Para quem assistiu à primeira temporada da série de TV “Anéis de Poder” (Amazon Prime Video) e não é leitor detalhista da obra que a inspirou — a fantasia do linguista inglês J. R. R. Tolkien, que teve seu ápice na história em três volumes “O Senhor dos Anéis” —, a segunda temporada é uma melhoria.
A elfa Galadriel ficou menos carrancuda, arrogante e invencível, e chega a reconhecer alguns de seus erros, se afastando do clichê feminista hollywoodiano da heroína a quem não falta nada, exceto acreditar em si mesma. A inteligência do espectador não é mais subestimada pelo imperfeito disfarce do vilão sobrenatural Sauron na forma humana de galã do personagem Halbrand. Até o “clima” que se estabeleceu entre os dois antes agora ficou mais justificável — Sauron, afinal, é uma figura satânica e como tal deve ter poder de sedução.
E as muitas cenas de ação, em comparação à temporada anterior, são elogiáveis, inclusive em uma batalha de elfos contra orcs retratada nos dois últimos episódios. O mago Gandalf se encontra com o ancião mágico Tom Bombadil, um favorito de Tolkien — criado antes do resto da história pelo autor — que grandes audiências não viram na trilogia cinemática do diretor neozelandês Peter Jackson. Temos agora, também, o mago das trevas interpretado pelo habilidoso Ciarán Hinds.
Antes muito separados, os seis núcleos da trama — Gandalf com os harfoots (futuros hobbits), a nação insular humana Númenor, os camponeses do Sul da Terra-média, os anões de Khazad-dûm, Mordor antes do domínio de Sauron e o reino élfico de Lindon — agora se conectam melhor.
Há mais coisas positivas sobre “Anéis de Poder”, da trilha sonora à maquiagem impecável dos orcs. Mas nem tudo são flores no reino mágico de Jeff Bezos.
Beijo na sogra
A trama principal é que o Um Anel da história mais famosa ainda não foi criado, mas o vilão Sauron trabalha para manipular o ferreiro élfico Celebrimbor para criar 19 anéis precursores e compartilhar seus conhecimentos. São três anéis para elfos, sete para anões (que neste universo são uma espécie humanoide que vive em minas dentro de montanhas) e nove para seres humanos.
Esses anéis resolvem problemas que as diferentes comunidades têm, muitos dos quais são causados pelo decaimento geral da Terra-média por causa da ascensão de Sauron. O plano de Sauron é dominar o continente ganhando cada uma dessas comunidades pela corrupção mental e espiritual de seus líderes seduzidos pelos anéis.
A série é inconsistente no nível de conhecimento prévio do cânone de Tolkien que presume dos espectadores. Pelo enredo, espera-se que você saiba o que são “silmarils” (cristais mágicos que inspiraram guerras nos primórdios deste universo), mas que não tenha a mínima noção de que Galadriel, no período retratado (a Segunda Era), já era casada, tinha uma filha e viria a se tornar sogra do elfo bem mais jovem Elrond, que a beija nos lábios em uma cena.
A exclusão continuada da família de Galadriel leva a uma suspeita de viés ideológico feminista na série, que a consideraria uma mulher menos independente e menos “empoderada” se fosse mãe e esposa. Essa crítica já acontecia na primeira temporada, e a Amazon a ignorou, dobrando a aposta ao contratar apenas diretoras mulheres para a segunda. Comparativamente, contudo, é possível dizer que a nova temporada é menos woke que a primeira, e herdou dela problemas desse tipo. Mas o beijo é um insulto adicional para quem sentiu falta de Celeborn, o marido de Galadriel, e Celebrían, sua filha e esposa de Elrond.
É um beijo de adeus em um momento de desespero, em que Elrond deixa Galadriel para morrer como refém de orcs. Seria, também, uma forma de entregar a ela um broche que ela poderia usar para destrancar discretamente suas algemas depois. Por que não um abraço? O ator Robert Aramayo, que interpreta Elrond, justificou a cena em entrevista ao site Cinemablend: “acho que é uma manobra estratégica, sabe, e é bem esperta, porque ninguém esperava por ela. Foi a jogada mais chocante que ele poderia fazer naquele contexto”.
