“Tenho pelos homens de cultura uma grande simpatia, sejam modernos ou acadêmicos; tenho aprendido muito com todos eles, através de seus livros e das suas conversas, porém a minha poesia continuará com o estilo do nosso populário, buscando no negro o ritmo; o povo, em geral, as reivindicações sociais e políticas; e nas mulheres, em particular, o amor”. (Solano Trindade)
Há muito tempo não acompanho o cenário de hip hop, nem aqui nem no exterior. Ouvi muito rap em minha juventude, mas não mais. Às vezes ainda revisito algumas coisas que fizeram a minha cabeça nos saudosos anos 1990; no entanto, tudo que se produz atualmente me soa artificialmente politizado e ideologicamente tendencioso. Já não há mais a visceralidade ingênua do início, muito menos aquela diversão politicamente incorreta que, apesar de continuar tão presente entre os jovens, está desaparecendo da arte.
Falei sobre isso em dois artigos nos quais questiono a influência acadêmica na cultura da periferia, transformando aquilo que era autêntico num pastiche semi-letrado e desagregador, anulando aquele olhar privilegiado do observador interno. Voltarei a isso adiante.
A primeira vez que ouvi falar em Donald Glover, foi no lançamento do polêmico clipe 'This is America' – gravado sob seu pseudônimo rapper Childish Gambino –, cujas resenhas para desvendar as mensagens subliminares invadiram a internet e fizeram o clipe colecionar recordes de audiência no YouTube.
Em princípio, não dei atenção, mas como muitas pessoas vieram me perguntar o que eu achava do clipe, fui estimulado a assisti-lo. E que grata surpresa! Tirando o clima Black Lives Matter que permeia tudo — por exemplo, as várias referências à violência policial e nenhuma às violentíssimas gangues, nas quais a violência entre os próprios negros é uma realidade muito mais assustadora —, o que vi foi uma produção excepcional, muito bem realizada, que, apesar da letra simples, tem uma música bastante envolvente.
O clipe é hipnotizante – e um tanto assustador. Dentre as referências: Jim Crow, o desengonçado personagem símbolo das infames leis segregacionistas; o massacre da igreja de Charleston, em 2015; e uma crítica ferrenha à cultura do entretenimento alienante e às armas. Tudo isso permeado por uma paradoxal alegria, com coreografias que misturam street dance com danças africanas, brilhantemente sincronizadas pela coreógrafa ruandesa Sherrie Silver, de apenas 25 anos, que é um verdadeiro fenômeno (confira seu canal no Youtube).
Resumindo: apesar de não concordar com o conteúdo do clipe 'This is America', que transforma os EUA num campo de batalha racial totalmente desconectado da realidade, a forma não deixa de ser genial.
E foi isso; após alguns minutos de atenção, pude, finalmente, colocar o clipe de Childish Gambino naquele escaninho de memória que dedico ao hip hop atualmente.
A série e seus personagens
Mas Donald Glover não passaria despercebido por muito tempo. Meu caro amigo Jones Rossi, editor deste canal Ideias, fez um favor de trazê-lo de volta. Entrou em contato comigo e disse: “Se não viu a série Atlanta, precisa ver. Você vai gostar”. Como Jones nunca indica algo ruim – os artigos sobre a série The Good Place e sobre o filósofo John Finnis não me deixam mentir –, fui conferir o mais rápido que pude.
E não me arrependi. Eis-me, dessa vez, totalmente imerso no clima de minha juventude, no ambiente da espontaneidade politicamente incorreta do senso comum; do comportamento mimético, idealista e, ao mesmo tempo, estoico do jovem de periferia. A cada episódio, uns absolutamente hilários, outros que mesclam comédia e drama com extrema maestria, um turbilhão de lembranças e referências invadiu a minha mente e me lembrou de alguns temas que já havia tratado, de forma breve, em outros artigos e vídeos.
A série, cuja primeira temporada veio a público em 2016, conta a história de Alfred “Al” Miles (Brian Tyree Henry), ou melhor, Paper Boi, e seu primo Earnest “Earn” Marks (Donald Glover), rapper e empresário, respectivamente, lutando para emplacar a carreira – ou seria vencer a inércia? – desse que parece ser o artista mais desanimado de todos os tempos.
