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Uigures em oração na província de Xinjiang, na China
Uigures em oração na província de Xinjiang, na China| Foto: EFE

Embora presidentes, empresas tecnológicas e até produtoras cinematográficas volta e meia finjam ignorar o problema, há pelo menos um milhão de uigures sofrendo graves violações aos direitos humanos na China, na província de Xinjiang. Com todo o esforço do Partido Comunista Chinês para camuflar a escandalosa existência de campos de concentração - que contam com fartos relatos de estupros, abortos forçados, trabalho compulsório e tortura - em seu território, a mera dimensão do crime segue desconhecida, ainda que autoridades internacionais já o tenham classificado como “genocídio”. Mais complicado ainda é mapear quem são as lideranças pessoalmente envolvidas neste processo - além, é claro, do próprio ditador Xi Jinping - e os mecanismos que permitem a perpetuação do cenário.

Um extenso relatório inédito publicado na última terça-feira (19) pelo Australian Strategic Policy Institute (ASPI) joga luz sobre o modus operandi de uma das maiores extinções populacionais em curso neste século. Realizado com base na revisão de milhares de páginas de arquivos policiais vazados, o documento intitulado “A arquitetura da repressão” foi produzido por três pesquisadores - Vicky Xu, James Leibold e Daria Impiombato - e, embora tenha tido pouca repercussão internacional, foi suficiente para incomodar o Ministério das Relações Interiores da China, que acusou o think tank de “fabricar relatórios”, sem dizer uma palavra sobre o conteúdo da pesquisa.

Graças aos esforços do trio, a menos de 100 dias para o início dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim, as principais lideranças internacionais - às quais o relatório é destinado - contam com um dossiê de como Xi Jinping transformou a perseguição aos uigures em um vasto sistema de vigilância e doutrinação, aos moldes da Revolução Cultural de Mao Tse-Tung, como apontam os próprios pesquisadores.

"A repressão contra os uigures tem uma semelhança impressionante com as campanhas políticas da era Mao", afirma o relatório, segundo o qual os residentes de Xinjiang são forçados a participar do teatro político, com “julgamentos em massa, sessões de denúncia pública, promessas de lealdade, 'palestras de propaganda' semelhantes a sermões e cânticos pela boa saúde de Xi Jinping". Para os pesquisadores, tais estratégias são "uma característica intrínseca do sistema político chinês que é frequentemente esquecida na atual literatura de língua inglesa".

O controle dentro de casa

Entre os dados inéditos publicados pelos pesquisadores, chama a atenção um documento proveniente do Departamento de Segurança Pública de Xinjiang, vazado para o jornalista Yael Grauer por um hacker. Trata-se do relatório da vida de uma família, produzido pela vigilância local do partido. Segundo os pesquisadores, “a história desta família é um microcosmo da mobilização popular de Xinjiang, onde o Comitê de Vizinhança, uma organização voluntária nominalmente voltada para o serviço, se transformou em um poderoso órgão de policiamento”.

O documento “A arquitetura da repressão” traz um apanhado histórico do cenário: com a derrocada do socialismo maoísta, os comitês locais e vilarejos emergiram como órgãos de controle, ajudando a fortalecer o que os chineses entendem por "governança de base". De acordo com os pesquisadores, enquanto o presidente anterior, Hu Jintao, buscou dar autonomia a estes sistemas, Xi Jinping transformou-os nos olhos e ouvidos do Partido, mobilizando perseguições internas aos seus opositores.

Na região de Xinjiang, este processo ocorreu de forma ainda mais intensa. Comunidades locais foram divididas em pequenas unidades de policiamento de até dez famílias. "As autoridades combinaram sistemas de vigilância humana e automatizada para rastrear e vigiar as minorias étnicas, removendo toda a privacidade e segurança de suas casas", diz o relatório.

