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Chegou agosto sem que tivéssemos o milhão de mortos por covid previstos por Átila Iamarino caso nada fosse feito. Como não chegamos a um décimo das mortes previstas, teremos que decidir se: (1) ninguém precisa de um ministério da saúde ou autoridades sanitárias, (2) máscara no queixo é um talismã eficaz contra o vírus, ou (3) os jornalistas não deveriam ter alimentado tanto profetismo apocalíptico.

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A terceira tem maiores chances. Lá no remotíssimo mês de abril, no dia 3, Átila Iamarino deu uma entrevista à Folha de S. Paulo, e afirmou o seguinte: “Com a Covid-19 talvez haja um problema parecido com a da vacina da gripe. Como você toma a vacina da gripe no braço, e não na mucosa do pulmão, ela não é 100% protetora, embora seja suficiente para proteger as pessoas da gripe sistêmica, capaz de ‘derrubar’ o sujeito. Existem vacinas militares da gripe que são inaladas e protegem bem mais, embora também envolvam riscos.”

Gripe sistêmica? Existe gripe localizada? Quem tem memória e bom ensino médio está familiarizado com uma explicação para a pouca eficácia da vacina da gripe. O vírus, ao contrário das bactérias, sofre mutações com muita rapidez. A vacina dá ao organismo uma amostra do vírus que o corpo vence com facilidade. Assim, nosso sistema imunológico aprende a reconhecer o vírus tão logo entre em contato com ele, e logo o combate. Por isso, pessoas com sistema imunológico deficiente não devem tomar vacinas: seu corpo pode estar frágil demais para combater até mesmo essa “amostra grátis” do vírus, e adoecer com ele. Isto sabemos, repito, pelo ensino médio.

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Tão logo a entrevista foi publicada, houve na internet quem apontasse a esquisitice do que escrevera o doutor em ciências biológicas. Que fez a Folha de S. Paulo? Sem nenhuma errata, à maneira stalinista, suprimiu o parágrafo em que Átila afirmava isto. No entanto, o jornal O Tempo, de Minas Gerais, repetiu o conteúdo da Folhapress antes da alteração, e pode ser lido aqui. A versão stalinista da entrevista encontra-se aqui.

Perguntado sobre o motivo da retirada, Reinaldo José Lopes, o entrevistador, afirmou que “o parágrafo foi retirado do texto porque foi verificado um erro de informação. Deveria ter sido publicado um ‘Erramos’, não sei por que não o foi.” Tampouco essa resposta do jornalista é satisfatória, uma vez que, num “Erramos”, a primeira pessoa do plural se refere ao jornal. A menos que o jornalista tenha tirado as palavras da cabeça dele e atribuído ao entrevistado, um “Erramos” não cabe. O que cabe são eventuais críticas do leitorado, que costuma ter o ensino médio completo e, portanto, terá motivos para desconfiar. Havendo tais críticas, que o jornal concedesse espaço a Átila para se defender.

De onde Átila tirou essas coisas?

É estranho que um biólogo invente as coisas do nada, então perguntei ao seu colega Eli Vieira se há um o fundo de verdade no que Átila Iamarino falou. Eis a explicação dele, que vem com fontes a serem verificadas pelo eventual leitor interessado pelo assunto:

“O modo tradicional de aplicação de vacina é parenteral, de preferência dentro do músculo: no braço ou na perna. O motivo disso, como discute Jane Zuckerman num artigo do ano 2000, é que o músculo tem uma boa irrigação sanguínea, ‘lavando’ rápido algumas substâncias irritantes que às vezes são necessárias na vacina. Se injetada no tecido adiposo, o conteúdo da vacina pode ficar ‘empoçado’ no local, causando abscessos e irritação, e talvez falhando na principal tarefa da vacina. A vacina é como o laser do franco-atirador: delimita o alvo a ser executado. Para que esse laser aponte para a direção certa, precisamos que partes do organismo invasivo ou substância irritante sejam apresentadas ao sistema imunológico. Aplicar no músculo é ter um laser bem focado, aplicar na gordura é como ter um laser desfocado. Alguns cientistas têm defendido o uso de vacinas aspiráveis, que sejam aplicadas na mucosa das vias aéreas.

“A imunização acontece de forma sistêmica, a longo prazo pela formação de células de memória, embora exista também uma resposta imunológica imediata ao local lesionado. O sistema imune é, como diz o nome, sistêmico. A resposta pode variar conforme o local de aplicação, porém, não existe tal coisa de estar imunizado localmente e não sistemicamente. Se estamos imunizados, é sistemicamente. O problema da afirmação do Átila é que parece sugerir que a imunização local é possível, quando o que é possível é que um local como a mucosa das vias aéreas seja melhor em dar um foco no ‘laser’ do que o tecido adiposo, por exemplo. É estranha para mim a afirmação de que uma vacina é suficiente para proteger uma pessoa sistemicamente mas que não seja ‘100% protetora’ a depender do local.

