
Nos últimos anos tem crescido o movimento por reparações econômicas que minimizem as diferenças sociais entre as populações negra e branca em países como os Estados Unidos e, agora também, no Brasil.
Nos EUA existe um grupo chamado American Descendants of Slavery (Descendentes Americanos da Escravidão, em português), que pleiteia ao governo americano reparações do período de escravidão — havia cerca de quatro milhões de pessoas escravizadas em 1860 nos EUA.
O grupo assistido por advogados pede um pacote de reparações em dinheiro de US$ 20 trilhões (equivalente a R$ 114 trilhões na cotação atual) para os descendentes diretos de escravos que nasceram nos EUA, além de políticas e proteções até que a lacuna de riqueza entre americanos brancos e negros seja encerrada.
No ano passado, em uma ação inédita, o Ministério Público Federal (MPF) do Rio de Janeiro pediu ao Banco do Brasil (BB) para que a instituição apresentasse ações concretas de reparação à população negra por suposta participação do banco no tráfico de escravos no século 19.
A justificativa é que José Bernardino de Sá, acusado pelos historiadores de ter sido um dos maiores contrabandistas de africanos na época, era um dos acionistas do banco, fundado em 1808. No embalo da ação, a organização UneAfro enviou um relatório ao MPF propondo a criação de um fundo de R$ 1,4 trilhão (quase 12% de toda a riqueza produzida pelo país em 2024) pelo banco para ser usado nos próximos 20 anos na reparação histórica à população negra.
A indenização pedida se baseia no valor projetado de 30% do lucro líquido do banco em 2023 (R$ 35,6 bilhões) multiplicado por 136 anos.
Diferenças sociais
A abolição da escravidão no Brasil, em 1888, de maneira isolada não foi suficiente para diminuir a diferença de renda, emprego, e moradia entre brancos, pretos e pardos. O último Censo do IBGE, de 2022, reforça essa realidade. Segundo a pesquisa, o rendimento médio dos trabalhadores brancos era de R$ 3.099 e dos pretos, R$ 1.764, em 2021. A quantidade de moradores brancos sem documentação de suas propriedades era de 10% da população – metade da de pretos e pardos. A taxa de homicídios de pessoas pardas foi o triplo e a de pretos o dobro em relação a de brancos em 2020.
Parte da sociedade e alguns pesquisadores argumentam que a desigualdade seria reflexo do impacto causado no país pelos mais de 350 anos de escravidão, período em que quase cinco milhões de escravizados foram trazidos da África. De acordo com eles, a população negra nunca teve acesso às mesmas oportunidades. Por isso, o país tem que desenvolver medidas para reparar esse desequilíbrio.
O Brasil tem algumas. A que prevê cotas raciais nas universidades é a mais conhecida. Existe desde 2012 e, segundo o Ministério de Educação, mais de um milhão de estudantes ingressaram no ensino superior por meio da Lei de Cotas em dez anos. Também, nos últimos anos várias empresas implementaram as vagas afirmativas, em que dão prioridade a candidatos negros, além de iniciativas público e privadas para fomentar a cultura e o empreendedorismo negro.
Em meio às medidas que já existem e outras que são propostas, o debate que se faz hoje é: até quando essa reparação histórica deveria ser feita? Existe uma data ou uma meta ou o Brasil sempre estará em débito com a população negra por causa da escravidão?
Contra as reparações
A socióloga Geisiane Freitas discorda de possíveis políticas de reparação. “Não tem como explicar a pobreza de uma pessoa se pautando somente pela cor de pele e pela escravidão. Se fosse simples assim conseguir descrever isso, jamais teria um negro em ascensão ou rico. Mas isso não é a verdade”.
Ela reconhece o fato de que a maior parte da população preta e parda é pobre, mas pondera que o país é miscigenado e em sua maioria e pobre, então é natural essa distribuição de renda.
“O grande problema é que a esquerda aponta que o motivo da pobreza é necessariamente a escravidão e a cor de pele, consequentemente. Mas o verdadeiro motivo é a gestão das políticas da esquerda. No lugar de justificar que a pessoa é pobre só por isso, por que não questionar quais os fatores, para além do racismo e cor da pele, que fazem com que essa população esteja nessa situação?”, questiona Geisiane.
“A população pobre está instruída suficiente, o que vislumbra no âmbito cultural, quais as culturas que são enxertadas que não sejam criminalidade e vulgaridade nas comunidades? Essas perguntas a esquerda não está a fim de fazer”, diz a pesquisadora de relações raciais e de gênero.
