No mês passado, no dia 26, o Ministério da Saúde publicou uma nota com título “É falsa a informação de que o Brasil é o único país que vacina crianças contra a Covid-19”. Segundo a nota, “produtores de desinformação” fazem a afirmação falsa, “mas não conseguem encobrir os fatos”. Sem mostrar exemplos de quem estaria afirmando isso (um hábito de agências de checagem, por exemplo), o ministério alegou que a inverdade “circula nos grupos de aplicativos de mensagens e redes sociais” com o objetivo de “desencorajar as famílias a vacinas as crianças contra a enfermidade”.
Mas é verdadeira outra afirmação, esta mais fácil de confirmar que a alegada pela instituição: o Brasil é o único país que ainda trabalha com a obrigatoriedade da vacina da Covid para crianças. Como anunciado em 31 de outubro do ano passado e implantado em janeiro com a Nota Técnica 118/2023 do Ministério da Saúde, agora a vacina de mRNA contra a Covid “passa a ser obrigatória para crianças entre seis meses e quatro anos”, como informou a Secretaria de Saúde do Paraná.
Como sabemos que o Brasil é o único país que está obrigando pais a vacinar crianças contra Covid-19
Um artigo publicado na revista Nature Human Behaviour, em julho de 2023, analisou as políticas de vacinação contra Covid em 185 países durante a pandemia. Os autores, da Universidade de Oxford, listaram 55 países (29%) que implementaram algum tipo de obrigatoriedade na imunização vacinal. Essas políticas obrigatórias raramente foram universais — a obrigatoriedade universal para toda a população adulta só aconteceu em nove países. O Brasil não está listado entre os que implementaram obrigatoriedade até a data limite de 8 de agosto de 2022.
O caso mais comum foi que a obrigatoriedade se restringia a faixas etárias, grupos profissionais como os funcionários da saúde ou do governo, grupos que se expunham a aglomerações por causas de rituais religiosos (caso da Arábia Saudita e de Bangladesh) ou pessoas que trabalhavam em determinadas regiões mais expostas ao vírus. O caso mais comum foi obrigatoriedade de acordo com profissão (83%), por faixa etária foi mais raro (17%). Os cientistas não consideraram “obrigatoriedade” a implementação de políticas coercitivas como o chamado “passaporte vacinal”, que impedia entrada de não-vacinados em prédios públicos ou até países inteiros.
Apenas três países incluíram as crianças na vacinação obrigatória para a doença: Costa Rica, Equador e Indonésia. Nos três, essas políticas já caíram, apurou a Gazeta do Povo. A obrigatoriedade vacinal do Equador a partir dos cinco anos de idade foi introduzida em 2021, mas foi derrubada em 2023 pela Corte Constitucional. Em seu voto, Karla Andrade, ministra da corte, apontou que “o vice-ministro da saúde não respeitou as normas constitucionais de competência e reserva da lei” ao emitir portarias com a obrigatoriedade.
Já a Costa Rica introduziu a obrigatoriedade somente para menores entre três e 18 anos em setembro de 2021, mas o Ministério da Saúde recuou em dezembro de 2022, declarando que “a partir deste momento, não tramitarão denúncias contra pais de família ou responsáveis que não desejem vacinar crianças contra a Covid-19”. O recuo foi resultado de uma medida cautelar.
A mais ambiciosa e longeva política de vacinação obrigatória contra Covid foi feita pela Indonésia, implementada para toda a população, crianças inclusas, pelo ministro da Saúde em 31 de dezembro de 2020. O país, classificado como uma “democracia defeituosa” pela Unidade de Inteligência da revista The Economist, tem a quarta maior população do mundo. Em junho de 2023, o governo deixou de exigir prova de vacinação de estrangeiros que visitassem a Indonésia. Em 1º de janeiro de 2024, informa o jornal local The Jakarta Post, a obrigatoriedade caiu oficialmente. Um porta-voz do Ministério da Saúde informou, também, que o governo passaria a cobrir o custo da vacinação contra Covid somente para idosos, adultos com comorbidades, funcionários da saúde, mulheres grávidas e pessoas imunocomprometidas.
Bioeticistas defendem que obrigatoriedade da vacina contra Covid não se sustenta mais
Em uma nota de setembro de 2023, a Associação de Diretores de Programas de Bioética (ABDP, na sigla em inglês), que representa quase 100 programas de bioética em centros médicos e universidades da América do Norte, reverteu uma posição anterior e declarou que “agora apoia decisões de encerrar as obrigatoriedades de vacinas para Covid-19, enquanto continua a recomendar que a maioria das pessoas devem ser vacinadas e tomar o reforço”.
Do mesmo modo, a Organização Mundial da Saúde, em um documento produzido por sua equipe de ética da saúde e governança, declarou em maio de 2022 que “não apoia atualmente a implementação de obrigatoriedades para a vacinação contra Covid-19, tendo defendido que é melhor trabalhar com campanhas informacionais e a acessibilidade das vacinas”.
O Ministério da Saúde declarou em nota à Gazeta do Povo que a cobertura vacinal entrou em queda no Brasil por causa de “lideranças que criticavam e semeavam dúvidas sobre as vacinas” e “fake news”. A instituição reivindica crédito por reverter essa tendência no ano passado ao “sensibilizar a população”, e justifica a obrigatoriedade com a mortalidade maior por Covid-19 em crianças de zero a cinco anos, faixa contemplada pela política, em comparação às outras idades entre os menores. O ministério contabiliza 99 óbitos entre menores de um ano e 31 na faixa etária entre um e quatro anos por Covid, e 142 mortes por Síndrome Inflamatória Multissistêmica Pediátrica, que pode ser engatilhada pela Covid. A nota não comentou o fato de o Brasil estar sozinho na implementação da obrigatoriedade.
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