Ouça este conteúdo
O Coletivo Indecline repetiu no Brasil uma ação que já havia feito por pelo menos duas vezes, no México e nos Estados Unidos. Eles divulgaram no último dia 14 de setembro um vídeo que mostra um grupo de pessoas simulando uma partida de futebol cuja bola é uma réplica em borracha da cabeça do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Atuações semelhantes foram feitas em Tijuana, com uma cabeça do presidente norte-americano Donald Trump, e em Washington, com uma réplica da cabeça de Vladimir Putin. A ação faz parte de um projeto, Freedom Kick – Chute da Liberdade, que faz um jogo de palavras com a expressão “free kick”, como é chamada a cobrança de falta em inglês –, uma parceria do grupo com o artista espanhol Eugenio Merino.
O vídeo, de pouco mais de três minutos e meio de duração, começa com uma jovem sentada em frente ao Escadão Marielle Franco, em Pinheiros, na capital paulista. Ela segura um celular, e ao fundo ouve-se o que seria a voz de Bolsonaro dizendo, entre outras coisas, que “tem imunidade para falar que sou homofóbico sim.”
A protagonista se levanta e sai andando em seu skate pelas ruas de São Paulo até chegar a um cemitério. Lá, ela abre a porta de uma sepultura e de dentro retira um saco plástico preto, que é levado até uma quadra. Dentro do saco está a reprodução da cabeça de Bolsonaro, que é usada pelos presentes como bola no jogo de futebol.
A cabeça acaba sendo mordida por um cachorro, e por fim é vista no chão à frente de um grupo de 13 pessoas, acocoradas e em pé como fazem os times de futebol quando recebem um troféu.
Assim como no vídeo gravado em Tijuana, no Brasil há a presença de crianças na produção. Em nenhum dos casos a identidade dos menores foi protegida. Na versão brasileira, duas pessoas aparecem com o rosto borrado. No vídeo gravado nos Estados Unidos, os participantes usam máscaras que cobrem parcialmente seus rostos.
Em seu perfil no Instagram, o coletivo Indecline postou uma mensagem em inglês onde afirma que “a América Latina tem uma história com ditadores”, e que no Brasil a chamada Quinta República era “conhecida por matar dissidentes.”. O texto segue, afirmando que “Jair Bolsonaro é conhecido por seus discursos masturbatórios que delineiam seus sonhos molhados de restabelecer essa política.”
A mensagem afirma que “no futebol, um tiro livre é uma chance de parar o jogo por um momento e corrigir uma falta”, e que a iniciativa “Freedom Kick é uma chance para nós reiniciarmos [a partida] depois de anos de jogo sujo e conduta antidesportiva.”
E encerra comparando a sociedade com o futebol, pois, sendo um esporte coletivo, faria oposição à ditadura “um esporte solo”: “É uma metáfora perfeita para nossos chefes de Estado. E nosso trabalho é chutá-los impiedosamente até encontrarmos uma maneira de transformar cada um de nossos esforços individuais em uma vitória coletiva.”
Simbologia
Arrancar a cabeça de uma pessoa é talvez um dos mais claros sinais de violência contra outro ser humano. Como explicou o doutor em Ciências da Religião Carlos Jeremias Klein, em entrevista à Folha de S. Paulo, “Decapitar tem sentido de subjugar, humilhar, e, em caso de guerra, fazer adversários se renderem.”
Ganharam celebridade os registros das caravanas que foram feitas pelo sertão nordestino levando as cabeças decapitadas de Lampião e seu bando, após terem sido mortos em uma emboscada policial.
“Numa espécie de resposta à alegação de onipotência e invulnerabilidade do célebre cangaceiro, exibiram as cabeças como troféus, a fim de mostrar aos olhos do mundo que aquele corpo fechado, impermeável às balas e ao facão, podia ser fragmentado”, disse a historiadora Elise Jasmim, pesquisadora da história de Lampião.
A decapitação é um expediente atemporal usado como demonstração de força, que vem se repetindo desde as conquistas na antiguidade, com Gêngis Khan entre seus fervorosos adeptos; passando pela França revolucionária do médico Joseph-Ignace Guillotin, inventor da guilhotina – um método “mais humano” de punição capital que o enforcamento; até os tempos atuais em que terroristas, como os integrantes do Estado Islâmico e membros de facções criminosas, usam a decapitação como forma de garantir a propagação inequívoca de suas mensagens.
“No contexto da internet, os vídeos [de decapitação] têm potencial de divulgação instantâneo. Alguns grupos conseguem, assim, ampliar a capacidade de propagação de suas mensagens mesmo que a imprensa não dê atenção. E eles têm um propósito, que é o de afirmação de força e poder. A decapitação produz resultados também em termos de dominação e tem efeito de demonstração”, analisou o sociólogo Rodrigo de Azevedo, da PUC-RS, integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Cabeças como bolas de futebol
Em 2013, uma rebelião no complexo prisional de Pedrinhas espalhou o terror pela capital maranhense. Carros foram incendiados e, com medo de que a violência se espalhasse, lojistas fecharam as portas mais cedo. Isso porque dentro da cadeia membros de uma mesma facção criminosa entraram em uma briga que deixou quatro mortos – três deles foram decapitados.
