A transferência de Neymar para o Paris Saint-Germain causou furor não apenas pela decisão de abandonar a parceria de um dos maiores jogadores da história, o argentino Lionel Messi, e uma camisa pesada como a do Barcelona: com uma cláusula de 222 milhões de euros, o brasileiro também se tornou a negociação mais cara da história do futebol. Foi um negócio essencialmente capitalista: havia dinheiro suficiente, e pouco importavam a origem ou a maneira como o negócio foi fechado.
A saída para o PSG envolveu uma soma inédita de dinheiro oriunda de petrodólares (o clube parisiense é patrocinado pelo governo do Catar) e uma quebra de contrato possibilitada pelo pagamento do valor estabelecido. O Barça, que não queria perder Neymar, não teve qualquer poder de decisão na negociação – só podia respeitar a liberdade de decisão de seu empregado e aceitar o polpudo cheque que lhe ofereciam.
Se em todo o resto a Europa parece ser mais voltada às políticas socializantes e os EUA ao livre-mercado, no esporte os papéis se invertem: um negócio como o de Neymar seria impossível no modelo adotado pelas grandes ligas norte-americanas. Como os esportes americanos se afastaram dos ideais de livre-mercado tão presentes em todo o resto da sociedade?
Restrições
Muito antes de discutir economia, as diferenças são claras já na maneira como os campeonatos se estruturam. Tome-se como exemplo o Campeonato Inglês: a cada ano, 20 times disputam o título, e os três piores são rebaixados para a segunda divisão. Existe uma série de campeonatos nacionais profissionais de níveis inferiores e, abaixo deles, ligas regionalizadas, parcial ou inteiramente amadoras. Em tese, o sistema é aberto: um time de bairro jogando a Nona Divisão regional de Mid-Sussex (equivalente à 22ª divisão inglesa, o nível mais baixo de todos) pode, tendo tempo e recursos suficientes, profissionalizar-se gradativamente, chegar um dia à 1ª divisão e até mesmo disputar títulos continentais e o Mundial de Clubes.
Na década passada, o futebol brasileiro viu uma situação semelhante com o Grêmio Barueri: entre 2002 e 2009, o clube paulista viveu uma ascensão sem precedentes, saindo da sexta divisão de seu estado e chegando à Série A do Campeonato Brasileiro. Desde então, a equipe passou por dificuldades financeiras e viveu um ciclo inverso – no ano passado, já não disputava qualquer campeonato de nível nacional e estava de volta à terceira divisão paulista.
Em praticamente todo o mundo, o futebol se organiza dessa forma: qualquer clube tem a possibilidade, ainda que remota, de atingir o topo da pirâmide. Nos grandes esportes americanos, não é assim. Seja no futebol americano (NFL), no basquete (NBA), no beisebol (MLB) ou no hóquei (NHL), o sistema é fechado: um número específico de times (atualmente, entre 30 e 32) disputa as competições – e são sempre os mesmos. Equipes podem mudar de cidade e, eventualmente, a liga pode acrescentar novas franquias, mas são sempre times fundados exclusivamente para se juntar aos já existentes.
Um sistema de acesso e rebaixamento inexiste – e um clube não pode ser formado organicamente, por torcedores ou habitantes de um lugar, como no nosso futebol. A própria regra da competição exige a presença de um dono ou de um grupo de acionistas por trás da franquia, que é invariavelmente um empreendimento bilionário.
O sistema de franquias com um lugar garantido é tão entranhado na cultura esportiva norte-americana que, mesmo quando se trata do “soccer”, ele também é adotado: no principal campeonato disputado nos EUA, a MLS, também não existe rebaixamento. Embora existam outras competições de futebol, como a NASL (onde joga o New York Cosmos, que nos anos 70 contou com Pelé), que a imprensa brasileira costuma chamar de “segunda divisão” para diferenciar, elas não dão acesso à MLS.
Regras estritas
Para evitar que os campeonatos fiquem estagnados, as grandes ligas norte-americanas se valem de um conjunto de regras similares entre si, que dificultam a formação de times imbatíveis. Se no futebol o Real Madrid pode formar um time “galáctico”, o PSG pode começar a fazer investimentos como o de Neymar após se associar ao Catar, e o Campeonato Chinês tem condições de pagar os salários mais altos do mundo mesmo sendo pouco atrativo em termos de qualidade em campo, em uma liga como a NFL isso pouco adiantaria – por mais rico que fosse o dono do time, ele não poderia gastar um centavo a mais do que o teto estabelecido para todos os outros bilionários.
