Ativistas da causa trans protestam contra mudanças em um projeto de lei em Madrid, Espanha, 12 de novembro de 2022.| Foto: EFE / Daniel González
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Um dos argumentos comuns entre os defensores do chamado “tratamento afirmativo de gênero” entre menores de idade é a alegação de que, se os pais não apoiarem tratamentos drásticos como bloqueio de puberdade e transição hormonal, ou se esses tratamentos forem proibidos por lei, as crianças e adolescentes com disforia vão cometer suicídio. Segundo dados apontados por ativistas, o índice de suicídio nesses casos chegaria a 40%. O problema dessa estatística é que, de acordo com estudos, ela é falsa. 

O debate a respeito do tratamento de crianças com disforia ou incongruência de gênero (desconforto com o próprio sexo do corpo e vontade de mudar de sexo) chegou à TV americana. No canal HBO e no serviço de streaming Apple TV, em outubro, os comediantes John Oliver e Jon Stewart, respectivamente, apresentaram o tema de uma forma favorável à liberação de bloqueios de puberdade com drogas e substituição de hormônio sexual, parte do que é conhecido como “tratamento afirmativo de gênero”. Casos de meninas disfóricas de 13 e 14 anos removendo cirurgicamente as mamas são também conhecidos. 

“Qual é o dano de esperar até a maioridade? Qual é o prejuízo de não dar tratamento afirmativo?”, perguntou Jon Stewart em seu programa ao endocrinologista Joshua Safer, da Faculdade de Medicina Icahn do Sistema de Saúde Monte Sinai, em Nova York. “Uma estatística é que 40% dessas crianças (...) contemplam suicídio”, respondeu Safer.

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Estatísticas de autoextermínio 

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A fonte da estatística citada pelo endocrinologista é um relatório de 2014 focado em adultos transexuais dos Estados Unidos, publicado pelo Instituto Williams, da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia em Los Angeles, em parceria com a Fundação Americana de Prevenção do Suicídio. Entre as principais descobertas, o documento, de fato, diz que em sua amostra de 6.456 transexuais (obtida de ONGs LGBT) a taxa de tentativa de suicídio é 41%, quase dez vezes maior que a taxa da população em geral. A primeira discrepância com o que disse Shafer é que essa amostra é toda de maiores de 18 anos. 

Todavia, o próprio relatório esclarece suas limitações: a estatística é baseada em uma só pergunta de questionário: “Você já tentou suicídio?”, com resposta dicotômica, sim ou não. “Pesquisadores descobriram que usar essa pergunta sozinha em pesquisas pode inflar a porcentagem de respostas afirmativas, pois alguns respondentes podem usá-la para comunicar comportamento de lesões autoprovocadas que não é ‘tentativa de suicídio’, tais como considerar seriamente o suicídio, planejá-lo ou lesionar a si mesmo sem intenção de morrer”, explicam os autores. Sem investigação mais a fundo, acrescentam, “não pudemos determinar até que ponto os 41% (...) que relataram tentar suicídio podem superestimar a prevalência real de tentativas na amostra”. 

A diferença entre tentativas sérias e os assim chamados “pedidos de socorro” é importante, pois reflete, por exemplo, diferenças de sexo: a grande maioria de vítimas de suicídio é de homens, enquanto a maioria de tentativas, especialmente do segundo tipo, é de mulheres. Traçar a diferença não é uma insensibilidade, mas um instrumento importante para a eficácia da prevenção. 

Um artigo que acompanhou mais de oito mil transexuais na Holanda por 45 anos, publicado em 2020 pela endocrinologista Chantal M. Wiepjes e colegas na revista Acta Psychiatrica Scandinavica, encontrou nessa amostra a taxa de 0,6% de suicídios concretizados. Além de ser maior que a amostra americana, a holandesa inclui pessoas entre quatro e 81 anos, quando fizeram sua primeira visita à clínica de incongruência de gênero. 

O propósito da pesquisa dos Países Baixos era investigar se o tratamento hormonal em adultos reduzia o risco de suicídio. Os cientistas descobriram que sim, mas só nas mulheres trans (de sexo natal masculino), e não viram aumento ou redução nos homens trans (de sexo natal feminino). A taxa de suicídio dos transexuais holandeses é maior que a da população em geral, mas não é maior que a taxa dos homossexuais.

