Um típico comercial que vemos na época que antecede o Dia dos Pais: um homem conta para a câmera que nasceu para ser pai e fala sobre como os seus filhos amam as suas brincadeiras, enquanto as imagens mostram cenas familiares, como o pai dançando desajeitado e tirando sarro do filho adolescente. O filme termina com mensagens bonitas e as crianças entregando um presente para o pai.
A peça publicitária foi publicada pelo Boticário no dia 26 de julho e já teve mais de 6,9 milhões de visualizações no YouTube.
A diferença entre esse e a maioria dos comerciais é que a família retratada é negra. E por isso o vídeo atraiu reações negativas: mais de 17 mil pessoas marcaram o vídeo com a opção “Não Gostei”, e muitos comentários criticaram a presença só de negros no comercial.
“Pouco criativa e racista. Vamos misturar essa família aí”, diz um comentário.
“O Boticário só fabrica perfume para afros? Acho que estou usando a marca errada”, afirma outro.
“Ué. Nem pra colocar pelo menos a empregada branca em, (sic) faltou diversidade. Racismo inverso existe, isso é a prova”, escreveu um usuário.
“É tanto vitimismo que acham que os deslikes são racismo, quero ver um vídeo nesse YouTube que não tem deslike”, dizia outro comentarista.
A maioria das reações foi positiva, no entanto: mais de 107 mil pessoas “curtiram” o vídeo no YouTube, e a maioria dos comentários tem defendido a peça. Mesmo assim, a situação reacendeu o debate sobre preconceito no Brasil e sobre a existência do chamado “racismo reverso”.
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A situação não surpreendeu Lucimar Rosa Dias, coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade Federal do Paraná. “Toda vez que temos uma ação que priorize uma família negra, sempre há quem discorde, questione e problematize. A norma é ter sempre famílias brancas fazendo propaganda de qualquer coisa, e isso não incomoda. Mas quando colocam a centralidade em famílias ou pessoas negras, isso provoca polêmicas. O que explica isso é o racismo na sociedade”, afirmou Lucimar.
Para o cientista social Eduardo Baroni Borghi, o episódio mostra as consequências do racismo no Brasil, que dificulta os negros de ocuparem espaços de poder, e também faz com que os brancos não se reconheçam como responsáveis pelo racismo na sociedade brasileira. “As pessoas não se chocam quando veem negros nos programas policiais. O racismo faz com que as pessoas acreditem que o lugar das pessoas negras seja esse”, disse Borghi.
Racismo reverso
Episódios como esse retomam o debate sobre o chamado racismo reverso, que seria o preconceito de negros contra brancos. É comum ouvir alguém falando que já sofreu racismo por ser branco. E aí surge a dúvida: é correto considerar como racismo atitudes discriminatórias sofridas por pessoas brancas?
Lucimar afirma que não existe racismo reverso, porque o racismo está intrinsecamente ligado às relações de poder. “Não existem condições sociais e políticas de existir racismo reverso”, afirmou. “As pessoas brancas ocupam todos os espaços de poder da sociedade brasileira, elas não são preteridas no mercado por causa da sua cor de pele. Então, acho quase improvável que a pessoa sofra racismo nessa perspectiva em que estamos trabalhando”, acrescentou.
Ou seja, na sociedade brasileira, o racismo discrimina os negros, que acabam tendo menos oportunidades educacionais, financeiras, sociais e culturais. Um negro pode se dirigir a um branco, por exemplo, e chamá-lo de branquelo, e mesmo assim esse branco vai continuar tendo os privilégios acumulados durante a sua vida.
Régis Elisio, do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Uberlândia, concorda que o racismo reverso não se aplica no Brasil. “O racismo no Brasil é estrutural, construído ao longo de séculos de escravidão e marginalização”. Para ele, existe uma confusão entre racismo e injúria racial, que seria atacar outra pessoa por causa da sua cor.
“As pessoas acham que o racismo reverso seria colocar o branco em uma situação vexatória, de agressão verbal. Mas, por mais que essa pessoa fosse menosprezada, ela jamais estaria sofrendo racismo, porque assim que ela saísse dessa situação, toda a estrutura do país estaria se movimentando de modo a beneficiá-la e o mesmo não acontece com o negro”, comparou Elisio.
