O professor da Universidade Nacional de Seul Byung-Yeon Kim começou a entrevistar desertores norte-coreanos sete anos atrás para descobrir mais sobre a economia da Coreia do Norte. Seria de se imaginar que não havia muito o que se descobrir: o regime hermético do Norte, frequentemente descrito como stalinista, parecia presidir sobre um sistema centralmente planejado e tosco, com camponeses trabalhando arduamente em fazendas coletivas e fábricas estatais, ganhando muito pouco e ficando mais pobres a cada ano.
Na realidade, como explica o professor em seu novo livro, "Unveiling the North Korean Economy: Collapse and Transition", essa imagem popular está quase totalmente equivocada. Por uma questão de necessidade, hoje virtualmente todos os norte-coreanos, desde agricultores até comandantes do Exército, compram e vendem bens e serviços em mercados capitalistas, para sobreviver ou, em alguns casos, para enriquecer. A economia está crescendo e os salários vêm subindo. Até as sanções mais recentes das Nações Unidas, a Coreia do Norte era tão dependente do comércio internacional quanto a Itália ou Reino Unido.
Essa realidade é decepcionante para quem esperava que a insatisfação popular fosse assinalar o fim do regime norte-coreano; apesar de décadas de isolamento, o país se estabilizou economicamente, ao mesmo tempo em que desenvolve rapidamente seus arsenais nuclear e de mísseis. O professor é mais otimista: ele vê o crescimento dos mercados e a chegada de mais dinheiro como uma ameaça ao ditador Kim Jong Un – que o presidente Donald Trump ironizou, chamando de “Homem do Foguete”— e um ponto de pressão que mundo externo pode explorar. Conversamos na semana passada, pouco depois de a Coreia do Norte ter testado seu primeiro artefato termonuclear, mas antes do lançamento de seu míssil mais recente, que sobrevoou o Japão. A seguir, uma transcrição levemente editada da entrevista.
Como a economia norte-coreana mudou sob Kim Jong-un?
Byung-Yeon Kim: Desde que Kim chegou ao poder, em 2011, a economia se estabilizou. O índice de crescimento não é alto, mas a economia vem crescendo entre 1% e 2% nos últimos cinco anos. Somente no biênio 2015 e 2016, a queda da economia brasileira foi 7,2%.
Não se trata mais de uma economia stalinista, na realidade. A Coreia do Norte viveu uma crise grave no final dos anos 1990, quando centenas de milhares de pessoas morreram de fome devido à carestia generalizada. Depois disso a economia mudou dramaticamente. Antes, o regime reprimia qualquer tipo de atividade de mercado. Hoje, porém, as famílias participam mais da economia informal que da economia oficial. Entre 70% e 90% da receita das famílias vem dos mercados.
A razão disso é simples: o governo não tem como pagar salários que garantam a sobrevivência das pessoas. Conversei com um diplomata de alto nível que trabalhava em Londres e no ano passado desertou, indo viver na Coreia do Sul. Ele disse que recebia salário mensal de 2.000 wons norte-coreanos. Na época, a taxa de câmbio de mercado era de 3.000 wons por um dólar. Uma família norte-coreana média precisa de US$50 para sobreviver por um mês. A parte restante dessa necessidade é suprida pelo mercado. Cerca de 70% das famílias norte-coreanas participam do mercado, enquanto apenas 50% trabalham na economia oficial. É uma economia tremendamente informalizada ou de mercado.
Em segundo lugar, a Coreia do Norte não é mais uma economia fechada. Estimo a razão de dependência do comércio em mais de 50%. A média mundial é 58%.
Os críticos dizem que as sanções não vão funcionar porque a Coreia do Norte seria em grande medida autossuficiente. Mas, na realidade, ela precisa de comércio para sobreviver.
Byung-Yeon Kim: Exatamente. O comércio e os mercados são uma faca de dois gumes. Os mercados funcionam bem, mas também expõem a Coreia Norte a um potencial choque externo, através do comércio. Mais de 70% dos bens de consumo são importados da China. Essas transações requerem uma receita externa, e essa receita vem do comércio. Assim, quando o comércio é atingido, os mercados também podem ser fortemente afetados. Então os dois pilares que sustentam o sistema podem desabar.
Estamos vendo sinais de que isso esteja acontecendo?