Earn é ex-aluno da prestigiada Universidade de Princeton, e resolveu deixar a carreira acadêmica para agenciar o primo e também ganhar algum dinheiro, pois o relacionamento complicado com os pais e com a namorada estão lhe obrigando a dar um jeito na vida. No entanto, Earn não é um profissional do ramo, e isso gera uma série de situações constrangedoras – e engraçadas; inclusive, em vários momentos a série faz referência à diferença entre ter um agenciamento amador ou profissional.
Alfred, usuário inveterado de maconha, passa maior parte do tempo – quando não está traficando a droga – fumando e jogando videogame com seu amigo Darius Epps (Lakeith Stanfield), um sujeito meio “avoado” e um tanto misterioso, apaixonado por teorias conspiratórias e curiosidades pitorescas, e que dá o elemento mais diretamente cômico à série.
Com a ajuda de Earn, Paper Boi consegue emplacar seu hit homônimo numa rádio local e se torna relativamente famoso, mas parece não estar satisfeito. Na verdade a fama lhe incomoda; está mais interessado no dinheiro que ela, provavelmente, poderá lhe proporcionar do que, propriamente, no sucesso em si; por isso, sempre que Earn lhe consegue algum compromisso de divulgação – ou seja, no qual ele não ganhará nada –, sua indignação é patente.
No entanto, Paper Boi se torna cool mesmo sem querer. Sobre ele paira uma aura de rapper-raiz, meio underground, que não se vendeu para o sucesso fácil – tal qual outros rappers retratados na série, como um tal Justin Bieber, cujo nome, igual ao do cantor loiro, soa satiricamente engraçado. É constantemente parado na rua por fãs que lhe pedem para se manter autêntico – e são engraçadíssimos esses encontros.
E a razão dessa fama não poderia ser mais controversa: Alfred foi preso por tentativa de assassinato, após atirar num rapaz que arrancou o retrovisor de seu carro — fato do qual ele próprio não se orgulha, mas seus fãs, sim. Todas as vezes que, na rua, escuta a frase “você é o Paper Boi?”, em tom de admiração, sua fisionomia ganha um aspecto aborrecido indisfarçável. Ao mesmo tempo, demonstra certa inveja dos que, cercados por mulheres e dinheiro, são mais populares que ele.
Darius é uma espécie de intermediário na relação entre Al e Earn, sempre com intervenções cômicas nas situações mais variadas. Fala mansa, meio sem noção, é apaixonado por culinária e lendas urbanas — que, muitas vezes, naquele tom surrealista, se mostram não tão lendas assim —, e introduz momentos pitorescos e de um delicioso nonsense — como o carro invisível do jogador Marcus Miles. Mas também é Darius que protagoniza o episódio mais sério — e assustador — da série, 'Teddy Perkins', na segunda temporada (chamada de 'Robbin' Season').
Entre uma divulgação e outra, o trio se envolve, às vezes junto, outras separado, em situações que vão do ridículo ao trágico, da comédia ao drama, do catártico ao patético. E há ainda a ex-(mas não tão ex assim)-namorada de Earn, Vanessa “Van” Keefer (Zazie Beetz), com quem tem uma filha e tenta dividir a responsabilidade pela criação. Van é uma personagem complexa, que dá o toque quase romântico à série, mas, principalmente, traz à tona a complicada relação entre liberdade e compromisso, e também entre pais separados e seus filhos.
Mas uma das coisas que mais me chamou a atenção não foi, propriamente, a história central da série — e acho que essa não é mesmo a intenção de Donald Glover, que é o criador, produtor, roteirista, diretor de alguns episódios e ator que interpreta Earn.
O elemento mais impressionante de Atlanta é seu clima absolutamente desglamourizado; a vida comum de jovens negros, na capital da Georgia, lidando com o racismo, com a violência e com as contradições normais de todos. Glover explica, em entrevista, que sua intenção foi mostrar “como é ser negro”, mas como é impossível descrever isso, o “tom” da série foi um elemento importante.
Todos os preconceitos, decepções, alegrias efêmeras; o medo, a inveja, a incompreensão; tudo isso é misturado numa espécie de hiper-realismo cinematográfico que diverte e constrange ao mesmo tempo. Nem mesmo as festas passam incólumes da visão crua e ácida de Glover. Seus personagens são torturados pela realidade. Projetos mal-sucedidos, estelionatos, assaltos, e uma total inabilidade para fazer negócios.
