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Um estudo publicado neste ano na revista Pediatrics, da Academia Americana de Pediatria, afirma que o número de pessoas com diagnóstico de transtorno do espectro do autismo (TEA) cresceu cinco vezes nos Estados Unidos, entre 2000 e 2016. O dado corresponde a crianças sem deficiência intelectual avaliadas aos oito anos de idade, em uma região populosa de Nova York e Nova Jersey, durante o período. Já o número de crianças autistas com deficiência intelectual dobrou nos 16 anos analisados.
As razões exatas para o crescimento ainda são desconhecidas, mas a medicina tem levantado algumas hipóteses, como maior conhecimento dos médicos sobre o TEA, mais acesso da população a diagnóstico, aumento de pais em idade avançada (o que é um fator de risco), até um “afrouxamento” da definição de autismo, que estaria levando a uma inflação diagnóstica.
O Brasil ainda carece de estatísticas sobre o tema, mas o neurologista Erasmo Casella, do Hospital Albert Einstein, disse à Gazeta do Povo que tem observado na prática “muito mais casos de autismo no dia a dia, no consultório”. Ele cita outra estatística americana, dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC): “o último dado foi de um caso para 36 [pessoas]. Dois anos antes, era um caso para 44, e, 15 ou 20 anos atrás, era um caso para cada 250. Então, trata-se de um aumento exponencial”.
O autismo tem relação com o desenvolvimento do cérebro, o órgão mais complexo do corpo humano. Desse ponto de vista, não é surpresa que uma miríade de fatores diferentes possa influenciar esse desenvolvimento na direção do que se convencionou chamar de “neuroatipicidade”, ou desenvolvimentos cerebrais que são diferentes do comum e levam a padrões diferentes de comportamento e expressão mental.
Casella ressalta que mais fácil do que dar a resposta completa no momento é descartar as respostas erradas: “está super comprovado, há muitos anos, que vacinas não têm relação com autismo”, esclarece o médico. Na maior parte das vezes, acrescenta, “o TEA é genético, mas, por exemplo, prematuros extremos com complicações têm mais chance de ter autismo”, além daqueles que são fruto de “pais mais velhos”. Um pai com mais de 50 anos e mãe com mais de 40 também são um fator que aumenta o risco.
O neurologista também aponta um aumento de 30% do diagnóstico entre negros e hispânicos, que antes não tinham tanto acesso ao tratamento médico. Além disso, “se acredita que a maior causa de aumento na incidência é resultante de um melhor conhecimento dos médicos e maior acesso da população aos médicos e outros profissionais que fazem diagnóstico”.
Distribuição desigual do aumento nos casos de autismo
Além do crescimento nos casos, outra novidade trazida pelo estudo publicado na revista Pediatrics é que o aumento do autismo não se distribuiu uniformemente: ele está mais associado à ausência de deficiência intelectual — duas a cada três crianças diagnosticadas não tinham esse problema —, e a melhores condições socioeconômicas, além de ascendência europeia. Josephine Shenouda, doutora em saúde pública e principal autora da pesquisa, acredita que isso não significa que haja excesso de diagnóstico, mas que está havendo subnotificação entre as crianças não brancas e mais pobres.
Autistas com deficiência intelectual, cuja condição é chamada por alguns cientistas de “autismo profundo”, são aqueles que precisam de cuidado. Alguns são não verbais, ou seja, não se tornam fluentes na comunicação por fala. Outro estudo do mesmo período, publicado em abril na revista Public Health Reports, envolvendo mais de 20 mil crianças de oito anos, concluiu que os casos de autismo profundo hoje são 26,7%, cerca de um em quatro. Os sem deficiência são os casos mais leves, como aqueles que tinham a antes chamada “síndrome de Asperger”: são pessoas sem problemas de autonomia, apenas com dificuldades de entender algumas sutilezas sociais.
