No dia 31 de janeiro de 2023, um homem de identidade ainda não relevada ateou fogo ao próprio corpo no gramado central da Esplanada dos Ministérios. Segundo testemunhas, o ato teria sido praticado em manifestação contra as ações do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Nos seus pertences, foram encontrados panfletos de cunho político nos pertences do homem, incluindo imagens de Nelson Mandela, Johann Georg Elser e Claus von Stauffenberg, os dois últimos conhecidos por tentar matar Adolf Hitler.
Em mais de um sentido, o caso guarda semelhança com outro fato da história política contemporânea. Mohamed Bouazizi era um jovem tunisiano de 26 anos, que sustentava uma grande família vendendo frutas e legumes na rua. Um dia, saiu de casa com seu carrinho de mão, mas foi abordado por policiais que exigiram propina para liberar sua mercadoria. Diante da recusa, os agentes apreenderam os produtos do jovem e o agrediram. Bouazizi foi até à sede do governo local para tentar reaver seus pertences, mas o governador não aceitou recebe-lo. Então, comprou um latão de gasolina, jogou o combustível sobre si e acendeu um fósforo.
O ato desesperado de Bouzizi ocorreu no dia 17 de dezembro de 2010, desencadeando uma forte onda de protestos no país. Apenas nove dias depois de sua morte, o autocrata militar que presidia a Tunísia fugiu do país. Os protestos logo se se alastraram por vários países do Oriente Médio e do Norte da África. Resultaram em revoluções na Tunísia e no Egito, guerra civil na Líbia e na Síria, afetando a ordem política de mais de uma dezena de nações.
Contudo, as semelhanças entre os dois eventos parecem se esgotar na morte de seus protagonistas. Pouco mais de 10 dias depois do suicídio pirotécnico em Brasília, não se viu um único protesto nas ruas do país. O caso foi pouco comentado pela mídia e sequer se tornou tema de discursos eloquentes no Congresso. Os poucos que puxaram algum debate a respeito do caso, na esquerda ou na direita, não encontraram muita ressonância nas redes sociais.
Em um país que vem sendo abalado há quase uma década por grandes manifestações de rua, fica uma pergunta inevitável: por quê?
A hipótese do fim de um ciclo
O nível de apatia com que o suicídio de Brasília foi recebido avivou ainda mais as esperanças no campo da esquerda de que a eleição de Lula marcaria um fim de ciclo de desordem política no país, iniciado com as Jornadas de Junho de 2013. Passando pela Operação Lava Jato e o impeachment de Dilma Rousseff, esse ciclo teria culminado com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Eleito como um símbolo aglutinador de vários antagonismos que se encontravam represados na sociedade, na esteira de uma crise que teria desmoralizado os partidos políticos e as instituições republicanas, o ex-capitão não teria conseguido implementar uma agenda consistente de transformações institucionais, rompendo a lógica do sistema político brasileiro.
Assim, a revolta antissistema que tomou conta da sociedade teria encontrado na resistência ao governo Bolsonaro, principalmente da parte das Cortes, o seu termidor. A eleição de Luís Inácio Lula da Silva em outubro marcaria, então, um retorno progressivo da normalidade política do país, com a retomada das antigas práticas do presidencialismo de coalizão em um processo de reapropriação do Poder pela classe política tradicional em consórcio com grandes veículos de imprensa e as instâncias superiores do Judiciário.
O caminho natural dessa retomada já vinha se estabelecendo desde o governo Temer, com o enfraquecimento progressivo da Operação Lava Jato e a criação de barreiras institucionais para o avanço de novas investigações contra políticos e empresários poderosos.
Na próxima etapa do processo, seria então natural se esperar que o governo Lula, em conluio com a classe política e as Cortes, conseguisse implementar mecanismos eficazes de controle sobre as redes sociais, que anulassem o seu potencial disruptivo, incidindo diretamente na capacidade de organização de grandes massas urbanas, vistas como um risco perene para a ordem política estabelecida.