Earn, mesmo com sua reconhecida inteligência, não consegue bons contratos para o primo, que também não parece interessado em batalhar pelo sucesso; quer, simplesmente, que as coisas aconteçam enquanto joga videogame e fuma maconha. É tudo confuso, amador – sobretudo quando confrontado com o sucesso de seu rival Clark County (RJ Walker), um rapper egocêntrico e comercial, que Earn e Darius consideram um “vendido”, e cujo sucesso irrita Alfred.
Toda essa confusão ocorre permeada por doses cavalares de humor, que variam da sutileza de um olhar ao escracho da nudez involuntária. Glover também diz que quis fugir dos estereótipos. Ele admite que eles existem, mas a maneira como são apresentados “não é como são para a maioria das pessoas. São, geralmente, muito caricaturais”; por isso o realismo levado às últimas consequências.
As redes sociais também são um elemento importantíssimo na série. Eu, que sou de outra geração, ainda acho curioso quando vejo o uso exacerbado que fazem delas em filmes e séries; mas acabo percebendo que essa é também a minha realidade. No quarto episódio da primeira temporada, Paper Boi é perseguido por um stalker, que faz de tudo para conseguir likes. Um sujeito engraçado de tão irritante, que deixa Alfred sem ação diante de tamanha cara de pau, num dos episódios mais divertidos da primeira temporada.
'Twin Peaks' para rappers
O surrealismo – às vezes sombrio – da série vem da intenção deliberada de Glover, que disse, em entrevista, ter tentado criar uma 'Twin Peaks' para rappers. Para quem não sabe, 'Twin Peaks' é uma série cult, da década de 1990, criada por Mark Frost e David Lynch, e dirigida por este último, cuja trama, estranhíssima mas sensacional, gira em torno do assassinato da jovem Laura Palmer, investigado pelo detetive Dale Cooper, numa trama cheia de mistério e situações surreais.
Diz ele: “Twin Peaks foi um programa que eu realmente gostei […] Muitas perguntas não ofereciam respostas concretas e havia um mistério… e eu meio que queria fazer algo que tivesse esses elementos, só que para rappers”. Por isso, em vez daquele clima característico de festas, mulheres e rebeldia, comum ao ambiente estereotípico de hip hop, o que vemos, em muitos momentos, são cenas que fogem à compreensão, mas que trazem um efeito estético e sensorial muito interessantes.
Na verdade, como diz o próprio David Lynch, num documentário que apresenta sobre o movimento surrealista, tais cenas “ressoam em áreas que as palavras não podem ajudá-lo a compreender, e essas são as áreas do subconsciente”. “O surrealismo”, diz Lynch, “é o subconsciente falando”. Isso soa meio Ahmad White – confira na série –, mas é real. Vale lembrar a parceria com o jovem diretor, japonês naturalizado americano, Hiro Murai – que também assina a direção de 'This is America' –, que deu muito certo.
Triunfo do senso comum
A crítica social também é bastante presente em alguns episódios, mas sem aquele tom excessivo, militante. Glover critica, ironiza e satiriza tudo e todos, pois estamos diante da triunfo do senso comum, daquilo que G. K. Chesterton chama, em Ortodoxia, de a “ética da terra dos elfos”. Nesse contexto, “não é a terra que julga o céu, mas o céu que julga a terra”. Chesterton explica:
Estou preocupado com certo modo de olhar para a vida, que foi criado em mim pelos contos de fada, mas foi, desde aquela época, humildemente ratificado pelos simples fatos. O argumento poderia ser exposto da seguinte forma: há certas sequências ou desenvolvimentos (casos de uma coisa seguindo outra) que são, no verdadeiro sentido da palavra, razoáveis. Eles são, no verdadeiro sentido da palavra, necessários. Assim são as sequências matemáticas e meramente lógicas. Nós, do país das fadas (que somos as mais razoáveis de todas as criaturas), admitimos essa razão e essa necessidade. Por exemplo, se as Irmãs Feias são mais velhas que a Cinderela, então é (num sentido irônico e terrível) NECESSÁRIO que a Cinderela seja mais jovem do que as Irmãs Feias. Não há como fugir disso.
