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Existe uma lenda urbana que une esquerda e direita: a de que o Nordeste é uma região esquerdista. Parece até que no Semiárido, em vez de cabra macho, tem cabra não-binário de pronome neutro.
Entendamos a situação assim: as elites urbanas da capital de São Paulo têm pautado a vida política brasileira desde a década de 90. O PT e a parte do PSDB que chegou à presidência são duas facções do departamento de sociologia da USP. O PT emplacou como liderança um operário do ABC queridinho dos sociólogos; e, do PSDB, chegou à presidência um sociólogo. Na época da redemocratização, ser de esquerda era bonito. Assim, como o PSDB era mais manso e polido, acabou fazendo as vezes de direita mesmo que fosse um social-democrata, enquanto que o PT monopolizava a retórica radical e purista de esquerda.
Como se move o Nordeste nessa situação, sendo ele uma região agrária e tão despreocupada com sociólogos? Ora, do mesmo jeito que se movia desde a época dos militares: seguindo Brasília. O Nordeste votava na ARENA em tempo de ARENA; passou a votar no PT em tempo de PT. Antes a esquerda, hoje a direita o chama de plebe ignara. Mas a questão é muito simples. Se Brasília concentra o dinheiro, ser governista é mais prudente. E no Nordeste aquela classe média urbana preocupadíssima com gênero neutro ou responsabilidade fiscal é muito menor do que em São Paulo.
Ideais ou orçamento?
Você, leitor deste jornal, provavelmente preza por uma série de ideais parecidos com os meus: uma sociedade em que o cidadão goze de mais autonomia — financeira e intelectual — frente ao Estado. Nisto, temos algo em comum com os leitores e escritores dos jornais esquerdistas: nós todos temos um ideal de sociedade. Os ideais é que diferem, mas ninguém é obrigado a ter um ideal de sociedade.
A maioria da população brasileira raramente tem um ideal. Está mais preocupada com o próprio orçamento do que com os rumos da nação, e sequer acha que tem alguma participação neste último. Contei já como foi o comício de um candidato pelo PCdoB no Rio das Pedras, aquela favela de milícia carioca: ele promete ônibus para Madureira.
Já que estamos no Rio das Pedras, vamos para o estado Rio de Janeiro. Excetuando-se Brizola e Crivella, há algum governante que possa ser apontado como um expoente de uma posição ideológica? Qual é a ideologia de Sérgio Cabral? Sérgio Cabral é Sérgio Cabral antes de ser um emedebista. E quando Sérgio Cabral está no governo, ele corre para Brasília para pedir dinheiro. Pronto: de um ponto de vista ideológico, o político do Nordeste é como o do Rio de Janeiro. Só que causa confusão na cabeça das pessoas porque se filia a partidos de esquerda. Além do mais, o Nordeste tem aquele sex appeal de pobre; é bom apontar o nordestino flagelado pela seca, do mesmo jeito que o padre fala do cordeiro de Deus.
PT baiano e PT paulista
Vamos então para a Bahia, amiúde apontada como ícone do esquerdismo nordestino — embora sempre haja, pelas bandas mais ao Norte, quem proteste que baiano não é nordestino. Caso o leitor do Sul arqueie as sobrancelhas, explico: Bahia e Pernambuco eram as duas capitanias açucareiras, separadas pelo Rio São Francisco. A Bahia era estatal, da Coroa (comeram o donatário); e Pernambuco era privado (o donatário, Duarte Coelho, deu certo). Revoltoso, Pernambuco tem um histórico separatista que lembra o do Rio Grande do Sul, só que mais precoce.
A Coroa retalhou essa imponente e próspera unidade política em várias outras: criou a Paraíba, as Alagoas, o Rio Grande do Norte e o Ceará. E ainda deu para a Bahia as terras a oeste do São Francisco. Então o Recife até hoje se sente capital do Nordeste, que exclui a Bahia. Os baianos, a seu turno, como não sabem distinguir sotaque pernambucano de alagoano ou paraibano, usam o rótulo genérico de “nordestino” para se referir a eles. Bahia e Sergipe só foram classificados como Nordeste em 1969; antes, a região compreendia só os estados desmembrados de Pernambuco.
Mas vamos à Bahia, que é tida como bastião do petismo, e é o meu lugar de fala e de escrita desde que voltei de viagem do Rio.