Depois, naturalmente, seria só uma questão de colocar os novos mecanismos de controle em operação, para anular agentes sistêmicos com potencial de ascensão política, incluindo o próprio Bolsonaro, que cedo ou tarde se tornaria inelegível ou mesmo condenado em alguns dos processos nos quais consta como denunciado.
Finalmente, o consórcio atualmente no poder teria a função última de inventar uma nova oposição ao petismo, uma nova direita permitida, que fosse até mesmo capaz de se alternar no poder, mas sem qualquer traço de ameaça ao status quo das instituições da Nova República.
2013: o ano que não terminou
Por mais que os sinais de apatia sejam evidentes, o problema com a hipótese de fim de ciclo reside no caráter de acidentalidade com a qual ela interpreta as mudanças ocorridas na sociedade brasileira nos últimos anos.
Entretanto, a crise política brasileira tem raízes mais profundas, que estão fora da imaginação política das elites que se apropriaram do poder nas últimas eleições. Iniciada em 2013, ela rompeu com a Pax Republicana instaurada desde a queda de Fernando Collor de Mello em 1991, expressando a necessidade de mudanças estruturais que a precária aliança que ora reina em Brasília não é capaz de conduzir, pelas suas próprias contradições internas.
Por que 2013? A resposta reside na eclosão das Jornadas de Junho, nas suas causas e consequências, que marcaram o fim do ciclo de estabilidade supracitado. Em menos de um mês, um governo Dilma que surfava em altos índices de popularidade, na casa dos 57% de aprovação, com inflação sob controlada (5,84%), desemprego baixo (4,3%) e perspectiva de crescimento do PIB na casa dos 2,3%, viu-se engolfado numa série de manifestações que levaram milhões de brasileiros para as ruas.
Os protestos iniciados contra o aumento de passagens em São Paulo se transformaram rapidamente numa revolta antissistêmica, sem liderança clara. Essa multidão, organizada a partir das redes sociais, com um padrão de comunicação direta por meio de smartphones e celulares, de repente se revelou portadora de uma dinâmica imprevisível e mesmo fora do controle das autoridades ou de corpos intermediários tradicionais do sistema político, como sindicatos, partidos políticos e organizações não-governamentais.
Tratava-se de uma massa não somente mais rápida, dinâmica e descentralizada do que as anteriores, mas de proporções gigantescas. Somente em 20 de junho, ao menos 1,5 milhão de pessoas, sendo 300 mil delas só no Rio, foram às ruas. Algumas aferições estimam 1 milhão de pessoas somente no RJ e 3 milhões de pessoas no mesmo dia. Entre 353 a 360 cidades assistiram manifestações naquele ano. Em 140 delas, houve protestos diários entre 17 e 29 de junho de 2013. Em São Paulo, ocorreram 1.001 protestos ao longo de 2013 e 714 em 2014.
Os efeitos que os protestos provocaram ultrapassaram a revogação dos aumentos de passagens. Amedrontados pela massa, os congressistas aprovaram o marco legal que possibilitou o início da Operação Lava Jato, já pouco menos de um ano depois. Ainda que fortemente abalada, Dilma Rousseff conseguiu levar a melhor num pleito duríssimo contra Aécio Neves, mas só para ver seu governo derreter sob o efeito consorciado das revelações das Operação Lava Jato, da deterioração econômica do país causada por uma política desastrosa e da eclosão de manifestações gigantescas pelo seu impeachment.
Depois das Jornadas de Junho de 2013, os protestos gigantescos, organizados de maneira descentralizada, pelo uso intensivo das redes sociais e dos smartphones, tornaram-se uma constante da crise política nacional. Nas manifestações pelo impeachment de Dilma Rousseff em 2015 e 2016, em pelo menos dois momentos o país viu massas que totalizaram quase 3 milhões de pessoas em mais de 100 cidades. As cenas da Paulista completamente lotada percorreram o mundo. Nas eleições de Bolsonaro, aglomerações urbanas se formaram em diversos rincões do país, com um nível de engajamento de apoiadores do Presidente dissociados de qualquer estrutura partidária ou associativa tradicional jamais visto. Nas manifestações do 7 de setembro de 2021 e depois na mesma data em 2022, contingentes análogos aos grandes eventos anteriores se concentraram na defesa do mandatário e num pedido difuso de radicalização, na maior manifestação de apoio popular que um Presidente da República já recebeu em toda a história nacional, superando até mesmo Getúlio Vargas.