A filosofia do senso comum é, tecnicamente, como diz C. S. Lewis em 'Studies in words', “a elementar roupa mental das pessoas comuns”. Ou como articulou o filósofo grego Epiteto numa de suas máximas:
Assim como pode ser chamado de ouvido comum aquele que distingue apenas sons, enquanto o que distingue notas musicais não é comum, mas aperfeiçoado por treinamento; há certas coisas que homens não inteiramente pervertidos percebem pelos princípios naturais comuns a todos. Tal constituição da mente é chamada de senso comum.
Apesar de ter sido depreciado pelo Iluminismo, o conceito de senso comum influenciou muito a filosofia anglo-americana. O senso comum é um dos elementos da imaginação moral, da moralidade elementar que molda o nosso caráter. A respeito da imaginação moral, diz o filósofo Russell Kirk tratar-se da “capacidade de percepção ética que transpõe as barreiras da experiência privada e dos acontecimentos do momento”, sendo responsável por grande parte dos nossos julgamentos e preconceitos. Sim, estimado leitor, preconceitos. Não no sentido atual, de conotação inteiramente negativa, mas aquilo que o psiquiatra Anthony Daniels, mais conhecido por seu pseudônimo Theodore Dalrymple, chama, em seu 'Em defesa do Preconceito', de “ideias preconcebidas”. Diz Dalrymple:
No tocante ao preconceito e às ideias preconcebidas, nada é considerado pior do que o fato de levarem à discriminação. Em meu tempo de vida, a carreira da palavra “discriminação” é um processo revelador e interessante. Em meus primeiros anos escolares, significava fazer um julgamento apropriado – estético, moral e intelectual – e os meus professores foram possivelmente a última geração de pedagogos que acreditou na inculcação dos poderes discriminativos, aos quais se atribuía a parte mais nobre do trabalho docente, de modo que alguns pupilos, ao menos, pudessem apreciar, e caso possível adicionar, as tradições e realizações mais refinadas de nossa civilização […] Correspondentemente, uma pessoa que não discriminasse, que não possuísse essa capacidade, era considerada uma pessoa desprovida de refinamento moral e de intelecto; ao se encontrar assim, essa pessoa provavelmente agiria indiscriminadamente em sua conduta. Para esses professores a discriminação era a função mais importante da mente; sem ela, a verdade não poderia ser distinguida da falsidade, a beleza da feiura, ou o bem do mal, logo, o propósito da pedagogia seria o de instilar os preconceitos corretos. No campo da estética, tudo o que é necessário para o triunfo do kitsch é que as pessoas não consigam discriminar.
Os preconceitos, nesse sentido, são as ideias preconcebidas que nos permitem julgar a realidade por meio das experiências e do acúmulo de conhecimentos adquiridos, sobretudo, pela educação informal que recebemos ao longo da vida, pela cultura e pela tradição. Tais conhecimentos não devem ser desprezados por não terem caráter “científico”, pois foram, em sua maioria, validados pelo tempo. Como diz Kirk, no ensaio 'The Moral Imagination':
Conformidade com a tradição – chame de preconceito, se preferir – faz da virtude do homem seu hábito, como Burke expressou essa ideia. Sem o poder da tradição para nos controlar e instruir, nos envolveríamos perpetuamente em 'reavaliações agonizantes', esforçando-nos por decidir cada questão por seus méritos e vantagens particulares do momento; ficaríamos enervados incessantemente pela dúvida e vacilação […] Nossa experiência pessoal é breve e confusa, mas a experiência da raça [humanidade] leva em conta as consequências sofridas e as recompensas obtidas por multidões de seres humanos em circunstâncias semelhantes à sua e à minha. A tradição e o senso comum constituem um empirismo imemorial, com raízes tão antigas e obscuras que podemos tão somente conjecturar as origens dos hábitos em geral.
Voltando à série, o que vemos em 'Atlanta', na maioria dos temas controversos dos quais os episódios tratam – e não são poucos –, é o senso comum em ação. As reações politicamente incorretas, o bullying, as piadas e até a solução dos conflitos são recheados da mais pura imaginação moral do cidadão comum, e por isso as situações soam escandalosamente engraçadas.