As eleições na Bahia são tediosas, porque todo mundo sempre aposta na continuidade do governo. As forças políticas mais ou menos antagônicas são o carlismo (isto é, de ACM) e a nova elite sindical içada pelo PT. (Jaques Wagner e Rui Costa eram sindicalistas do Polo Petroquímico de Camaçari; a primeira refinaria de petróleo brasileira é na Bahia.) No interior, há os coronéis. Para ganhar a eleição estadual, é preciso se acertar com eles. Esse grupo ficou antigamente com a ARENA (assim como ACM), e depois se tornou carlista. No fim do governo FHC, ACM apoiou Lula, e seguiu apoiando em 2006. Assim, não é de admirar que os coronéis tenham desertado do carlismo e constituído a base aliada do petismo. Hoje — como sempre — eles estão no senado, e são aquela base aliada do petismo que não tem problemas em votar com Bolsonaro eventualmente. Caso se queira ver o que pensa o PT baiano, basta olhar para os senadores Ângelo Coronel (PSD) e Otto Alencar (PSD): grosso modo, são eles a real força política da Bahia, que sustentou o petismo e o carlismo.
O status quo, na Bahia, é PT no estado e carlismo na capital. Este ano elegeu-se no primeiro turno, com 64% dos votos, o candidato carlista. As outras duas candidaturas desse estado de coisas foram a da Major Denice (PT) e do Pastor Sargento Isidório (Avante).
O PT nunca ganhou a prefeitura de Salvador. Este ano, tendo sentido os efeitos do bolsonarismo, filiou às pressas uma policial militar e colocou-a para concorrer. Alguém consegue imaginar um partido de esquerda fazendo isso em São Paulo?
O Pastor Sargento Isidório fez muita propaganda de sua vice, a Sr.ª Coronel, esposa do Senador Coronel. O Pastor Sargento Isidório é um fenômeno de votação no legislativo graças ao governador Rui Costa, que, através do estado, subsidia a sua Fundação Doutor Jesus, em Candeias, onde ele fica dando paulada em cracudo.
Cracudos levando paulada na Bahia “esquerdista”
Não preciso recorrer a fontes internas, nem correr risco de processo para falar das pauladas. O próprio Pastor Sargento Isidório contou à revista Piauí, e ainda mostrou o pau com que bate nos cracudos. A matéria da Piauí já fez dois aniversários, e não houve nenhuma reclamação relevante contra o Pastor Sargento Isidório. Será obra dos coronéis que os petistas engolem a contragosto? Nada disso. O petismo baiano já estava nessa toada antes mesmo de Isidório ficar famoso. Já em 2010, o governo do estado, sob Jaques Wagner, botou outdoors onde se lia “Crack é cadeia ou caixão”.
Se compararmos o centro de Salvador ao de São Paulo, é de boquiabrir. Como é possível uma cidade tão rica permitir que seu patrimônio histórico seja coberto de lixo e excrementos? Só com uma ampla camada progressista para pressionar o poder público em favor da manutenção daquele zoológico humano chamado Cracolândia. Com muito menos dinheiro, o Centro Histórico de Salvador está preservado e recebe turistas.
Então a coisa fica assim: os progressistas tomam a burocracia, elegem parlamentares, passam um monte de coisa antimanicomial e pró-bandido. A norma vale na capital de São Paulo. O parlamentar nordestino finge que acha tudo isso muito bonito, pode até votar a favor (se o governo federal quiser), mas na sua terra resolve o crack e bandidagem na paulada e na bala. Afinal, se um político nordestino cair na asneira de encher a rua de cracudo, ninguém vota nele.
Quem não tem um ideal social e só se preocupa com coisas tangíveis não vai querer a rua cheia de cracudo defecando e roubando. Só com um ideal (torto) de sociedade se mantém uma rua entupida de cracudo. No Nordeste, não temos muitos idealistas. Só em centros urbanos haverá eleitores bastantes para aplaudir cracolândia.
Para conversar com o Nordeste, é preciso tratar de coisas tangíveis. É mais difícil do que conversar com um liberal ou um conservador urbano, mas é mais fácil do que conversar com um progressista. Até porque o cabra macho não vai gostar de ver progressismo implantado na escola do filho.