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Na opinião de Borghi, as pessoas podem ter preconceito contra pessoas brancas, mas os negros não teriam poder na sociedade brasileira para praticar racismo. “O racismo é um sistema de opressão que exige poder para acontecer”.
Borghi conta que o episódio do comercial do Boticário o lembrou do conceito de “fragilidade branca”, cunhado pela acadêmica americana Robin DiAngelo, que explicaria a reação negativa das pessoas ao vídeo. “As pessoas brancas vivem em uma zona de conforto, onde nunca são colocadas para pensar o racismo. E quando isso acontece, às vezes não reagem muito bem. Acho que esse caso revela que muitas pessoas não estão preparadas para lidar com o racismo, por mais que o país tenha avançado muito nessa questão”.
Racismo à brasileira
O antropólogo Roberto DaMatta, em seu livro “O que é o Brasil?”, de 2004, faz uma comparação entre o racismo nos Estados Unidos e no Brasil, e ajuda a elucidar o “racismo à brasileira”. No país norte-americano, uma pessoa com ascendência negra – ou com aquilo que os americanos costumavam chamar de de “sangue negro” – mas aparência branca, passa a ser considerada preta.
“O racismo americano [...] revela um preconceito racial aberto à discriminação e à segregação, um prejuízo que considera básicas as “origens” das pessoas, e não as suas “marcas” (ou aparências) raciais, como ocorre no caso brasileiro. Nos Estados Unidos, liga-se a aparência a uma “essência” (a origem), fazendo com que um “branco” seja classificado como “negro”, caso um dos seus ascendentes tenha sido “negro”.”
Já no caso do Brasil, tudo depende da situação e do contexto. A consequência disso, aponta DaMatta, é a dificuldade de enfrentar ou mesmo de perceber o nosso preconceito, que tem enorme invisibilidade.
“Primeiramente, porque o preconceito racial era muito mais claro, visível e contundente nas sociedades igualitárias. Mas em sociedades hierarquizadas e pessoalizadas como o Brasil, a gradação e o clientelismo diluem o preconceito que sempre pode ser visto como dirigido contra aquela pessoa e não contra toda uma etnia. Daí a nossa crença em que não temos preconceito racial, mas social, o que, tecnicamente, é a mesma coisa. Numa sociedade onde somente agora se admite não existir igualdade entre as pessoas, o preconceito velado é uma forma muito mais eficiente de discriminar, desde que essas pessoas “saibam” e fiquem no seu lugar.”
É comum ouvir o argumento mencionado pelo antropólogo de que, no Brasil, o preconceito é social, e não racial. Claro, já que as pessoas pobres de qualquer cor têm uma vida de grandes dificuldades no Brasil. Entretanto, não são poucos os casos em que negros ricos sofrem preconceito. Por exemplo, já ouvimos falar de casos em que celebridades ou jogadores de futebol sofreram discriminação, ou casos em que professores chegaram a uma universidade para dar palestra e foram confundidos com trabalhadores braçais.
“O cotidiano já comprova [que não é verdade] a ideia de que enriquecer é suficiente para romper com o racismo. Todos nós já vimos essas situações, de pessoas que superaram a desigualdade econômica e que continuam sofrendo racismo em diferentes locais porque são negros”, opinou Lucimar.
Outro sociólogo que fala sobre a diferença entre o racismo no Brasil e nos Estados Unidos é Oracy Nogueira. Ele explica que, nos Estados Unidos, o preconceito é de origem, causado pela segregação racial no país, enquanto no Brasil existe o “preconceito de marca”, ou seja, é sofrido por quem é reconhecido como negro não por suas origens, mas pelas suas características físicas.
O antropólogo e professor brasileiro-congolês Kabengele Munanga diz que o racismo no Brasil “é um crime perfeito”. Isso seria causado porque “as pessoas não reconhecem o seu próprio racismo, e os negros acreditam em sua inferioridade”, explica Borghi.