Outra questão que ela levanta que torna a reparação histórica mais complexa é pessoas negras também tinham escravos. “Então, não se pode colocar só considerar a categoria racial. Além disso, como a genealogia dos brasileiros é bem misturada, é possível que uma pessoa hoje seja descendente de escravizados e escravocratas ao mesmo tempo.”
O deputado federal Helio Lopes compartilha da visão de Geisiane. Do seu ponto de vista, não faz sentido atribuir a pobreza à cor ou dizer que tem menos oportunidade por ser preto ou pardo. “Apesar das dificuldades, não é de onde você parte, mas de onde quer chegar”.
Ambos reconhecem as desigualdades, mas são contra as reparações. Defendem que as ações afirmativas, como as cotas nas universidades, sejam baseadas na vulnerabilidade social, e não racial. Helio Negão, como também é conhecido, é autor do projeto de Lei 2105/2022, em tramitação na Câmara dos Deputados, que substitui os programas baseados em cotas raciais por critérios socioeconômicos.
“A dificuldade não tem cor. Nas favelas a maioria é negra, mas eu já vi famílias brancas com mais dificuldades. Não tem como explicar a pobreza de uma pessoa somente pela cor da pele e pela escravidão (que houve no país). Este é um critério falho e pode abrir um precedente perigoso. Hitler separava as pessoas pela cor da pele”, diz o deputado, que nasceu em uma comunidade no Rio de Janeiro e pegava restos de comida na casa das pessoas para alimentar os porcos, antes de estudar para concurso público, ingressar no Exército, e depois entrar para a política.
“O pessoal que defende a reparação comete um anacronismo (analisar um tempo histórico com base em valores de outra época). O que passou, passou”, diz referindo-se ao período de escravidão. “Separar por cor segrega e não resolve”, afirma Lopes.
Impacto duradouro da escravidão
Já para os defensores da reparação histórica à população negra, a métrica para saber até quando a dívida acaba é a igualdade social e econômica. Isso inclui equidade salarial, de acesso aos estudos, de tratamento (sem racismo), e melhoria de moradia e segurança.
Os defendentes admitem que é complexo – talvez até um pouco utópico – mas enfatizam que o objetivo é manter e ampliar as ações que já existem.
Na prática, essa reparação seria contínua, sem prazo para acabar. Os defensores levam em conta que não tem como reparar individualmente os descendentes dos escravizados no Brasil (como os dos judeus do Holocausto), mas argumentam que as ações afirmativas somadas às melhorias para mitigar a desigualdade são o caminho para a reparação — ainda que leve muito tempo.
“O pagamento direto (da escravidão no Brasil) é impossível. Não tem como provar quem sofreu e quem era quem, ou que a sua família foi diretamente afetada para receber indenização”, afirma Paulo Cruz, colunista da Gazeta do Povo e mestre em Ciências da Religião.
Ele acredita que a reparação histórica pode acontecer indiretamente à medida que o país melhore. Cerca de 70% da população pobre é preta e parda. Ou seja, ao fornecer saneamento básico, deixar as pessoas mais independentes do governo, e garantir melhor moradia e educação de base para estas pessoas, a desigualdade começa a reduzir.
A situação dos judeus e seus descendentes que foram vítimas do Holocausto e tiveram seus bens roubados por nazistas é diferente, explica ele. Neste caso, é possível traçar a genealogia e às vezes até valores (como contas em bancos e terrenos, por exemplo).
“Qualquer cálculo vai estar aquém do que a escravidão significou em termos de dor e economia. A reparação tem um sentido mais amplo. As pessoas têm em mente as cotas raciais, mas isso envolve outras coisas, como acesso às terras, interesses econômicos”, diz Jefferson Belarmino de Freitas, doutor em Sociologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ/IESP) e pesquisador do Grupo de Estudos Multidisciplinar da Ação Afirmativa (Gemaa).
Maria Helena Pereira Toledo Machado, titular do Departamento de História da Universidade de São Paulo (USP) salienta que a escravidão do Brasil foi muito profunda e atingiu a estrutura e formação da sociedade que temos hoje.
“Ainda se vê a disparidade em todos os aspectos sociais. Não é igual à escravidão. Mas, estruturalmente, há traços básicos nas relações sociais”, diz Toledo, que também é coautora do livro “Escravidão, maternidade e morte no Brasil no século XIX”.
Um destes traços seria a relação do senhor com os escravizados que se desdobra de outras formas, mas continuam discriminatórias.
“É o tal do ‘sabe com quem está falando?’, por exemplo. Temos aumento da consciência, tudo isso dá certa esperança, mas as relações sociais mais profundas que produzem e reproduzem essas desigualdades não estão nem perto de serem superadas. Não houve historicamente uma disseminação de igualdade no espaço público”, afirma a pesquisadora.
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