Em vez de, simplesmente, tentar – como se diz hoje – lacrar, Glover mostra a vida dos personagens correndo na mais absoluta concretude, sem floreios retóricos, sem as máscaras da correção política. Esse nada mais justo, pois esse é o universo da periferia, do rap; nem mais nem menos virtuoso que o universo dos fiscais de virtude alheia.
Como disse, recentemente, numa entrevista, o lendário DJ KL Jay: “O rap não pode ser politicamente correto, senão fica engessado, igual partido político. E nós não somos engessados. Somos livres. Temos erros, contradições, mas somos livres”. Por isso lamento profundamente quando vejo rappers se recusando a cantar músicas antigas ou – pior ainda! – refazendo letras que teriam conteúdo homofóbico ou machista.
O rap é uma crônica da periferia, e não pode se dobrar, sob o risco de se descaracterizar completamente, às exigências ideológicas de qualquer natureza – nem sociais nem políticas.
Quem compreende a periferia é, em tese, a periferia. A partir do momento em que a periferia se deixa influenciar por antropólogos e sociólogos, que a invadem com suas ONG's e projetos sociais (e ideias socialistas), a coisa começa a mudar. Nunca é tarde para lembrar o verso do rap escrito por aquele que parece ter esquecido de suas origens: “[…] pois quem gosta de nós, somos nós mesmos”.
Não que uma cultura ou tradição não devam, quando necessário, serem alteradas de acordo com as evidências concretas de erros; o problema é quando isso parte de uma imposição ideológica que não tem origem em demandas reais da sociedade, mas numa sanha por justiça social ditatorial.
Independência artística
O cineasta Pedro Almodovar lamentou, recentemente, que há, no mundo, uma ditadura do politicamente correto que está prejudicando muito os artistas com um efeito terrível, a autocensura. Artistas brilhantes tendo de refrear sua criatividade por medo de serem retaliados pelos monopolistas da nova virtude, criada em laboratórios de ciências sociais de universidades, a fim de nos conduzir em direção a um futuro glorioso, controlado por ideólogos que desejam moldar o mundo à sua imagem e semelhança. Mas Donald Glover não se deixa enquadrar, e é isso que faz de Atlanta uma série especial.
[Contém spoilers]
Há um episódio, em especial, que leva às últimas consequências as armadilhas do politicamente correto e as subverte de maneira absolutamente brilhante: 'Montague', o sétimo episódio da primeira temporada. Montado inteiramente como um talkshow, apresentado por Franklin Montague (Alano Miller), o programa recebe o nosso rapper, Paper Boi, e a diretora do Centro de Questões Trans-americanas, Debra Holt (Mary Kraft). O tema é “a crescente visibilidade da aceitação de sexualidade e seus efeitos na cultura jovem negra”, e o entrevistador inicia questionando uma discussão que Paper Boi teve no twitter por conta de afirmações supostamente homofóbicas em relação à transsexual Caitlyn Jenner. A conversa é curiosíssima, e inicia com o apresentador:
Montague: “Paper Boi, na terça-feira passada, você esteve envolvido numa discussão, no twitter onde fez comentários bastante polêmicos. Mas o comentário de maior impacto foi esse, e eu cito: 'Essa vai para os crioulos [niggas] que disseram que eu era esquisito por não querer transar com a Caitlyn Jenner'. Você gostaria de explicar essa afirmação?”.
Paper Boi: “Não”.
Montague: “Você poderia comentar essas afirmações?”
PB: “Eu disse o que eu queria dizer”.
M: “Mas não acha que seus comentários foram transfóbicos?”
PB: “Eu não sou obrigado a transar com a Caitlyn Jenner porque vocês dizem que eu tenho de fazê-lo”.
M: “Mas você não considera Caitlyn Jenner importante?”
PB: “Veja, eu entendo o que você quer dizer, mas não a considero super importante para mim; não para a minha vida”.
M: “Desde quando você não gosta de transsexuais?”
PB: “Cara, eu só fiquei sabendo recentemente que eles existem!”
M: “Não , não: 'Eu farei ela mudar de time, Caitlyn Jenner ao revés'. Essa letra não é sua?”
PB: “Eu só estava fazendo rap, cara! Eu já disse coisas piores. Você já ouviu a minha música Illuminati Sex”?
M: Ainda não ouvi.
