No dia 14 de fevereiro, os Estados Unidos passaram por mais um massacre com armas de fogo em ambiente escolar. Nikolas Cruz, de 19 anos, deixou 17 mortos e outros 15 feridos em uma escola de Ensino Médio em Parkland, uma pequena cidade na Flórida a cerca de uma hora de carro de Miami. O atirador retornou armado de um fuzil semiautomático à escola de onde fora expulso e abriu fogo livremente antes de camuflar-se na multidão de alunos que fugia pelos portões.
O incidente levantou uma série de questionamentos sobre as condições que podem estar motivando o surgimento desses jovens atiradores. Mais uma vez, parte da responsabilidade recaiu sobre um alvo polêmico: os jogos de videogame. Ao falar sobre o massacre na Flórida, o governador de Kentucky, Matt Bevin, criticou a “cultura de morte” que os videogames estão criando ao, segundo ele, “celebrarem o extermínio de pessoas”. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, seguiu o mesmo caminho: “Ouço mais e mais pessoas afirmarem que o nível de violência nos videogames está realmente moldando os pensamentos dos nossos jovens”, constatou. Em 2012, Trump já havia afirmado que “a violência nos jogos está criando monstros”.
Opinião: Legítima defesa e resistência à tirania não justificam porte de rifles de assalto
O assunto não é estranho à realidade brasileira. Diversos jogos já tiveram venda proibida no Brasil sob o argumento de mostrar violência “gratuita” ou “extrema”. Em 2006, o senador Valdir Raupp (PMDB-RO) chegou até mesmo a propor um Projeto de Lei que tornava crime fabricar ou comercializar videogames “ofensivos aos costumes e às tradições dos povos”, mas desistiu da proposta em 2012. Jair Bolsonaro (PSL-RJ), deputado federal, defendeu recentemente o projeto: “Videogame é um crime. Você tem que coibir o máximo possível, não se aprende nada”, afirmou.
Essa preocupação com a influência que os jogos podem ter na sociedade não é, no entanto, uma preocupação moderna – na verdade, podemos encontrar suas origens séculos atrás, muito antes da existência dos jogos eletrônicos.
Contra os jogos
Na Europa do século 17, jogos de todos os tipos já eram vistos com grande desconfiança. Representavam uma falta de moderação obscena e uma ausência de propósito que não combinavam com a seriedade e a religiosidade que a sociedade almejava. Jogos que envolviam elementos de acaso, como dados e cartas, eram vistos como incompatíveis com o pensamento cristão, que acreditava não existir azar e sim um determinismo divino. Mesmo durante a Revolução Científica, o acaso e a diversão dos jogos entravam em conflito com a racionalidade matemática e o desejo de dominar a natureza humana. Por isso, os jogos foram aos poucos sendo relegados apenas às crianças, que supostamente seriam ainda incapazes de conter seus prazeres e emoções.
Com a Revolução Industrial no século 18, os jogos passaram a ser ainda mais marginalizados, considerados fúteis e desnecessários para uma sociedade que valorizava a dedicação ao trabalho e a produtividade. Mesmo as brincadeiras infantis passaram a ter um caráter de “treinamento”, como se estivessem preparando as crianças para atividades que lhes seriam essenciais à vida adulta. Jogar pelo simples prazer de jogar era encarado como uma banalidade, o que criou uma dificuldade em conceber brincadeiras que não tivessem algum objetivo oculto ou propósito prático que as legitimassem. Essa concepção é a responsável pela nossa percepção atual de que jogos deveriam ser sempre “educativos” – e que um jogo violento estaria, de certa maneira, “educando” as crianças a serem igualmente violentas.
Em 1938, o pensador holandês Johan Huizinga desenvolveu um estudo revolucionário sobre os jogos que contrariava a crença anterior em seu papel estritamente educacional. Sua teoria era de que os jogos não eram uma maneira de aprendermos habilidades futuras, mas sim uma atividade sem propósito que nos caracteriza como seres humanos. Segundo ele, jogos e brincadeiras são delimitados por um “círculo mágico”, uma fronteira que separa o jogo das demais coisas da vida normal. Dentro desse “círculo” passam a valer regras completamente distintas do restante de nossa existência cotidiana, com objetivos próprios e códigos de conduta peculiares. Assim que essa fronteira imaginária se dissipa, o jogo termina e suas regras desaparecem, voltando a valer as regras do mundo usual. Para Huizinga, quando ensinamos uma criança a brincar imediatamente a ensinamos também que aquelas regras são momentâneas e não poderão ser transportadas para o mundo fora do jogo. Entender que a brincadeira está sujeita a regras diferentes das convencionais não é uma consequência, mas sim um pré-requisito para ser capaz de brincar. Por isso, todo jogo é, por definição, um “faz de conta”.
Brincando de matar
Isso não significa que as crianças não aprendam nada quando jogam. Gilles Brougère, professor na Universidade Paris-XIII e uma das maiores autoridades contemporâneas no estudo de jogos, é categórico:
“A criança aprende jogando, mas apenas porque todas as situações que a criança vive contribuem para sua formação num plano ou no outro”.