A garantia de que o sistema iguale as diferentes fortunas se dá pelo estabelecimento de um teto salarial para a equipe inteira e para jogadores individuais, além de um piso que impeça os atletas menos valorizados de receberem valores muito menores. Uma franquia é obrigada a gastar uma porcentagem fixa mínima do teto com seu elenco, mesmo que esteja sem talentos e queira economizar.
Em todas as ligas, esses valores são definidos através de acordos coletivos junto aos sindicatos dos jogadores – que podem até fazer greve e atrasar ou impedir a realização das competições. O caso recente mais grave ocorreu no hóquei: a temporada 2004/05 da NHL não aconteceu porque os jogadores não aceitaram a proposta dos donos das equipes.
Em alguns casos, os times podem pagar um pouco acima do teto, desde que desembolsem uma taxa extra para a sua respectiva liga como punição. A chamada “luxury tax” suaviza o teto salarial em campeonatos como a NBA e a MLB, por exemplo. Já na NFL o teto é rígido: um jogador que queira receber o maior salário permitido pelo acordo coletivo até pode fazê-lo, mas vai necessariamente deixar sua equipe com menos espaço para montar uma equipe forte ao seu redor. Atualmente, as franquias da NFL podem gastar até 167 milhões de dólares anuais com sua equipe inteira. Para comparar: na Espanha, onde o orçamento é baseado na receita dos times, o Real Madrid podia investir até cerca de 495 milhões de dólares em salários na última temporada.
“Socialismo” ou “cartelização”?
Os analistas que comparam os dois modelos costumam discutir sobre o termo mais adequado para caracterizar o modelo dos esportes americanos. À primeira vista, ao eliminar o livre-mercado e colocar exigências e potencialidades idênticas a todos os times, o sistema chega a parecer um “socialismo” do esporte: “as regras dos esportes mais populares dos EUA agradariam a um socialdemocrata escandinavo”, escreveu Derek Thompson, editor da revista The Atlantic. “É uma história diferente do outro lado do Atlântico, onde várias ligas de ‘soccer’ têm práticas que agradariam um conservador americano”.
Além das diferenças econômicas, também está a forma de tratar aqueles que têm uma performance ruim: se o futebol faz questão de punir os piores, rebaixando-os para uma divisão inferior, os esportes americanos tentam incentivar a paridade – quem termina a competição em uma classificação ruim costuma ter a oportunidade de escolher antes no “draft” do ano seguinte, a escolha de novos jogadores. Nos EUA, a seleção de novos atletas se dá através de um recrutamento direto entre os saídos dos esportes universitários, que funcionam como uma espécie de categoria de base “terceirizada” para as equipes profissionais – e são as piores do último campeonato as que têm a prerrogativa de escolher primeiro, podendo, em tese, pôr as mãos nos talentos mais promissores.
Mas esse aparente “socialismo” só funciona em relação às condições dos jogadores, entendem os críticos do modelo. Ao limitar os salários, o teto das ligas impede que os atletas mais importantes recebam o valor que poderiam alcançar em um mercado aberto – assim, na prática, quem mais se favorece é o dono do time, que pode embolsar a maior parte dos lucros sem precisar se preocupar com a concorrência de alguém capaz de pagar mais. A própria figura da transferência é incomum nos esportes americanos: os times trocam jogadores, posições de escolha no “draft”, mas raramente se veria uma equipe dando dinheiro a outra por um atleta. Num cenário em que todos os donos são bilionários e em que os salários são estritamente regulados, “comprar” um jogador é desnecessário.
“Os esportes americanos são organizados como cartéis. É preciso ganhar uma franquia de alguma forma antes de poder jogar outros times. Não existe promoção dos níveis mais baixos do jogo a um status mais alto: isso acontece com jogadores, é claro, mas não com os times”, comentou o analista Tim Worstall em um artigo à Forbes.
O sistema serve bem aos donos, não tanto aos atletas. No futebol, com a concorrência sempre batendo à porta e podendo levar suas maiores estrelas, os times precisam reinvestir em salários sempre mais altos. O resultado, conclui Worstall, é que “as franquias americanas tipicamente fazem muito dinheiro. Já clubes de ‘soccer’ tradicionalmente não têm grandes lucros”.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Ataque de Israel em Beirute deixa ao menos 11 mortos; líder do Hezbollah era alvo
Deixe sua opinião