Os métodos de controle das famílias são muitos. Um deles, revelado em primeira mão pela ASPI, é conhecido como mecanismo “tríade”, por contar com a participação de quadros do partido, oficiais militares e representantes dos residentes. Feito nos moldes dos comitês criados pela Revolução Cultural, em Xinjiang estes grupos trabalham como “árbitros” do processo de reeducação, visitando as residências uigures duas vezes ao dia e decidem quem precisa ou não ser “reeducado”. Veja, abaixo, os principais trechos do relatório da ditadura sobre uma família uigur:

Relatório

Em 11 de novembro de 2018, membros da equipe do Comitê de Vizinhança da cidade de Ürümqi, na província de Xinjiang, escoltaram dois residentes para comparecerem à audiência de condenação de Anayit Abliz em um “centro de educação e treinamento vocacional”. De acordo com um memorando da polícia, os dois homens, de 52 e 24 anos, eram o pai e o irmão mais velho de Abliz, que na época tinha 19 anos.

As notas reproduzidas abaixo relatam o escrutínio ao qual a família do jovem fora submetida durante cerca de oito meses, até que ele fosse condenado à prisão. Em fevereiro daquele ano, um membro da equipe do Comitê de Bairro de sobrenome Yang e pelo menos três outros quadros fizeram seis visitas registradas à família Abliz.

22 de fevereiro de 2018

Yang entrou na casa de Abliz e encontrou o pai, a mãe e a irmã de Abliz em casa. Seu pai foi trabalhar naquele dia como de costume; sua mãe e irmã não saíram. Seu irmão havia viajado para uma cidade diferente para solicitar um novo cartão de identidade e deveria retornar em 3 dias.

“Nenhuma atividade suspeita ocorreu durante a comunicação com eles, nada suspeito foi encontrado em sua casa. Itens em sua casa em ordem. O status ideológico é estável. Cooperar ativamente com o trabalho do Comitê de Vizinhança", relatou Yang.

24 de fevereiro de 2018

Yang entrou na casa de Abliz e encontrou pai, mãe e irmã assistindo televisão. Yang conversou com eles, “promovendo o espírito do 19º Congresso Nacional do Partido Comunista da China”.

26 de fevereiro de 2018

O pai e a irmã de Abliz estavam em casa. Sua mãe não havia voltado para casa do trabalho. Seu irmão ainda estava fora da cidade por causa do novo cartão de identidade e estava ansioso com o atraso, Yang observou.

“Não há itens suspeitos na casa, os itens da casa estão bem organizados e o status ideológico é estável. Cooperar ativamente com o trabalho do Comitê de Vizinhança”.

28 de fevereiro de 2018

Yang entrou na casa de Abliz. O pai, irmão e irmã estavam em casa. Depois de propagar informações relacionadas às “duas sessões” (reuniões políticas anuais da China), um quadro do partido (não ficou claro se era Yang ou outra pessoa) informou à família que a delegacia de polícia havia pedido a eles que assinassem uma declaração prometendo não fazer uma reclamação a um nível superior de autoridade (presumivelmente sobre a detenção de Abliz).

O irmão disse que a família queria falar com Abliz e que ele esperava que o Comitê de Bairro pudesse ajudar a contatar a “escola” (um eufemismo para um campo de reeducação).

No documento vazado, consta também um manual dado pela prefeitura local às equipes de trabalho, pedindo que os agentes da vigilância que mostrassem cordialidade aos seus "parentes" uigures e dessem doces às crianças.

O texto também fornecia uma lista de verificação que incluía perguntas como: “Ao entrar na casa, os membros da família parecem perturbados e usam linguagem evasiva? Eles não assistem a programas de TV em casa e, em vez disso, assistem apenas a discos DVD? Ainda há algum item religioso pendurado nas paredes da casa?”.

Os dois oficiais que visitaram a família de Abliz em 9 de fevereiro de 2018 os encontraram em casa assistindo televisão e conversando. Um oficial perguntou sobre a saúde do irmão de Abliz, demonstrando cordialidade de acordo com as instruções do manual. A mãe e a irmã dele não saíram naquele dia. “Os pensamentos estão estáveis ​​e tudo está normal”, relataram os quadros.

Em 4 de janeiro de 2019, dias antes do 20º aniversário de Abliz e três meses após sua audiência de sentença, um oficial do campo de reeducação telefonou para o Comitê de Bairro para dizer que a mão de Abliz havia sido ferida novamente. Ele foi ferido em uma queda anterior e "teve uma recaída", diz o relatório. O oficial do bairro contou ao pai de Abliz sobre o ferimento e observou que, ao ouvir a notícia:

“Seu pai era emocionalmente estável; seu tom de voz era normal; não houve comportamento anormal'.

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