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“Átila fala que há riscos nas vacinas aplicadas na mucosa do nariz, mas não menciona que elas são mais seguras em jovens do que em idosos.

“Vacina parenteral (injeção) é feita com o vírus inativado, é indicada para crianças de poucas semanas e idosos com risco de problemas imunológicos. A resposta é menos problemática e justamente por isso se indica para esses grupos. A vacina contra gripe para mucosa (a inalada) utiliza vírus atenuado (ou seja, ‘vivo’), e o intuito é justamente imitar a infecção natural ativando a resposta imune para a doença respiratória. Mas esta vacina é recomendada apenas para jovens saudáveis, não para idosos, porque há risco de ela causar a doença em pessoas com problemas. Como todos agora sabem, o grupo de mais risco para COVID-19 é justamente os idosos. O principal motivo de a vacina para a gripe precisar ser revisada a cada dois anos é que o vírus da gripe (Influenza) sofre mutações e evolui por seleção natural muito rápido. Não é por causa do local de aplicação. Mas a COVID-19 não é uma gripe, é uma pneumonia que frequentemente evolui para um quadro mais amplo que afeta os rins, o coração, o sistema circulatório e possivelmente o sistema nervoso.”

E as vacinas?

O chefe de infectologia da UNESP, e consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia, Alexandre Naime, leu as considerações de Átila Iamarino sobre vacina na Folha e no Twitter (onde ele insistiu na inalação), e  explica a nossa situação da seguinte maneira: “A COVID-19 é uma doença muito recente, a gente conhece muito pouco sobre o [vírus] SARS-COV-2, e muito menos ainda sobre as vacinas que estão começando [testes] em fase 3 agora. Então tudo isso é muita especulação. Eu sinceramente penso que que nós devemos aguardar os resultados da fase 3 para ter conclusões mais definitivas, em vez de começar com suposições baseadas em outras vacinas, e que no momento vão ficar só nesse nível de discussão, infelizmente partindo para o lado político.

“Três coisas podem acontecer, basicamente: as vacinas não funcionarem, não ter nenhuma; as vacinas serem, no outro oposto, bastante efetivas e você só precisar de uma ou duas doses, ou ainda você precisar de vacinação sazonal. Estes são os três cenários, mas apostar em qualquer um deles agora é mera especulação. A gente tem que torcer para que o maior número delas funcione, e se tiver que fazer algumas doses sazonais, que seja assim.”

O inferno das boas intenções

Por que, então, ganhou destaque na imprensa justamente a voz que apostou no cenário mais tenebroso? De minha parte, acho pouco crível que a grande maioria dos jornalistas tenha se reunido numa salinha e combinado: “Vamos ouvir os especialistas mais catastrofistas de todos, botar lenha na fogueira, e vender um montão de jornal!” É um arrazoado antieconômico, visto que leitor quebrado cancela assinatura e para de comprar jornal na banca. Aliás, a banca nem sequer abre, com as medidas sanitárias defendidas pelo jornal.

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O antibolsonarismo empenou o juízo de muita gente. Assim, se Bolsonaro diz que a Covid é gripezinha, é preciso catar um cientista que diga que vai matar um milhão. Se Bolsonaro diz que a cloroquina salva, é preciso dizer que a cloroquina mata. Se Bolsonaro chamar a TV e fizer um pronunciamento oficial dizendo que a terra é redonda…

Este é um jeito de perder a independência. É como aquele eu lírico de Chico Buarque: “Te adorando pelo avesso/ Pra mostrar que ainda sou tua”. Entre a gente de letras, gênero que inclui os jornalistas, muitos creem sinceramente que Bolsonaro é algo como o anticristo, então resolvem fazer tudo o que está à mão para salvar o mundo das forças do mal. Isso inclui maquiar a realidade. A imprensa quase toda não resolveu que Átila é a Voz da Ciência lutando contra o obscurantismo? Então não pode parecer estar errado. Do contrário, os leitores vão correr o risco de achar que a Ciência não está com nada e correr para os braços do Mal. Os leitores viram uns cordeiros que precisam ser tangidos pelo jornalista iluminado.

Falta de humildade é um mal típico da gente de letras. Faz crer que pode tutelar o leitorado, mas não pode. Depois não sabe por que perdeu os leitores, e apoia o projeto de fake news.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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