Psiquiatra dissidente se arrepende de ter ajudado a expandir critérios de diagnóstico de autismo
O psiquiatra americano Allen Frances, que já liderou esforços de edição de manuais de diagnóstico na área, tornou-se uma figura dissidente. “Sinto muito por ter ajudado a baixar o padrão da exigência de diagnóstico”, disse ele em abril ao jornal New York Post. Ele acredita que as duas edições mais recentes do Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), da Associação Americana de Psiquiatria, “afrouxaram a definição de autismo” e “contribuíram para a criação de modas de diagnóstico que resultaram na inflação diagnóstica de transtornos autistas em crianças e adultos”. A primeira edição, de 1962, caracterizava 60 transtornos mentais. A quinta edição, a mais recente, tem mais de 300.
Frances denuncia que já estava claro, desde a testagem preparatória para a quarta edição do DSM, que “a nova definição triplicaria a taxa” de pacientes diagnosticados. Ele pensa que, em vez de triplicar, o ajuste conceitual multiplicou a taxa quase cem vezes. “Cada vez mais médicos começaram a rotular tanto a diversidade normal quanto uma variedade de outros problemas psicológicos como autismo”. Ele também critica a noção de “espectro”, introduzida na quinta edição: “isso obscureceu ainda mais a fronteira entre transtorno mental e diversidade normal”.
Na Califórnia, o aumento no número de diagnosticados autistas foi de 50 vezes em 33 anos, informou a jornalista Bari Weiss. No dia 20 de julho, Weiss publicou em seu jornal The Free Press um relato da advogada californiana Jill Escher, mãe de dois autistas profundos que largou a profissão para se dedicar a eles e à questão.
Ativismo identitário atrapalha os autistas
Escher teve Jonathan em 1999, e o diagnóstico veio dois anos depois. Na gestação seguinte, ela ouviu dos médicos que “um raio não cai duas vezes no mesmo lugar”. Porém, 16 meses após o nascimento de sua filha Sophie, a menina também mostrou os sinais claros de autismo: “como o seu irmão, ela não atingiu nenhum dos marcos cognitivos ou de linguagem, nem de perto. Autismo, mais uma vez”.
Seus filhos têm agora 24 e 17 anos, respectivamente, e continuam não verbais e “profundamente afetados”. Sophie é mais versátil, mas nenhum dos dois consegue ler ou escrever. Com franqueza, Escher compara a vida dos filhos ao filme O Feitiço do Tempo, em que o protagonista interpretado por Bill Murray fica preso em uma viagem no tempo cíclica, acordando sempre no mesmo dia.
A mãe não está contente com a influência do ativismo na área: “A ascensão recente do movimento identitário da ‘neurodiversidade’, no qual o autismo é reinventado como uma diferença natural para ser celebrada, não investigada, prevenida ou tratada, ajudou a espalhar um pó mágico de complacência sobre o mundo do autismo”. Em vez de fazer a área avançar, as revistas científicas “publicam com frequência artigos de ativistas que fazem policiamento de linguagem”, reclama. “Agora, a prevenção do autismo está fora de questão”.
O ativismo também atrapalha com “conceitos fantasiosos”, como a proibição de pagar baixos salários a pessoas com deficiência intelectual severa, o que acaba eliminando por completo as vagas para esse público. Isso “significa que pessoas como os meus filhos perderão sua única chance de ter um trabalho estruturado, sustentado e produtivo, e serão empurrados ainda mais para as margens da sociedade”.
“Parte de mim entende” os esforços dos ativistas, diz Escher. Ela própria já ajudou inúmeras pessoas com autismo e organizou mais de 200 eventos, de festas a reuniões. “Mas o nosso desejo inquebrantável pelo bem social levou de muitas formas a dourar a pílula e a trivializar essa deficiência mental séria”. Ela concorda que o autismo se deve ao “desenvolvimento desregulado do cérebro, não às vacinas”. Porém, não acha que o aumento dos casos se deve a uma mera questão de mudança conceitual no diagnóstico, mas a um fenômeno concreto cujas causas a ciência foi tragicamente incapaz, até o momento, de desvendar. Contra isso, ela tem um conselho para os especialistas: largar o “guarda-chuva absurdo” do “espectro autista” e dividi-lo em subcategorias com mais significado e relevância.
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