Byung-Yeon Kim: Ainda não. Se você olhar os preços do mercado na Coreia do Norte, verá que não mudaram. O comércio foi fortemente atingido: a China parou de importar carvão por boa parte deste ano, de modo que as exportações da Coreia do Norte à China tiveram queda de 25% no primeiro semestre. Mas as importações aumentaram. Ou seja, alimentos e bens de consumo ainda estão chegando à Coreia do Norte, através da China.
Sabemos que alguns norte-coreanos são ricos. Sabemos que os norte-coreanos ricos e de classe média possuem algumas economias, de modo que podem gastar esse dinheiro. Mas se o país importar mais do que ele exporta este ano e em 2018, podemos prever possíveis problemas com a balança de pagamentos, porque a receita com exportações será insuficiente para garantir a continuidade das importações.
A abertura da economia norte-coreana reflete uma decisão reformista consciente de Kim Jong Un, como foi o caso de Deng Xiaoping na China?
Byung-Yeon Kim: Kim Jong Un é mais sensato que seu pai, Kim Jong Il, na gestão da economia. A abertura maior aconteceu na década de 1990 e foi imposta à Coreia do Norte pela crise alimentar. Mas Kim Jong Il acreditava que os mercados eram burgueses e, em 2009, tentou reprimi-los com a reforma monetária. Ele lançou novas cédulas e impôs um limite aos valores que cada pessoa podia trocar; quem possuísse mais que o teto não poderia trocar seu dinheiro. Mas o esquema fracassou redondamente. Para apaziguar a fúria pública, um funcionário de alto escalão foi fuzilado e o primeiro-ministro pediu desculpas à população.
Kim Jong Un talvez tenha pensado “ok, reprimir o mercado talvez não seja possível porque sem o mercado as pessoas não sobrevivem hoje. Então, embora eu não goste do mercado, sem ele não vou conseguir me conservar no poder.” Ou seja, é uma espécie de endosso do mercado, mas é um endosso forçado. As atividades no mercado são toleradas hoje, e não há penalidades para quem atua no mercado.
Mas Kim não vem promovendo reformas para ampliar o mercado ou melhorar seu funcionamento?
Byung-Yeon Kim: Não, não vejo nenhum indício claro de que as reformas de mercado tenham sido institucionalizadas. Por exemplo, a China iniciou reformas em 1978, instituindo o sistema de responsabilidade familiar: as famílias eram autorizadas a cultivar suas terras, entregar alguma parte do que colhiam ao governo e vender o restante no mercado. Uma reforma semelhante foi adotada na Coreia do Norte, mas não temos informações confiáveis sobre se essa reforma abrange todas as fazendas coletivas ou se foi uma espécie de experimento. Se olharmos as cifras da produção agrícola norte-coreana nos últimos quatro ou cinco anos, elas subiram, mas não tanto quanto subiram na China. Ou seja, mesmo que a Coreia do Norte tenha feito experimentos com esse tipo de reforma, ainda deve ter sido uma reforma parcial e cautelosa. A mesma coisa se aplica ao mercado. A Coreia do Norte faz alguma coisa, ela pode experimentar outras coisas, mas ainda há restrições institucionais que impedem esses mercados de crescer e converter-se em um sistema econômico de mercado pleno.
É possível para o regime conservar esse estado de meio-termo, preservando a estabilidade sem promover mais reformas?
Byung-Yeon Kim: Acho que não. Se você olhar para os velhos países socialistas, eles não eram sustentáveis, no longo prazo. Existem dois cenários possíveis para a Coreia do Norte lançar reformas ao estilo das chinesas. O primeiro é o cenário de concessões. Se não houver repressão, em algum momento o mercado crescerá a ponto de ficar grande demais para ser controlado. Então ele vai tirar poder do ditador. Kim Jong Un pode dizer: “Podem fazer o que vocês quiserem com a economia, mas não ameacem meu poder político”. Isso levará à adoção do capitalismo ao estilo chinês.
O outro cenário é mais violento. Se Kim perder o poder, de alguma maneira, seu sucessor pode querer abrir a economia. Também nesse caso é possível que comecemos a assistir a reformas no estilo chinês.
E se Kim optasse por não fazer concessões e tentar conservar as restrições atuais aos mercados?