As causas da crise
Existem causas para explicar 2013? O debate sobre causas na filosofia, na história e nas ciências sociais é longo, por vezes enfadonho. Eu tomo a liberdade de usar a expressão aqui no sentido comum daquilo que antecede uma coisa, sem a qual ela dificilmente existiria.
Nesse sentido, podemos pensar em alguns elementos que ajudam a entender 2013 e, portanto, a crise na qual o país se encontra. No plano material, há que se destacar o advento da internet, que chegou ao Brasil nos anos 1980, mas enfrentou grande expansão a partir dos anos 2000, com a banda larga chegando a 133,7 milhões de acessos em 2013.
O número de computadores e smartphones também subiu rapidamente na primeira década do século XXI. Em 2013, quase metade dos domicílios brasileiros já possuíam um computador, cerca de 48% dos brasileiros tinham acesso à internet e algo em torno de 130 milhões de pessoas possuíam um smartphone.
As primeiras redes sociais, por sua vez, chegaram ao Brasil já no final dos anos 1990 com o mIRC,. Em 2005 o Orkut ganhou sua primeira versão em português. Em 2008, seria a vez do Facebook. Sucessivamente, essas plataformas foram se tornando febre para um número de usuários sempre crescente. Em 2013, por exemplo, o Facebook apresentava cerca de 70 milhões de perfis ativos só no Brasil.
Esse contexto tecnológico enseja o advento de uma nova cultura, marcado pela democratização do acesso à informação, pela rapidez do que é disponibilizado, pela horizontalidade do conteúdo disponível e pela difusão de novos agentes produtores de conteúdo para fora da mídia, das universidades e das publicações tradicionais.
Por outro lado, é também uma cultura que estimula o debate e o confronto de opiniões. Ela é diferente, possui um outro tempo, se comparado com uma cultura marcada por jornais, partidos e sindicatos, cujo tempo entre a emissão e a resposta a uma informação era mais longo e mediado, possibilitando o apaziguamento de inúmeros antagonismos, muitos dos quais jamais chegavam a aflorar em público.
As redes sociais alimentam o ego, inflam o orgulho, expõem a estímulos contraditórios pesados de aceitação ou rejeição, provocam a ira, diminuem os espaços de silêncio e estimulam permanentemente a sensibilidade. Elas respondem pelo surgimento de um novo ethos político das massas.
Além disso, o algoritmo permite a formação de redes frouxamente articuladas de interesses em nível nacional e mesmo internacional. As antigas instâncias de mediação perdem sua importância para a formação do caráter e da personalidade dos indivíduos. Essa nova cultura, portanto, é um convite permanente ao faccionismo, à opinião fácil, à revolta, à indignação, à mobilização, à politização permanente da sociedade.
Por isso, o abalo de diferentes ordens políticas na mesma década, todas submetidas a essa nova revolução da informação, ainda mais revolucionária que a invenção da imprensa, do rádio e da televisão. No Brasil, há que se considerar sua associação com um movimento espiritual profundo, que inclui aspectos como a crise da Igreja Católica; a protestantização da sociedade, com toda sua cultura de autonomia, opiniosidade e valorização da prosperidade econômica; a desestruturação de milhões de famílias; e o engessamento de uma cultura hegemônica de esquerda nas universidades, na burocracia estatal e na grande mídia.
Particularidade brasileira
Porém, é fato que muitos outros países não sentiram o impacto de mudanças análogas na sua configuração social. Existem razões particulares para que o colapso tenha sido mais profundo por aqui. Na história das revoluções políticas, eventos de ruptura quase nunca decorrem de situações de privação prolongada. Resultam da revolta social e da anomia provocadas por um período de escassez ou perda de status quo que se segue a uma prosperidade limitada. É o que a economia chama de privação relativa.