A função do jogo, portanto, não é pedagógica. A criança brinca principalmente pelo prazer de habitar esses universos de “faz de conta” e os conjuntos distintos de regras que ela não poderia experimentar de outra forma.
Em seu livro Brincando de Matar Monstros, o escritor Gerard Jones aponta que crianças pequenas brincam de super-heróis justamente para experimentar uma sensação de força e poder que lhes é negada pela falta de inserção e de autonomia ao interagir com o mundo dos adultos. De maneira similar, brincadeiras que contêm violência de faz-de-conta permitem que as crianças experimentem, em um ambiente controlado e inofensivo, um aspecto fundamental da vida adulta que muitas vezes lhes causa mais medo do que curiosidade.
Aquilo que nos parece à primeira vista um “apreço pela violência” muitas vezes é apenas um desejo de controle frente às adversidades e aos perigos do mundo adulto, de modo que a fantasia dos videogames pode funcionar como uma maneira de extravasar e enfrentar medos e ansiedades. Segundo Gerard Jones, o excesso de preocupação dos adultos com o entretenimento violento das crianças causa uma “confusão de sinais”, porque ensina às crianças que brincadeiras são equivalentes à vida real quando, pelo contrário, deveriam ser consideradas como um lugar seguro em que fantasias de poder, ainda que violentas, podem ser cultivadas de maneira saudável.
Videogames são excelentes em criar justamente isso: ambientes controlados em que as ações não possuem consequência real para fora deles e que podem ser abandonados ou recomeçados instantaneamente. Quando se “morre” num jogo de videogames, basta começar outra vez. Todo contato com a violência acontece, portanto, de maneira simulada, permitindo lidar com seu impacto sem sofrer de fato suas consequências.
Estudos
As propostas de Gerard Jones, no entanto, são estritamente teóricas – estudos conclusivos sobre o impacto dos videogames no aumento da violência entre os jovens são raros e de difícil execução. O principal fator que atrapalha o estabelecimento dessa relação se dá na universalidade do ato de jogar videogames: estudos indicam que 98,7% dos adolescentes dos Estados Unidos fazem uso de jogos eletrônicos com alguma frequência, enquanto comportamentos violentos, especialmente com armas de fogo, ainda são acontecimentos estatisticamente raros. Países com maior consumo de videogames per capita, como Japão, Canadá e Coreia do Sul, por exemplo, estão entre os países com menor índice de mortes por arma de fogo no mundo. Além disso, mesmo os estudos que apontam comportamentos agressivos vindos de jovens expostos a jogos violentos não são capazes de precisar a relação – isso porque muitos jovens vivem em ambientes violentos, já possuem traços desse comportamento e preferem os jogos dessa natureza justamente para lidar com seus traumas e frustrações.
Uma análise rigorosa dos métodos usados nos estudos sobre o tema nos Estados Unidos levou a Suprema Corte a concluir que a enorme maioria deles não era confiável e que os únicos resultados atestados eram indiscerníveis do impacto que qualquer outra mídia possui sobre as crianças, incluindo música, cinema e literatura. Frente a isso, a Suprema Corte viu-se obrigada a impedir a proibição de jogos de videogames violentos no país, atestando que a culpabilização desses jogos é apenas fruto de preconceito e desconhecimento.
Ao invés da preocupação de que os jogos eletrônicos tornem os jovens violentos, o que os estudos indicam é que devemos nos preocupar com os motivos pelos quais os jovens se interessam por jogos eletrônicos, especialmente os violentos. Horas demais dedicadas aos videogames podem indicar uma falta de interesse ou de motivação pelo mundo real, medo de errar ou de se machucar – já que nos jogos os erros não possuem consequência real – ou então frustração e impotência que podem ser compensadas no mundo do faz-de-conta.
Jogos violentos podem até mesmo estar sendo usados como uma tentativa de fortalecimento ou dessensibilização contra a violência do mundo, ou como processo de recuperação após uma experiência traumática ou período de luto.
“É muita arrogância assumir o uso que uma criança fará de um jogo, mesmo quando o pretendemos educativo”, afirma Brougère.
Por isso é importante que a experiência de jogo das crianças seja sempre acompanhada de perto, com o estabelecimento de um canal de diálogo constante que tente compreender os usos ao invés de formatá-los ou barrá-los. A influência do diálogo e do ambiente sempre será maior do que a influência dos jogos – afinal, o “círculo mágico” deles eventualmente se dissipa, e o que sobra é sempre o mundo real, com todas as suas dificuldades, mas também com suas redes de apoio e os vínculos que estabelecemos.
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Quem são os indiciados pela Polícia Federal por tentativa de golpe de Estado
Bolsonaro indiciado, a Operação Contragolpe e o debate da anistia; ouça o podcast
Seis problemas jurídicos da operação “Contragolpe”
Deixe sua opinião