Byung-Yeon Kim: Acho que isso levaria a uma luta bastante violenta entre os mercados e o Estado. Politicamente falando, o Estado está intacto; não há sinais de uma Perestroika ou Glasnost. Mas três coisas estão solapando o poder de Kim. O primeiro fator são as elites: elas ganham muito dinheiro com o comércio, porque uma parte importante do comércio envolve corrupção. Assim, por exemplo, os exportadores norte-coreanos vendem cobalto à China, mas os preços que relatam são inferiores aos do mercado mundial. A diferença entre esses preços relatados e o preço no mercado mundial vai parar nos bolsos dos exportadores.
Ao mesmo tempo, os funcionários de médio escalão não podem sobreviver sem propinas. As pessoas que oferecem propinas são participantes no mercado. Assim, os incentivos para esses funcionários de médio escalão estão equivocados. Politicamente, esses funcionários precisam ser leais ao ditador. Economicamente, precisam ser leais ao mercado.
Finalmente, a população entende que não pode viver sem o mercado. O sistema estatal de racionamento está quebrado, de modo que os cidadãos se desligaram da economia oficial. E eles mudaram sua mentalidade, também, adequando-a ao funcionamento do mercado.
Portanto, as elites, os funcionários de médio escalão e os cidadãos comuns –todos os três elementos principais do sistema mudaram. Querem preservar o mercado porque esse é seu meio de sobrevivência. Isso vai continuar até chegar ao ponto em que Kim seja obrigado a decidir que caminho quer seguir. E, se ele resistir, haverá um conflito grande.
Isso tudo também se aplica aos militares?
Byung-Yeon Kim: Sim, eles não podem sobreviver sem o mercado. Os cofres do governo estão quase vazios, e o governo não tem como repassar verbas às instituições do Estado. Assim, cada instituição tem suas próprias empresas, que ganham dinheiro e fornecem recursos às instituições de Estado como o exército, o Partido, o gabinete e os governos locais.
Você está dizendo que hoje todos esses grupos têm interesse em manter o sistema estável, mas que, com o tempo, os interesses deles vão entrar em choque com os de Kim.
Byung-Yeon Kim: Sim. Entrevistei vários dos refugiados norte-coreanos que vieram para a Coreia do Sul após a reforma monetária fracassada. Eles disseram estar muito decepcionados, porque investiram muito esforço, tempo e sacrifício para montar seus negócios. Com a reforma monetária, o Estado tirou tudo deles. Por isso eles manifestaram muita raiva de Kim Jong Il. Se esse tipo de coisa voltar a acontecer, pode ser bastante perigoso para o ditador.
O que isso significa para os Estados Unidos e outros que querem pressionar a Coreia do Norte a abrir mão de seu programa nuclear? Eles deveriam estar procurando meios de sufocar a economia norte-coreana ou de abri-la mais, para erodir o poder de Kim Jong-un?
Byung-Yeon Kim: No curto prazo é preciso sufocar, porque o comércio e os mercados são as armas que podem ser utilizadas para mudar a situação. No médio prazo, porém, essas são também as armas que podem mudar a Coreia do Norte, e elas precisam ser utilizadas.
Meu conselho aos americanos é que aguardem para que as sanções realmente exerçam efeito, em vez de traçar planos para um ataque. Isso pode levar mais tempo, mas há evidências de que as sanções podem funcionar desta vez.
Eles deveriam dedicar mais recursos às sanções. Sanções secundárias funcionarão apenas se forem gastos recursos para identificar as empresas, as instituições e as pessoas que trabalham com empresas norte-coreanas. Isso requer um esforço grande.
É claro que a China deveria ajudar, e não ficar fazendo hora. Quero persuadir os políticos chineses que, se as sanções realmente funcionarem no curto prazo, eles poderão chegar a negociações em menos tempo. Depois disso os problemas serão mais limitados e haverá uma relação econômica maior entre China e Coreia do Sul. Portanto, um passo para trás significa três passos para frente.
(*) Nisid Hajari escreve editoriais sobre a Ásia para o “Bloomberg View”. Ele foi editor gerente e editor de internacional da revista “Newsweek”, além de editor e redator da “Time Asia” em Hong Kong. Hajari é autor de "Midnight's Furies: The Deadly Legacy of India's Partition".
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