A era petista, surfando na abertura do mercado nacional para o mundo globalizado e na estabilização econômica do Plano Real, é marcada pela propaganda em torno daquilo que se defendia como conquistas das políticas sociais e econômicas de Lula e Dilma. Em torno de 36 milhões de pessoas saíram da condição de miseráveis para a de dependentes de programas de transferência de renda. Cerca de 46 milhões ascenderam à chamada Classe C, tendo mais acesso a bens de consumo que foram barateados pela valorização da moeda, redução de impostos e políticas de financiamento de grandes empresas nacionais. O número de matrículas no ensino superior passou de 3,2 milhões em 2002 para mais de 7,1 milhões em 2014. Outros 2,5 milhões foram capacitados em programas de ensino técnico.
Essa geração de brasileiros viveu a promessa de um futuro brilhante, mas que esbarrava em problemas persistentes do cotidiano. As grandes metrópoles apresentavam sinais de colapso na sua infraestrutura de mobilidade urbana, principalmente com o aumento do número de carros em circulação. Nas regiões metropolitanas, quase 20% da população demorava mais de uma hora para ir de casa ao trabalho e vice-versa. Os serviços de saúde permaneciam de péssima qualidade. E a insegurança se apresentava para um entrave real para a prosperidade de milhões de pessoas.
Para completar, verificava-se um descompasso crescente entre a nova “geração de diplomados” e as necessidades do mercado de trabalho, de modo que muitos brasileiros viam seus sonhos de prosperidade se chocar contra a parede quando o diploma almejado não resultava em aumento correspondente de salário ou conquista de uma vaga condizente com sua formação.
Por outro lado, a cooptação do petismo de estruturas intermediárias que poderiam aumentar a capacidade de resposta do governo a essas demandas crescentes criou um gargalo importante de participação na própria juventude identificada pela esquerda. Em pouco tempo, partidos, sindicatos, movimentos sociais e organizações não governamentais passaram a ser vistas como estruturas a serviço do poder central, e não mais instâncias de mediação para a participação política e a canalização de demandas de grupos de pressão da sociedade.
Nas universidades, redações de jornais e demais aparelhos de cultura, a hegemonia do pensamento de esquerda decorrente da apropriação progressiva dessas instituições desde o regime militar, deu lugar a estruturas engessadas, marcadas pelo excesso de formalismo e pela falta de pluralidade, operando na lógica do compadrio e cada vez mais incapazes de apresentar contribuições originais do espírito. A politização crescente afasta os talentos mais inconformados e as almas mais criativas.
Inicialmente uma força capaz de organizar o próprio sentimento de insatisfação que insuflava na sociedade, o petismo vai perdendo contato com suas bases, um movimento que se iniciara já mais de uma década antes, com a desestruturação das chamadas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica e do associativismo decorrente de sua ação na sociedade. Com a cooptação dos sindicatos e o aparelhamento das instituições produtoras de cultura, o partido se torna progressivamente dissociado dos movimentos mais profundos da sociedade brasileira.
Esse movimento remete a processos distantes, como é o caso da atuação do Papa João Paulo II em relação às CEBs, mas se intensifica durante o governo Lula, que, a partir do Mensalão em 2005, é forçado a se aproximar de maneira mais orgânica dos partidos tradicionais que compunham o sistema político brasileiro, afastando-se da construção do trabalho de base.
Esse sistema político, conhecido na literatura especializada como presidencialismo de coalizão, associa responsabilidades concentradas no Poder Executivo, dispositivos imperiais como as medidas provisórias, com forte dependência em relação ao Legislativo para composição do orçamento, execução de políticas públicas e mesmo nomeação de cargos estratégicos, forçando a formação de supermaiorias parlamentares para garantir a governabilidade.