O programa da HBO, Last Week Tonight, apresentando por John Oliver, alegou que o bloqueio da puberdade por drogas como Lupron — sem indicação na bula para esse tratamento, proposto para câncer de próstata e infertilidade, mas que já foi usado para castração química de pedófilos — é como apertar um botão de pausa em uma música. O argumento foi usado antes por uma ativista entrevistada pelo documentário conservador “O que é uma mulher?”, lançado em junho pela Daily Wire

Trata-se, porém, de um argumento irresponsável. Como disseram os Institutos Nacionais de Saúde em outubro, “são limitadas as evidências a respeito de esses tratamentos apresentarem riscos de saúde de curto ou longo prazo para adolescentes transgêneros”. Declarações similares de ignorância sobre os efeitos foram dadas pela Associação Profissional Mundial da Saúde Transgênero (WPATH) e pela Sociedade Endócrina dos Estados Unidos. Casos observados por jornais como o New York Times mostram desenvolvimento de osteoporose nos jovens que tiveram puberdade bloqueada, o que é plausível devido ao papel dos hormônios sexuais no desenvolvimento dos ossos. Além disso, há também relatos de prejuízo aos próprios transexuais, que não desenvolveriam tecido genital suficiente para permitir a cirurgia de mudança de sexo mais tarde (nem todos optam por ela).

60-90% de desistentes: o mais ignorado pelos ativistas 

O tema da transexualidade, que se tornou há anos um dos cabos de guerra políticos mais importantes dos Estados Unidos, motivou em estados sob controle do Partido Republicano leis que limitam ou banem os tratamentos de bloqueio de puberdade e mudança de sexo hormonal e cirúrgica para crianças. É o caso dos estados de Alabama, Arkansas, Arizona, Flórida e Texas, mas em três deles medidas judiciais bloquearam as leis em caráter provisório. Ao menos 14 outros estados estão considerando ao todo mais de 20 projetos de lei semelhantes. Em resposta, algumas famílias que querem esses tratamentos médicos para seus filhos menores de idade estão migrando para estados sob controle do Partido Democrata. 

No Brasil, o tema é regulado por uma resolução do Conselho Federal de Medicina de 2019 que só permite os tratamentos hormonais a partir dos 16 anos com autorização dos pais. Porém, o CFM também admite tratamentos em idades menores em caráter experimental de pesquisa científica. 

Como indicam 11 estudos diferentes, o número de crianças que manifestam disforia, mas se resolvem no próprio sexo até a puberdade sem necessidade de tratamentos medicamentosos ou hormonais, está entre 60 e 90%. Essa maioria de desistentes significa que o termo “criança trans” está fora de lugar, sendo preferível “criança disfórica” ou “criança com incongruência de gênero”. 

Obviamente, isso deixa uma minoria de crianças e adolescentes para os quais algum tipo de intervenção, preferivelmente mais leve, como a mudança de nome e vestuário, poderia ser o tratamento indicado. É salutar, no entanto, a presença de profissional médico que seja bem-informado — o que é crucial devido aos dados escassos e à interferência do ativismo na questão — e que ajude os pais a tomarem decisões. 

É importante saber, por exemplo, das evidências que o fenômeno já não é mais o mesmo que era classicamente, mas está sob influência de um novíssimo contágio social de identidades LGBT, especialmente envolvendo as meninas. Uma análise observou uma explosão de 70% nos diagnósticos de disforia em crianças em apenas um ano nos Estados Unidos. 

No Brasil, já houve tentativas de remover a mediação médica desse processo. Um projeto de lei de 2013, de autoria do ex-deputado Jean Wyllys (PSOL) e Erika Kokay (PT), que buscava facilitar a mudança de sexo, tratava de maiores de idade, mas dizia explicitamente que “será requerido apenas o consentimento informado (...). Não será necessário, em nenhum caso, qualquer tipo de diagnóstico ou tratamento psicológico ou psiquiátrico”.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]