Ouça este conteúdo
O avanço arqueológico mais importante das últimas décadas está prestes a acontecer: graças à inteligência artificial, cientistas começaram a desvendar o conteúdo de papiros incinerados durante a erupção do Vesúvio no ano 79 depois de Cristo.
O material foi encontrado na cidade de Herculano, na Itália — que, como Pompeia, foi destruída pelo vulcão. E uma equipe de brasileiros teve uma participação fundamental no esforço para desvendar uma coleção que, ao que tudo indica, inclui obras inéditas.
Erupção destruiu cidade, mas preservou papiros
Há quase dois mil anos, uma erupção violenta do vulcão Vesúvio surpreendeu os moradores de Herculano, no sul da península itálica. A cidade foi repentinamente coberta por 20 metros de lava e cinzas.
Foi só em 1750, por acidente, que moradores da região descobriram as ruínas do que viria a ser conhecido como "Villa dei Papiri", ou mansão dos papiros. Eles se depararam com a construção quando tentavam cavar um poço.
As ruínas têm dimensões palacianas: são 20 mil metros quadrados à beira do Mar Tirreno. Arqueólogos acreditam que o palácio pertencia a alguém de destaque — provavelmente Lucius Calpurnius Piso Caesoninus, sogro de Júlio César.
Cerca de 600 rolos foram retirados da Villa dei Papiri e armazenados em Nápoles.
Apesar do achado importante, os cientistas tinham diante de si um desafio aparentemente intransponível. Abrir os rolos não era factível: na maior parte das vezes, isso resultou na destruição do material.
Até que, em 2015, um professor da Universidade do Kentucky, nos Estados Unidos, anunciou um avanço decisivo. Brent Seales desenvolveu uma técnica que utiliza raios-x e computação avançada para desvendar rolos sem que seja preciso abri-los. Ele obteve sucesso aplicando a técnica em um manuscrito encontrado na região do Mar Morto, em Israel.
A tecnologia vem sendo aprimorada por ele e outros cientistas desde então. Mas, no caso dos papiros de Herculano, a missão era mais difícil: mesmo com o uso do raio-x, a deterioração causada pelo fogo não permitia a leitura do material.
Até agora.
Desvendando os rolos de Herculano
Em março em 2023, os arqueólogos passaram a ter um incentivo a mais para se dedicar aos rolos de Herculano: um prêmio em dinheiro.
Em março de 2023, um grupo liderado por Searle anunciou uma competição aberta a acadêmicos e não-acadêmicos: o Desafio do Vesúvio.
Na primeira etapa do desafio, os competidores tinham uma meta modesta. O objetivo era desvendar quatro trechos de texto, cada um com 140 caracteres.
O desafio foi promovido pelo EduceLab, laboratório criado por Searle e que recebeu US$ 14 milhões do governo do Reino Unido (equivalente a R$ 70 milhões). A Fundação Musk, do bilionário Elon Musk, doou mais de US$ 2 milhões para a competição.
Em fevereiro deste ano, o projeto anunciou que o prêmio principal, de US$ 700 mil, foi concedido a três jovens pesquisadores: Youssef Nader, Luke Farritor e Julian Schilliger. Eles são, respectivamente, um estudante de doutorado egípcio que mora em Berlim, um aluno de graduação americano e um universitário suíço. Eles desenvolveram um sistema capaz de "ler" trechos inteiros do papiro — um texto inédito escrito por um filósofo epicurista.
O autor do trecho elucidado pelos pesquisadores é Filodemos, que foi professor de Virgílio. No trecho, ele critica os estoicos, que pregavam uma rejeição dos prazeres materiais.
Outras três equipes ganharam prêmios de US$ 50 mil, empatadas em segundo lugar. Um desses times é composto por brasileiros.
Equipe brasileira adaptou tecnologia
O professor Odemir Martinez Bruno, do Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo, coordenou o trabalho da equipe de sete pessoas (seis brasileiros e um americano). À Gazeta do Povo, ele explicou que a ideia surgiu como um projeto de iniciação científica de um aluno de graduação, Raí Fernando Dal Prá, e se expandiu para atender os requisitos do desafio. "A equipe que ganhou o primeiro lugar estava trabalhando durante 2023 praticamente inteiro. Já a dedicação maior aconteceu durante os três meses finais", afirma o professor.
A arqueologia não é a especialidade da equipe de Odemir e sua equipe. Tampouco eles falam latim ou grego. A tarefa era uma só: desenvolver um sistema que conseguisse identificar os pontos onde há tinta.
A equipe do EduceLab publicou as imagens em alta resolução. Os competidores, que não tiveram contato direto com os papiros, precisavam desenvolver uma forma de identificar a tinta no papel.
Os pesquisadores utilizam redes neurais artificiais — sistemas que emula o funcionamento do cérebro humano e permitem que a máquina "aprenda" a ler imagens. O professor afirma que o grosso do trabalho foi feito em apenas três meses.
No IFSC, Odemir coordena uma equipe que desenvolveu uma das tecnologias mais eficazes do mundo para a identificação de texturas. A ferramenta pode ser usada tanto em projetos arqueológicos quanto em outras áreas, como a detecção de tumores no corpo humano e a identificação de poluentes em plantas. Bastou adaptar essa tecnologia para "ensinar" a máquina a ler os papiros incinerados de Herculano.
Acervo pode ser ainda maior
Apesar do sucesso com o texto de Filodemus, o trecho inteligível equivale a apenas 5% do texto do tratado de filosofia. Restam quase 600 rolos a serem trazidos à luz. E alguns arqueólogos acreditam que há ainda mais papiros escondidos na parte ainda intocada da Villa dei Papiri.
Uma área de mais de dois mil metros quadrados da Villa dei Papiri nunca foi escavada Agora que a tecnologia se mostrou capaz de ler os papiros incinerados, é provável que o interesse pelo local se reacenda.
Para 2024, o maior prêmio do Desafio do Vesúvio (de US$ 100 mil) será dado a quem conseguir desvendar 90% dos quatro primeiros rolos.
O professor Odemir ainda não sabe se sua equipe vai participar de novas etapas, mas afirma que o passo inicial foi o mais significativo. “Colocar um foguete em Marte é a etapa mais importante da exploração espacial de Marte porque, até então, nós não sabemos se é possível fazer isso. Eu considero que essa etapa do Desafio do Vesúvio foi a mais importante, porque nós descobrimos que é possível”, compara.