O problema é que o caráter multipartidário do sistema e as eleições proporcionais facilitam a proliferação de legendas ideologicamente amorfas, por políticos eleitos no mais das vezes na troca de serviços que deveriam ser públicos por favores pessoais aos eleitores na ponta. Assim, para governar, o Presidente eleito é forçado a distribuir cargos, prebendas e fatias inteiras do orçamento a oligarcas regionais sempre muito ciosos de suas prerrogativas, que impõem um sistema hierárquico de vetos conforme as iniciativas prejudiquem este ou aquele interesse, impondo igualmente barreiras para o ingresso de novos membros, de modo a que a coalizão preserve seu poder de barganha.
Esse arranjo tende a atuar como força centrípeta da política, reduzindo-a ao máximo a operações de caráter meramente fisiológico e deslocando todos os antagonismos para negociações fechadas de bastidores, sendo o oposto, portanto, do espírito de revolta, participação popular e antagonismos que aflorou nas Jornadas de Junho de 2013.
Ironicamente, é interessante pensar que essa relação reproduz uma contradição já presente na Constituição de 1988, uma bricolagem que resultou de pressões distintas, sendo ao mesmo tempo a expressão de um Executivo enfraquecido, forçado a barganhar com as forças fisiológicas do Congresso para não ser anulado pelo Parlamento; de vetos das Forças Armadas; de controles impostos pelo chamado Centrão; do corporativismo sindical; e do convite à participação popular e de promessas de satisfação ilimitada da social democracia.
Tampouco se deve deixar de ter em mente que foi o caráter de imobilismo do sistema político em vigor que impediu a tentativa de setores do petismo de darem uma resposta mais radical aos eventos de 2013, barrando uma reforma constituinte e outros projetos de caráter chavista. Em um dos maiores plot twists da história nacional, os elementos mais imobilistas do sistema político nacional operaram como um garantidor da ordem, mas também como um elemento que alienava a esquerda dominante do controle das forças de rebelião que sempre estiveram sob sua égide.
Não se pode ignorar que isso teve grande impacto sobre o potencial de organização política de forças contra hegemônicas da nova direita, que encontraram inicialmente nas redes sociais e na internet canais preferenciais para sua afirmação na sociedade brasileira. Aqui, o trabalho do professor Olavo de Carvalho, como centro de uma verdadeira contrarrevolução cultural, teve importância tremenda principalmente no chamado trabalho do negativo, de quebra da legitimidade das instituições políticas que foram aparelhadas pela esquerda em conluio com as oligarquias do Centrão.
Nem tudo se desfaz
O que representa então 2013 para a história nacional recente? Quais são suas consequências? Em primeiro lugar, as Jornadas de Junho representam uma quebra da blindagem do sistema político brasileiro. As forças que eram antes mantidas sob controle pelo consórcio entre aparelhos de esquerda, grande imprensa e oligarquias políticas do Centrão encontram uma liberdade de expressão e auto-organização que tem na massa, no ajuntamento, a sua maior expressão de força e momentum formativo.
Assim, as lógicas particulares que regiam cada campo ou estrutura social se desfazem. De repente, as manifestações não funcionam mais em relação dialética dentro de um determinado campo, quando uma parte prejudicada se queixa, um intermediário canaliza essa queixa em protesto, o status quo reage, concedendo, subornando ou abafando, e o campo normaliza novamente. 2013 dessetorializa as disputas políticas e pulveriza tudo. Reduz tudo à massa, de certa forma.
Isso precipita uma evasão de cálculos dos atores políticos. O sistema não funciona mais de maneira azeitada como antes. Os inputs não produzem os outputs esperados. Os atores calculam errado suas ações e cometem erros por cima de erros, que só alimentam a crise. Lembremos que a Lava Jato só foi possível pela nova lei de organizações criminosas, que permitiu o instituto da delação premiada, tudo aprovado de maneira açodada no Senado, para dar resposta às Jornadas de Junho de 2013. O mesmo processo pode ser visto agora pelo esforço do STF e da classe política de abafar as redes sociais e controlar o seu impulso por meio da força, da operação de inquéritos ilegais e de uma estrutura de controle que não consegue dar conta do tamanho do problema com que estão lidando.