Depois dessa rebelião, novas decapitações foram registradas em ao menos 11 estados brasileiros. Em Roraima, houve ao menos quatro decapitações. Na época, um vídeo na internet mostrava presos chutando uma cabeça, como se estivessem jogando futebol, no pátio de um presídio. Em 2017, um homem de 28 anos foi preso em Manaus por ser suspeito de ter decapitado um rapaz de 21 anos e jogado futebol com a cabeça da vítima. Para o delegado que investigou o caso à época, a ação foi classificada como uma forma de “implantar mais terror frente aos seus rivais.”
A relação macabra entre cabeças e bolas de futebol é bastante antiga, e pode estar diretamente envolvida na origem do esporte. A Fifa reconheceu, nos anos 2000, a China ancestral como o berço do futebol.
Uma prática comum há mais de 2.300 anos na região de Zibo, o “tsu chu” – também conhecido como “cuju” – reunia soldados após batalhas. Em pequenos grupos, eles chutavam as cabeças decapitadas dos soldados inimigos derrotados de modo que elas passassem no meio de duas traves fixas no chão. Com o tempo as cabeças foram substituídas por bolas de couro recheadas com penas e novas regras foram estabelecidas para a prática da atividade.
Bolsonaro e nazismo
No site oficial do artista responsável pela confecção das cabeças, o espanhol Eugenio Merino, está publicada uma edição digital da revista Sublime. Na capa da publicação há uma montagem sobre uma foto de Bolsonaro, com chamas saindo de seus olhos. O artigo que abre a revista traz críticas ao presidente do Brasil. Alejandro Pedregal, o autor, chama o Amazonas de o “Reichtag” de Bolsonaro, e faz associações diretas entre o presidente e o nazifascismo. Para ilustrar o artigo, outra montagem com a mesma foto de Bolsonaro, só que desta vez com uma suástica na testa.
“O neoliberalismo entrou em sua fase final e, para completar seu trabalho e se libertar de suas contradições, se desvinculou de qualquer disfarce: hoje abraça abertamente o fascismo, onde pode. (...) Inflamável em seu contato com todas as formas de vida, o fascismo devasta sua passagem pela Terra. A expressão mais recente desta distopia real ainda está adormecida sob nossos pés”, escreve o autor.
Usando de uma falácia, a de que Amazônia produz 20% do oxigênio do mundo, Pedregal afirma que a floresta “queima sob o sorriso patético de Jair Bolsonaro, que desde sua tomada de poder, diante de uma podridão desenfreada de todos os vislumbres democráticos, continua a incitar o ódio que tomou a forma, tanto simbólica quanto físico-química, do fogo.”
Por fim, o autor fala das mudanças promovidas pelo governo brasileiro na gestão das terras indígenas e apresenta números do que seria um aumento desenfreado nas queimadas, e afirma que “Bolsonaro reproduz assim uma tática básica da práxis política fascista: transformar as vítimas em perpetradores das situações que o próprio fascismo ativa ou provoca, a fim de aniquilar todas as resistências e expandir sua pilhagem social.”
Louvor à liberdade
Em entrevista por e-mail à Gazeta do Povo, o artista espanhol Eugenio Merino classificou o projeto Freedom Kick como “um louvor à liberdade, justiça e reparação.” Para ele, o projeto representa a luta contra as políticas antidemocráticas da nova direita.
“Uma ala de direita que defendeu as antigas ditaduras militares, como no caso de Bolsonaro, que elogia publicamente a ditadura brasileira de 1964-1985 e declara-se homofóbico e racista”, declarou Merino.
Segundo ele, esses partidos de direita estão “equiparados às antigas ditaduras e, portanto, relacionados à sua tortura, seus desaparecimentos forçados e seu terrorismo de Estado. Crimes contra a humanidade que nunca prescrevem”.
Merino cita também o partido espanhol VOX, que segundo o artista fez um pedido de desculpas no congresso daquele país pela ditadura de Francisco Franco. “Um golpe de Estado que provocou uma guerra com 300.000 combatentes e dezenas de milhares de civis mortos, e uma ditadura militar que terminou com a morte de 150.000 pessoas após um longo processo de violência física, econômica, política e cultural contra os republicanos”, definiu Merino.
“Os jogos de futebol Freedom Kick representam a resposta do povo, dos grupos minoritários e daqueles desprezados por seus presidentes, contra um Estado que defende o pior dos seres humanos e sua história”, concluiu o artista, em sua mensagem.
Quando perguntado se ele também havia feito cabeças de ditadores de esquerda, Merino respondeu já ter “trabalhado em Stálin e Mao-Tsé-Tung”. O artista, porém, não respondeu se vídeos de pessoas jogando futebol com essas cabeças foram ou serão gravados na Rússia ou na China.
Também por email, o Coletivo Indecline confirmou que está planejando novas ações sobre o presidente Jair Bolsonaro.
Questionados sobre projetos envolvendo nomes da esquerda, o coletivo informou apenas que estão “definitivamente planejando mais ações com outros presidentes, mas não podemos divulgar quais serão no momento, já que precisamos nos assegurar que o projeto siga em sigilo total até que seja revelado”.
Sobre as pessoas que aparecem com o rosto borrado no vídeo brasileiro, ao contrário das ações feitas nos outros países, o Indecline respondeu que o coletivo recebeu muitas ameaças de morte. “Essas ameaças foram enviadas a vários membros da equipe, então algumas pessoas tiveram o rosto borrado para a sua própria proteção”, respondeu.