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Um homem de 60 anos contraiu cólera em Salvador, na Bahia, confirmou uma nota técnica do Ministério da Saúde na sexta-feira (19), após testes laboratoriais. O homem “apresentou desconforto abdominal e diarreia aquosa, em março de 2024”. Como a doença é causada por uma bactéria, a Vibrio cholerae, pode ter sido feita uma prescrição de antibiótico, mas o paciente já estava tomando esse tipo de medicamento antes, o que pode sugerir resistência da bactéria. “Trata-se de um caso isolado”, afirma a nota, pois houve investigação local, sem mais casos. Desde 2006, os poucos casos registrados no Brasil eram importados de outros países.
Contudo, ainda que isolado, o caso pode ser informativo sobre o país. Diversos estudos afirmam que a cólera está ligada a fatores socioeconômicos, particularmente a pobreza e o acesso inadequado à água limpa e ao saneamento básico. Nos Estados Unidos, em 2019, ocorreram 11 casos de cólera, segundo os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC). Todos eram associados a viagens internacionais a países como Paquistão, Quênia, Iêmen, Índia e Bangladesh. Os CDC acreditam que a erradicação a cólera é difícil, pois a bactéria se esconde em “reservatórios naturais em águas costeiras mornas”.
Nos últimos dois séculos, sete pandemias de cólera espalharam a doença pelo globo, informa a enciclopédia Britannica. Para a publicação, “a reputação [da cólera] de assassina feroz e incansável é merecida. Ela foi responsável pela morte de milhões, perdas econômicas de magnitude imensa e pela perturbação do tecido social em todas as partes do mundo”.
A Gazeta do Povo conversou a respeito do novo caso de cólera com Gonzalo Vecina Neto, médico sanitarista que fundou e já presidiu a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “É uma doença transmitida oralmente”, explicou o especialista, “quando a gente entra em contato com fezes”. O que mata é a desidratação, ele detalha. “É de contaminação hídrica, normalmente é assim que a gente adquire, tomando água que está contaminada”.
Na avaliação dele, “do ponto de vista de água tratada, o Brasil é um exemplo, do ponto de vista de esgotamento sanitário, não. Estamos longe de ser um bom exemplo de saneamento básico na área de esgoto”. “Este caso autóctone”, ou seja, com origem no país e não de fora, “vai ter que ser explicado. De alguma maneira, essa pessoa foi infectada. Como, não sabemos”. Ele conclui que “está todo mundo meio perdido, aguardamos mais informações”.
Cólera como sinal de subdesenvolvimento
Em um influente artigo publicado em 1998 na revista Microbiology and Molecular Biology Reviews, Shah M. Faruque, do Centro Internacional de Pesquisa em Doenças Diarreicas, de Bangladesh, afirma junto a seus coautores que os surtos de cólera “são associados particularmente à pobreza e ao saneamento ruim”. Na época, os surtos causavam “120 mil mortes estimadas por ano” no mundo.
Em dezembro de 2023, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atualizou o número para 21 mil a 143 mil mortes por ano no mundo. A entidade informa que a maioria dos casos pode ser tratada com uma solução para reidratação como o soro caseiro e tem sintomas leves ou até inexistentes. Os casos severos exigem antibiótico e hidratação intravenosa. Em 2017, a OMS lançou a meta de reduzir as mortes por cólera em 90% até 2030. “A solução de longo prazo para o controle da cólera está no desenvolvimento econômico e no acesso universal à água potável segura e ao saneamento básico”, afirma a organização.
Só no Paraná, um estudo do Instituto Trata Brasil estimou que a expansão do saneamento levou a um ganho de R$ 82,8 bilhões entre 2005 e 2022. Os benefícios são relacionados ao aumento da renda da população pela disponibilidade de água tratada, coleta e tratamento de esgoto. Do total, R$ 13 bilhões são pela redução de gastos em problemas de saúde, produtividade e meio ambiente. A capital Curitiba divide com São Paulo a posição de maior percentual de moradias atendidas com redes de esgoto, de mais de 99,9%, segundo o SNIS (Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, do Ministério das Cidades).
A situação do Brasil como um todo, contudo, não é boa. O SNIS informa, em seu relatório de 2023, que a cobertura de esgoto do país é de apenas 56%. Há bastante variação regional na cobertura: 62% no Centro-Oeste, 31% no Nordeste, 15% no Norte, 81% no Sudeste e 50% no Sul.
Salvador, município em que o caso de cólera foi identificado, tem cobertura de esgoto de 88%, com tratamento de 97,8%. O estado da Bahia, porém, tem só 42% de cobertura, abaixo da média nacional.
Marco do Saneamento é alvo do governo Lula
No dia de Natal de 2020, o então presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto para regulamentar o novo marco legal do saneamento básico. A legislação buscava universalizar o serviço e dar boas-vindas à iniciativa privada no setor. Nos meses anteriores, houve um veto a um trecho que permitia que as estatais renovassem por 30 anos seus contratos. Em março de 2021, a Câmara manteve o veto.
O Marco do Saneamento, que tem metas de universalização dos serviços até 2033 e atendimento de um mínimo de 99% da população, facilitou privatizações como a da Sabesp, aprovada pela Câmara de São Paulo no mês passado. Até abril de 2022, foram 16 leilões que abrangeram 217 municípios e alcançaram 20 milhões de pessoas.
O terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva tem feito alterações na legislação, anunciadas antes mesmo do presidente tomar posse, em dezembro de 2022. Uma das mudanças por decreto favorece as empresas estatais de saneamento, inclusive pela remoção da necessidade de licitação para atendimento a regiões metropolitanas, aglomerações urbanas ou microrregiões. Outra alteração que o governo planeja é o fim do limite mínimo de 25% para parcerias público-privadas pelos estados, mais uma vez para favorecer as estatais. O prazo para municípios se organizarem para terem acesso a verbas federais no saneamento (mais de 2000 cidades ainda não o fizeram) será prorrogado até 31 de dezembro de 2025.
A esquerda também persegue o Marco do Saneamento pela via judiciária: há quatro ações apresentadas por partidos como PDT, PCdoB, PSOL e PT, além de associações do setor ligadas a serviços municipais estaduais de saneamento, no Supremo Tribunal Federal (STF) pedindo a suspensão da lei. Por enquanto, o STF tem decidido contra os pedidos.
Uma das principais beneficiadas pelas investidas do governo será a Embasa, a estatal de saneamento da Bahia, onde foi encontrado o caso de cólera. A empresa estava com contrato vencido em Salvador. O governador da Bahia é Jerônimo Rodrigues, do PT.
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