Essas respostas toscas só aceleram a desintermediação, a perda de legitimidade ou esgotamento das estruturas tradicionais de mediação, junto com o surgimento de formas ainda mais novas de associação. Primeiro, o Facebook parece peça chave para organização. Depois, os influenciadores de Youtube. Então, os grupos de Telegram. Daí começa algo a surgir no Tik Tok, no Rumble. E de repente já não sabemos se haverá muita gente ou não em determinado protesto, ou quando surgirá o próximo ajuntamento. Os centros se deslocam, personagens aparentemente centrais são rapidamente substituídas e deixadas de lado. Novos protestos abrem espaço para o surgimento de novos agentes revolucionários e formas renovadas de organização.
A imprevisibilidade e a incerteza estruturais se fazem sentir. Ninguém sabe mais minimamente como será o dia de amanhã. Não se sabe se haverá outro governo Bolsonaro, como ele será. Ou se o Lula será capaz de governar até o final do mandato. Ou se as massas irão assumir uma forma e uma identidade distinta nas próximas rodadas de manifestação. E muito menos se sabe quando e como o sistema político vai reagir, metendo os pés pelas mãos e gerando ainda mais imprevisibilidade e revolta.
Por isso, o que vemos é um momento de aceleração do tempo. As Jornadas de Junho parecem inaugurar um período em que os acontecimentos se sucedem freneticamente. As instituições vão perdendo progressivamente sua legitimidade. Os partidos políticos, os sindicatos, o Congresso, o STF, a Justiça. E essa perda vem acompanhada também da acomodação e estabilidade que elas permitiam. Há aqui uma equivalência com o tempo messiânico de São Paulo, o tempo em que tudo se ajunta e se precipita. Para usar de uma linguagem cara à teologia política, trata-se de um momento propício, em que novas formas sociais podem surgir, antigas estruturas podem rebentar e novos processos podem se sobrepor, sem acomodação provável no horizonte.
A eleição de Bolsonaro aparece como uma etapa desse processo. Para milhões de pessoas, o ex-presidente representa um símbolo aglutinador de antagonismos reprimidos. O seu governo equilibrava precariamente os interesses de militares, evangélicos, católicos tradicionais, agentes de segurança pública, empresários, liberais, agricultores, olavetes, entre outros elementos desprezados pelas instituições aparelhadas pela esquerda e engessadas pela lógica do sistema política. A resposta que dava a cada um deles nem sempre estava a contento, mas os pequenos avanços mantinham as expectativas de mudança domesticadas, como que a espera de uma resolução pacífica. A sua derrota em 2022, associada ao avanço dos mecanismos de controle sobre as massas urbanas, parecem sinalizar que as portas de mudança foram fechadas para a sociedade.
2013 terá encontrado seu termidor? Isto é, haverá um momento que esse ímpeto disruptivo será domesticado novamente? São perguntas difíceis de responder, mas é importante lembrar que nada se repete de fato na história. As massas que encontraram nos novos canais de mediação um locus para ação revolucionária não vão parar por um empurrão na direção contrária.
Na verdade, a censura tende a tornar agentes políticos mais inteligentes e criativos. Alienar pessoas da participação política sempre foi uma receita para a radicalização. Por isso, a tendência que se tem verificado desde que as Cortes começaram a atuar como agentes de controle político direto é a da adoção de novas formas de organização, pelo simples motivo que as demandas populares permanecem sendo ignoradas.
A apatia das massas atualmente está mais para um momento de refluxo. Após as manifestações desastrosas do último dia 8 de janeiro, parecem se ter chegado ao esgotamento de um modelo de resposta aos estímulos de um líder que fracassou enquanto promessa de mudança. A tendência é que esse caldo se misture e se adense durante algum tempo, para explodir em novas ondas mais à frente.
Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil”.