PB: “Bom, então não começa.
Então Montague procura a resposta para esse comportamento “reprovável” de Paper Boi perguntando à Dra. Holt se ela tinha uma explicação para o caso — e faz referência ao seu livro 'Transição: Gênero na nova geração'; ela diz – no melhor academiquês possível (sob os risos sarcásticos de Paper Boi):
“Acho que essas declarações são consequências naturais de uma cultura de exclusão e poder. As funções que cumprem o gênero e sexualidade, recém começaram a ser expostas para grande parte população, mas é difícil para certos setores lidarem com essa transição, por causa dos conflitos de interesses e problemas de identidade. Nesse caso, a comunidade do rap. Eu acho que tem mais a ver com as questões sobre masculinidade na comunidade negra do que com homofobia ou transfobia”.
E a entrevista continua nesse clima caótico, quando Montague chama os comerciais — falsos (com alguns produtos verdadeiros) —, muito divertidos, como o do chá gelado Arizona, cuja sátira está no fato do preço estar afixado na lata, mas os comerciantes de lojas de conveniência de insistirem em cobrar mais caro (fiquei sabendo disso em um fórum sobre a série); ou do cereal Coconut Crunch-os, uma animação com uma crítica mordaz à violência policial. Mas o ponto alto, mesmo, é quando nos é apresentado, numa reportagem especial, Antoine Smalls, ou Harrisson Booth, um jovem negro que diz ser um homem branco de 35 anos – um caso, no mínimo, curioso de transracialidade –, e estamos diante do ponto alto de toda a série. O modo como Paper Boi reage a isso é indescritível.
Meu relato, caríssimo leitor, não faz jus à genialidade desse episódio. Como disse anteriormente, nele Donald Glover brinca, ironiza e subverte toda a paranoia do politicamente correto, com doses calculadas de crítica social, mantendo a independência e criatividade de sua arte.
No final da entrevista, Paper Boi, ao ser acusado de incentivar a violência e o preconceito, e de não ter empatia para com outros discriminados, diz:
“É difícil para mim me importar com isso quando ninguém se importa comigo como homem negro. Caitlyn Jenner está só fazendo aquilo que os homens brancos ricos fazem desde sempre, o que lhes dá na telha. Por que eu deveria me importar? O que faz dela tão especial?”
Evoca a liberdade de expressão para defender suas letras de serem ofensivas, ao que, para o total espanto de Franklin Montague, recebe o apoio da Dra. Holt. O jovem transracial é trazido ao programa por um chat de vídeo, aparece com uma peruca loira e, sob as incontroláveis gargalhadas de Paper Boi, defende a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que discorda do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ou seja, a confusão se instaura, evidenciando, cabalmente, o absurdo de toda essa discussão sobre discriminação e correção política diante da complexidade da vida humana.
Donald Glover demonstra, de maneira visual, o que o filósofo Eric Voegelin afirma em suas Reflexões autobiográficas: “As ideologias constroem edifícios intelectualmente insustentáveis”. Desmoronam diante do senso comum.
Disse Glover, numa entrevista: “A maioria das coisas está numa área cinzenta. Mas eu acho que por conta da internet e das mídias sociais, as coisas são cortadas em zeros e uns rapidamente. Então nós falamos 'vamos apenas brincar nas áreas cinzentas'”.
Atlanta é isso: um passeio pela zona cinzenta da existência humana, na inusitada periferia da capital da Georgia; e, de quebra, com uma trilha sonora – principalmente para quem gosta de rap – perfeita.
A segunda temporada, que estreou no início de 2019, no Netflix, traz alguns episódios excepcionais, como o já mencionado – e que, certamente, já se tornou um clássico – 'Teddy Perkins', mas, também, 'Barbearia', 'Ser Verdadeiro' e 'O Verdadeiro Problema'.
Veja Atlanta e se delicie com a fina flor da cultura pop, com doses generosas de reflexão filosófica.
Paulo Cruz é professor Filosofia e Sociologia no Ensino Público, no estado de SP. Em 2017 foi um dos agraciados com o prêmio Ordem do Mérito Cultural, honraria concedida pelo Ministério da Cultura a nomes que se destacaram na produção/divulgação cultural do ano corrente. Escreve às segundas-feiras na Gazeta do Povo.