Orcs amáveis?
Outro problema apontado por resenhistas leitores de Tolkien foi uma cena em que aparece uma família de orcs, um casal com um bebê, expressando amor e preocupação entre si.
Muitos espectadores devem se lembrar de orcs nascendo do barro por influência do mago Saruman na trilogia de Jackson. É canônico, pois no “Livro de Contos Perdidos” (1983) Tolkien escreve que “toda essa raça foi criada por Melkor [ou Morgoth, vilão precursor de Sauron] dos calores e lama subterrâneos. Seus corações eram de granito e seus corpos, deformados”. Mas também é canônica a reprodução sexuada entre orcs desde 1937, quando Tolkien publicou “O Hobbit”. Na história, há sucessão de pai e filho entre orcs.
O que definitivamente não é canônico e uma grande ousadia da série da Amazon, contudo, é o amor entre orcs, não só na pequena família retratada, mas entre todos os orcs e seu “senhor pai”, Adar — um personagem que parece uma criatura transicional entre elfo e orc (o que é possível, dado que elfos caídos são uma das hipóteses para a origem da espécie). Ele é uma inovação completa dos produtores.
Adar e sua relação de pai e líder alternativo dos orcs é um dos maiores pecados da série contra Tolkien. A segunda temporada já começa assim, com Adar e seus “filhos” matando a versão anterior de Sauron, o que leva a uma aliança de conveniência entre Galadriel e Adar. Aqui, vale a pena revisitar a estrutura cósmica do mundo imaginado pelo acadêmico inglês.
A Criação, segundo Tolkien
Católico, Tolkien via sua obra de fantasia como uma reimaginação do nosso próprio mundo. Há um Deus uno, chamado Eru Ilúvatar, a flama imperecível. Abaixo dele, há um panteão de seres sagrados, os Ainur, divididos entre os Valar, que receberam a atribuição de moldar o mundo e suas criaturas, e os Maiar, que são menos poderosos e servem aos Valar. Nos primórdios do universo, esses espíritos divinos cantavam em harmonia a canção da criação. Através dessa harmonia, Ilúvatar cria os homens e os elfos, e os anões são criados pelo Vala chamado Aulë, o senhor da terra.
Mas Melkor, um dos Valar, o Lúcifer de Tolkien, decide romper em desarmonia e seguir o próprio caminho, atraindo para sua própria canção desarmônica uma minoria de Maiar entre os quais estão os Balrogs e Sauron. Melkor forma seres malignos como dragões e trolls, mas não é capaz de criação como Ilúvatar, então corrompe uma linhagem de elfos (ou homens) em orcs.
Outros Maiar são os cinco magos (“Istari”): Gandalf, Saruman, Radagast e dois magos azuis que desaparecem no oriente. Logo, a única possibilidade canônica para o mago das trevas de “Anéis de Poder” é que ele seja Saruman. Mas a cronologia da série está toda incorreta: é cedo demais para Saruman, um mago interessado em sabedoria técnica, revelar-se tão vilanesco quanto está na série e opor-se a Gandalf, e a Segunda Era é um tempo precoce demais para ambos estarem na Terra-média.
Sendo Sauron um Maia, não há a mínima possibilidade de os orcs se rebelarem contra ele para seguirem a liderança alternativa de Adar. Sauron é um servo da figura luciferiana de Melkor (Morgoth), e sobre os orcs exerce um comando irresistível. Escreveu o inglês: Sauron “conseguiu uni-los todos no ódio irracional contra os elfos e os homens que se associaram a eles; enquanto os orcs de seus próprios exércitos treinados estavam tão completamente sob o seu jugo que eles se sacrificariam sem hesitação por ordem dele”. O primeiro episódio da segunda temporada de “Anéis de Poder” retrata Sauron tendo de argumentar para persuadir orcs a segui-lo. Isso não é Tolkien.
