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Três departamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS) que lidam com gênero, sexualidade e infecções sexualmente transmissíveis anunciaram no mês passado que estão desenvolvendo novas diretrizes a respeito da saúde de pessoas trans e “gênero diversas”, um dos pontos mais contenciosos da interseção entre saúde e política nesta década. No dia 15 de janeiro, o órgão antecipou algumas das diretrizes em um documento respondendo a perguntas frequentes.
Contrariando a expectativa de ativistas que fazem pressão pelo “tratamento afirmativo” de crianças disfóricas, que são aquelas que apresentam um profundo desconforto com o próprio sexo chamado incongruência ou disforia de gênero, a OMS informou que a diretrizes “cobrirão apenas adultos e não lidarão com as necessidades de crianças e adolescentes, porque, em revisão, a base de evidências para as crianças e adolescentes é limitada e variável a respeito dos resultados de mais longo prazo para o tratamento afirmativo”.
O chamado “tratamento afirmativo” consiste em aceitar a autoafirmação da criança como pertencente ao sexo oposto e aplicar procedimentos de transição como mudança de nome e vestuário e — o que é mais contencioso — bloqueio da puberdade por drogas, seguido de desbloqueio e tratamento com hormônios do sexo oposto.
Tratamento “afirmativo” fracassou no Reino Unido
No Reino Unido, o Serviço de Desenvolvimento de Identidade de Gênero (GIDS), ligado ao Serviço Nacional de Saúde, está sendo fechado após investigações revelarem que seus estudos com bloqueio da puberdade não mostraram benefício do procedimento em tratar a disforia e problemas mentais associados. Há, também, casos de pacientes cuja puberdade foi bloqueada e desenvolveram problemas ósseos, além daqueles que se arrependeram de fazer a transição de gênero. O país deve descentralizar esse serviço e desenfatizar intervenções medicamentosas nas crianças disfóricas.
A jornalista britânica Hannah Barnes conta a história do GIDS e sua derrocada no livro “Time to Think” (“Tempo para pensar”, em tradução livre, sem edição no Brasil), publicado no ano passado. O serviço, sediado na Clínica Tavistock de Londres, começou em 1989, no sul da capital, sob liderança de seu fundador, o médico Domenico Di Ceglie. Inicialmente, Di Clegie enfatizava a psicoterapia, e ajudava seus pacientes a lidarem com a disforia, às vezes a aceitar o sexo com o qual nasceram. Duas décadas depois da fundação, depois que Di Ceglie terminou seu mandato como diretor, a clínica buscou autorização de órgãos de ética em pesquisa para um “Estudo de Intervenção Precoce”.
A autorização foi dada em 2011, e o estudo de bloqueio de puberdade começou em 2014 — os pesquisadores inicialmente tinham um limite de idade de 12 anos, mas o removeram, com a justificativa de usar como guia o estágio de desenvolvimento da criança, não a idade. Nesta época, já havia eclodido um novo fenômeno, ainda em investigação em diversos países ocidentais, de possível contágio social de autoidentificação LGBT. Meninas, que sempre foram o sexo mais vulnerável a contágios sociais (como no caso de bulimia, anorexia e uma onda de cortar pulsos décadas atrás), passaram a reinterpretar seus comuns desconfortos com o próprio corpo durante a puberdade como disforia de gênero.
O tratamento afirmativo garantiu que muitas delas recebessem prescrição de bloqueio de puberdade e tratamento hormonal. Uma ONG chamada “Mermaids” (“Sereias”) fazia pressão a favor do tratamento afirmativo na clínica, mostra o livro de Barnes. Os resultados do estudo de Tavistock vieram só em 2021, com um relatório que “não identificou mudanças na função psicológica, qualidade de vida ou grau de disforia de gênero” nas crianças disfóricas que tiveram sua puberdade bloqueada. A decisão de fechar a clínica e descentralizar o serviço veio no ano seguinte.
No Brasil, o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual (Amtigos), do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, informou há um ano que cerca de 100 crianças entre quatro e 12 anos tiveram suas puberdades bloqueadas como parte de seu tratamento para disforia na instituição. Uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o assunto, realizada na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo no ano passado, revelou em seu relatório final que o termo de consentimento informado dado pelo Amtigos aos pais e responsáveis das crianças alegava que o bloqueio “é usado para evitar a ansiedade, depressão, insatisfação e trauma ocasionados pelo aparecimento de caracteres sexuais do gênero não desejado” — sugerindo benefícios não encontrados no estudo da Clínica Tavistock. Os parlamentares também denunciaram que a expressão “bloqueio puberal” não aparecia no termo de consentimento dos pais, mas somente em outro termo de assentimento dado aos pacientes.
Bloqueio de puberdade foi tragédia anunciada
Os problemas com o tratamento afirmativo não foram exatamente surpresa para uma parte dos pesquisadores da transexualidade. Há anos se sabia, em mais de uma dezena de estudos, que a maioria das crianças disfóricas tinha remissão do problema e crescia sem necessidade de tratamentos de transição de gênero.
Em 2016, o sexólogo James Cantor compilou em seu blog um conjunto de 11 estudos em que a taxa de desistência de transição nas crianças disfóricas era de 60 a 90%. Em um dos poucos estudos de acompanhamento a longo prazo, publicado em 2021, o psiquiatra Kenneth Zucker e seus colaboradores mostraram que, numa amostra de 139 meninos disfóricos com média de idade de sete anos, acompanhados por 13 anos, 88% cresceram como homens, sem necessidade de transição de gênero. Uma maioria de 64% deles se descobriram gays ou bissexuais — razão pela qual ativistas críticos do identitarismo consideram o tratamento afirmativo uma “terapia de conversão”, como a que é feita no Irã, em que é crime ser homossexual e é permitido apenas que eles se transformem em mulheres trans.
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