sabe dele, embora alguns conhecidos tenham dito aos repórteres (como sempre acontece nesses casos) que ficaram surpresos, porque o homem parecia uma pessoa normal e tranquila.
Se esse for mesmo o perfil de Matar, mais uma vez estará demonstrado o efeito que uma ideologia violenta, agressiva e totalitária exerce sobre as pessoas. Ainda não se sabe, porém, se é a ideologia que escolhe o homem ou se é o homem que escolhe a ideologia. Sem dúvida existe uma relação dialética entre personalidade e ideologia.
No futuro, a história tratará do caso Salman Rushdie, consequência da publicação, em 1988, do romance “Os Versos Satânicos”, como um momento-chave para o islamismo. Afinal, a reação britânica e do Ocidente como um todo foi fraca e hesitante, o que levou os muçulmanos a imaginarem o Ocidente como uma espécie de fruto podre prestes a cair da árvore, suscetível, portanto, a um ataque terrorista. O caso Rushdie foi para o Islã o que a anexação da Crimeia foi para Vladimir Putin ou a ocupação de Saarland foi para Hitler.
O Reino Unido rompeu relações diplomáticas com o Irã por causa da sentença de morte decretada contra Rushdie, mas essas relações foram restauradas assim que o regime iraniano amenizou a situação. O país disse que não ajudaria nem protegeria quem tentasse matar Rushdie. Claro que o Reino Unido não rompeu relações diplomáticas depois que o regime endureceu novamente a sentença, anunciando que a fatwa continuava em vigor.
Dentro do Reino Unido, ninguém foi processado por desejar a morte de Rushdie, um desejo que não é apenas retórico. Essa inação sem dúvida foi pensada para se manter a paz, evitar o surgimento de mártires e assim por diante, mas os muçulmanos a interpretaram como um sinal de fraqueza e covardia, e como uma falta de compromisso para com os princípios da democracia liberal. Novamente eles viram o Ocidente como uma fruta podre prestes a cair do pé.
Quanto a isso, eles não estavam totalmente certos. Para muitos britânicos, Rushdie não era uma personalidade admirável. O escrito fazia duras críticas Margaret Thatcher, a primeira ministra da época que, apesar das críticas, defendeu Rushdie. Em 1982, por exemplo, ele escreveu um ensaio que começa assim:
“O Reino Unido não é a África do Sul. Sei disso. Nem é a Alemanha nazista. Também sei disso de fonte segura. E a verdade é que... Auschwitz não foi reconstruído pelos Aliados. Mas acho estranho que as pessoas que usam essas desculpas raramente percebam que suas justificativas são um sinal da gravidade da situação. Porque se o que há de bom a se dizer sobre o Reino Unido é que o extermínio da pessoas racialmente impuras ainda não começou, ou que o princípio da supremacia branca não foi ainda consagrada pela Constituição, é porque algo saiu muito errado”.
Isso é de uma estupidez incômoda. Rushdie está querendo dizer que a falta de Auschwitz é algo sem importância. Ou, como disse o nacionalista francês Jean-Marie Le Pen em outro contexto, que o Holocausto foi apenas um detalhe histórico. A lógica não condiz com a educação de Rushdie, pela qual ele pagou caro. É como se alguém, ao negar ter cometido um assassinato, tivesse negado a prova da própria maldade. Afinal, tudo o que ele pode dizer em sua defesa é que não cometeu o crime.
Apesar de ter associado o governo britânico ao regime nazista, Rushdie recebeu proteção especial desse mesmo governo, à custa do contribuinte, por vários anos. E o governo agiu certo. A liberdade de expressão deve ser defendida, independentemente de a pessoa que a exerce ser ou não admirável. Ninguém defende que a liberdade de expressão se aplique apenas com aqueles com os quais concordamos que devem ser ouvidos.
Salman Rushdie está hospitalizado. Ele foi atacado por um inimigo da liberdade de expressão enquanto defendia a liberdade de expressão, princípio do qual sempre foi uma voz importante e inflexível. O homem que o atacou e outros de mesma mentalidade acreditam numa ideologia estranha que o Ocidente considera repulsiva. Mas será que essas pessoas são a única ou a principal ameaça à liberdade de expressão no Ocidente hoje em dia?
Theodore Dalrymple é colaborador do City Journal, membro do Manhattan Institute e autor de vários livros.
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