Um pouco de ambiguidade moral sobre os orcs é aceitável, contudo. Nos anos 1950, Tolkien debateu com leitores a natureza desses humanoides corrompidos. “Eles seriam os maiores pecados de Morgoth, abusos de seu mais alto privilégio, e seriam criaturas geradas do pecado, e naturalmente más”, escreveu o autor. Ele segue essa explicação com um parêntese: “Quase escrevi ‘irremediavelmente más’; mas isso seria ir longe demais. Pois na aceitação ou tolerância de sua geração — necessária à sua existência real — até os orcs se tornariam parte do Mundo, que é feito por Deus e, em última análise, bom.”
Apesar da abertura hipotética a um caminho indireto pelo qual poderia haver bondade em orcs, Tolkien jamais explorou concretamente essa possibilidade em suas histórias. Não escreveu um só momento de expressão de amor entre orcs, como a série ousa fazer. No máximo, permitiu alguma rebeldia quando seus senhores estavam longe.
Na mesma carta, Tolkien refletiu sobre a teologia de seu mundo imaginário em comparação com o mundo real: “que Deus ‘tolere’ isso não parece uma teologia pior que a tolerância à desumanização calculada de homens por tiranos que acontece hoje. Poderia haver outras ‘fabricações’ que fossem como marionetes preenchidas (à distância) pela mente e vontade de seus fabricadores, ou como formigas, operando sob a direção de uma rainha central”. Esse aspecto de formigueiro ou colmeia foi bem explorado nos filmes de Jackson.
A corrupção da obra
Assim como no capitalismo de livre mercado a fortuna de um magnata é torrada e redistribuída em poucas gerações de herdeiros, a fortuna fantástica da obra de Tolkien começou a ser vandalizada pelos controladores de seus direitos autorais.
Os descendentes de Tolkien cederam aos criadores de “Anéis de Poder”, J. D. Payne e Patrick McKay, direitos de uso dos Apêndices de “O Senhor dos Anéis”, apresentados tradicionalmente no fim de “O Retorno do Rei”, e o cânone fora de “Silmarillion” (a história da criação e os primeiros conflitos) e “Contos Inacabados”. Payne e McKay declararam que queriam moldar Sauron, um Lúcifer, à imagem e semelhança de Walter White de “Breaking Bad” e Tony Soprano. Isso já era alarmante.
Diversidade nunca faltou na obra de Tolkien, que tolos já alegaram ser racista, fazendo eles próprios conexões espúrias ironicamente racistas em suas próprias cabeças entre os orcs e grupos discriminados. Mas a forma como “Anéis de Poder” distribui raças é covarde, além de politicamente correta: todos os grupos parecem ter a distribuição racial americana (maioria de brancos com minorias asiáticas e negras), quando os harfoots, que vivem ao ar livre sob o Sol e poderiam ser todos negros, não são.
Os produtores não ficaram só em Walter White. Em uma cena em que percebe que foi preso em um mundo de ilusão por Sauron, Celebrimbor usa como pista a repetição de comportamento e trajetória de um ratinho. Exatamente como Neo, no filme “Matrix”, olhando para um gato preto. O que o cyberpunk está fazendo em um programa supostamente baseado em Tolkien?
O problema da série pode incluir os próprios direitos autorais, que levaram US$ 250 milhões da Amazon. Quando a obra entrar em domínio público, poderemos ver adaptações mais fiéis. Isso só acontecerá no Reino Unido e Europa em 2044, e nos EUA entre 2032 e 2050.
Se os herdeiros não protegem a obra, cabe a seus leitores mais apaixonados defendê-la de vandalismo, bradando “tu não passarás!” como Gandalf diante do Balrog. Pois são esses fãs que sabem medir o valor dessa obra e exigir que as adaptações a respeitem. Dessa forma, a má recepção da série, que gera milhões de visualizações no YouTube, é completamente compreensível, embora às vezes exagere na má vontade com a “fanfic” construída com um bilhão de dólares do bolso de Jeff Bezos.
Mas “Anéis de Poder” é isto desde o começo: uma “fanfic” que passa longe de se aproximar da obra que a inspira. Quem não leu Tolkien pode gostar, e muito, mas não sabe o que está perdendo se fosse uma obra realmente mais fiel à sua expansiva e detalhista imaginação.
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