Vizinhos chegam com seus cães à festa de aniversário do cão mais velho do mundo, Bobi, após completar 31 anos, na vila rural de Conqueiros, Leiria, centro de Portugal, 13 de maio de 2023.| Foto: EFE/EPA/PAULO CUNHA
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O Papa Francisco contou no ano passado: uma mulher se aproximou dele para pedir que ele abençoasse seu bebê, mas assim que puxou a cortina do moisés, o Pontífice viu que se tratava de... um cachorro pequeno. "Perdi a paciência – relata, citado pela BBC –. Eu disse a ela: 'Com tantas crianças passando fome, você me traz um cachorro?'"

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Crianças, cachorros... Curiosamente, cada vez menos pessoas veem a diferença. Segundo uma recente pesquisa do Pew Research Center nos EUA, entre os donos de animais de estimação entrevistados, 97% disseram considerar esses animais como “família”, e 51% foram além: cães, gatos e outros animais eram percebidos, no núcleo familiar, como mais um membro "humano", em igualdade de condições com os demais. Vale destacar que os que mais expressaram essa percepção foram os que viviam em casal e sem filhos (65% deles viam assim), assim como os que nunca se casaram (63%), enquanto os casados e os pais foram os menos inclinados a dar essa categoria (43% e 42%, respectivamente), talvez porque sabem o que é uma família de verdade.

Uma das derivações da tendência "familiarista" é que, talvez impulsionados por slogans ambientalistas mal interpretados ou por desejos pessoais de “realização plena” sem amarras nem responsabilidades complexas, alguns estão colocando os animais de estimação no lugar das crianças.

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Exemplos abundam na mídia. O New York Times relata o caso de uma mulher, mãe de dois filhos, que perdeu vários momentos importantes da vida escolar deles por estar cuidando de chimpanzés – “se é seu filho biológico, é algo natural, porque você realmente deu à luz essa criança; mas quando você adota um macaco, o vínculo é muito, muito mais profundo", costumava dizer. Ou o caso da menina de três anos que correu para acariciar um cachorro e a dona se colocou no meio para impedir, sugerindo ao pai que amarrasse a pequena com uma coleira (orgulhosa de sua atitude, ela até comentou sobre isso em um post no X). Ou o do dono de um bar inglês que colocou na entrada o aviso: “Dog Friendly, Child Free” (Amigável com cães, livre de crianças), um enunciado que, sem muito esforço, pode ser associado a tristes episódios de discriminação na história.

Quem perde com isso são as crianças, que são reduzidas a seres incômodos ou a “fardos” insuportáveis em alguns lugares. Mas também – como veremos mais adiante – perdem os animais de estimação, que talvez não achem tão agradável acompanhar seus donos em um bar onde há um jogo de futebol, no meio do barulho e do cheiro de álcool, correndo o risco de serem pisoteados (alguns escapam disso estando sentados... em carrinhos de bebê), em vez de estarem correndo na grama de um parque, brincando com outros animais, farejando, marcando território...

Em resumo: tratar um cachorro ou um gato como “substituto de crianças”, vesti-los com roupas ou chapéus e comprar-lhes um bolo de aniversário com velinhas não é o melhor para esses animais. Estamos impondo isso a eles. E ninguém ganha com isso.

| Foto: Imagem de Ilona Krijgsman por Pixabay

O problema do antropomorfismo

A cena do bolo e do parabéns para o cachorro – quem nunca viu algo assim nas redes sociais? – não arrancaria nem um sorriso do falecido filósofo inglês Roger Scruton. “A sentimentalização e a ‘kitschificação’ dos animais de estimação – escrevia em Animal Rights & Wrongs (1996) [Os direitos e erros dos animais, sem edição no Brasil] – podem parecer para muitos o epítome da bondade de coração, mas, na verdade, muitas vezes é o contrário: é uma forma de desfrutar do luxo das emoções calorosas sem o custo usual de senti-las; é uma maneira de se dirigir a uma vítima inocente com um amor simulado que ela não tem capacidade de rejeitar ou criticar.” E é, acrescentava, "uma crueldade".

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Porque não: o cachorro não sabe que fez aniversário e também não se importa. Quem se importa é o dono, que o "personifica" e lhe atribui inquietações, necessidades e desejos próprios dos humanos.

Isso é o que chamamos de antropomorfismo, algo que Scruton percebia em determinadas reações em relação aos animais de estimação ou a outros animais, dada a tendência de interpretar o comportamento deles de acordo com nossas emoções. Essa inclinação – opinava – deve ser deixada de lado se quisermos compreender a natureza das ações de um animal em sua devida dimensão.

O autor reconhecia que, no caso dos primatas – “tão parecidos conosco na aparência e tão capazes e dispostos a imitar nossos interesses” – poderia ser difícil não vê-los como crianças. Mas a criança, que temporariamente não tem capacidade de tomar decisões importantes sobre si mesma ou sobre a comunidade humana, tem essa capacidade em potencial, e um dia, à medida que crescer e alcançar sua maturidade psicológica, poderá exercer seus direitos e ser responsável por seus atos.

Os animais, por outro lado – sejam animais de estimação, de serviço ou selvagens – não têm esse potencial para serem membros da comunidade moral. Não se pode, portanto, equipará-los a pessoas nem, por não serem tais, conceder-lhes direitos.

Quando, erroneamente, fazemos isso, “vinculamos eles a obrigações que não podem cumprir nem entender”, apontava o filósofo. Para ele, essa atitude não é apenas uma crueldade sem sentido, mas também destrói “toda possibilidade de relações cordiais e benéficas entre nós e eles. Apenas ao nos abstermos de personalizar os animais, poderemos nos comportar com eles de maneira que possam compreender”.

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“Deixemos que os cães sejam cães”

As suposições "antropomórficas" dos donos em relação aos seus animais de estimação podem resultar, como vimos, em concessões ou atenções indevidas. Mas também podem prejudicá-los.

Isso é alertado até por defensores entusiastas dos animais, como Jessica Pierce, doutora em Bioética pela Universidade de Harvard, que dedicou vários livros à temática ambiental e, em especial, à relação entre o homem e os animais de estimação. Sobre a "humanização" desses animais, ela afirma que “não é necessariamente uma tendência positiva”.

“Uma das consequências negativas mais importantes de tratá-los como crianças é que não conseguimos satisfazer suas necessidades comportamentais. Podemos acreditar que estamos fazendo bem a um cachorro, por exemplo, mantendo-o sempre dentro de casa, onde há boa temperatura e segurança, e dando-lhe uma tigela de ração cara e especial. Mas mimos não são o que mantém um cachorro feliz, e sim a possibilidade de ser simplesmente um cachorro e participar dos comportamentos para os quais está motivado.”

“A fórmula é bastante simples: devemos deixar que os cães sejam cães (e os gatos, gatos, etc.). Vejo animais de estimação, por exemplo, que são carregados em bolsas, que nunca colocam uma pata no chão ou na grama, que urinam dentro de casa sobre um pedaço de grama artificial, que se sentam em uma cadeira à mesa de jantar, que assistem à TV quando seus donos saem, etc. Esses cães não estão satisfazendo suas necessidades caninas.”

Em relação aos problemas do cuidado inadequado, a perspectiva de Pierce coincide com a de Mimi Bekhechi, vice-presidente para a Europa da PETA, uma organização internacional pelos “direitos dos animais”: “Cães e gatos não são humanos, então não se pode sempre tratá-los da mesma forma [que as pessoas]. Não se pode, por exemplo, vestir os animais, pois isso pode causar-lhes estresse e, em alguns casos, ser perigoso para eles.”

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Ela nos diz que os tutores de animais (em vez de donos) devem prestar atenção ao que esses animais comunicam "e garantir que sua comodidade, alegria e capacidade de expressar um comportamento natural sejam uma prioridade". Isso, segundo ela, deve ser adicionado ao que chama de “disposições essenciais e inegociáveis”, como um habitat e uma alimentação adequados, bons cuidados de saúde e a possibilidade de fazer exercícios.

Quem vai para o abrigo? Seu "filho"?

É importante acrescentar, por fim, que uma expectativa exagerada dos donos sobre o que significa o devido cuidado com seus animais de estimação pode ter, paradoxalmente, um resultado indesejado: o abandono. A tentação dessa “saída” surge quando, por exemplo, não é mais possível economicamente levá-los ao pet shop, nem continuar comprando alimentos ou cosméticos caros, nem criar um ambiente que vai além do razoável (nota à parte: os cuidados de luxo com o cachorro ou o gato indicam o status do dono, então, de certa forma, tornam-se uma vitrine a ser mantida, e quando isso não é possível...).

Um artigo no site da PETA sobre as razões para abandonar animais em abrigos enumera, entre as piores, a anterior: “é muito caro” mantê-los, juntamente com outras razões como "me mudei para uma casa menor", "ele (o cachorro ou gato) não é mais tão bonito" ou "ele está muito velho". Segundo estatísticas da organização Shelter Animal Counts, só em 2023 os americanos confinaram 3,3 milhões de gatos e 3,2 milhões de cães em abrigos de animais. Mais de 850 mil morreram ali; a maioria (330 mil gatos e 360 mil cães) foi eutanasiada.

Na Espanha, por sua vez, a Fundação Affinity revela que mais de 286.600 animais de estimação (170.712 cães e 115.970 gatos) foram abandonados em 2023. Dos que chegaram aos abrigos, 45% dos cães e quase 49% dos gatos foram posteriormente adotados, enquanto a eutanásia foi aplicada em 0,5% dos casos, em ambos os casos. Como causas de abandono, foram citados a perda de interesse pelo animal, problemas de comportamento do mesmo, fatores econômicos, etc.

Para aqueles que inicialmente foram acolhidos como "mais um entre nós" ou como “meu amado filho”, o destino final de muitos contradiz bastante toda essa "familiaridade" anterior.

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Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

©2024 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol: Muy lindo el cachorrito…, pero no es tu hijo