O feminismo amoleceu? Depois dos sutiãs queimados, da luta por liberdade sexual e da crescente conquista de espaços antes ocupados por homens, mulheres passaram a trilhar caminhos que estavam fechados para elas. Mas, conforme ser “feminista” deixou de ser um nicho e virou pop, o termo perdeu força, passando a questionar cada vez menos os problemas da sociedade: é o que defende a americana Jessa Crispin, autora do polêmico “Why I Am Not a Feminist: A Feminist Manifesto” (“Por que não sou feminista: um manifesto feminista”, em tradução livre), lançado em fevereiro, sem edição brasileira.
Para ela, problemas individuais começaram a ser a tônica, enquanto as grandes questões levantadas pelas feministas de outros tempos, mais amplas, eram ignoradas. “Quando as mulheres começaram a conquistar um poder real, tornou-se mais fácil para elas lutarem por inclusão na sociedade que já existia em vez de continuar a lutar por uma ampla reforma”, explica a autora.
Podemos vender camisetas com slogans de empoderamento que são feitas por crianças em Bangladesh, e nos sentir muito bem com isso”
Essa conformidade com os padrões teve um efeito colateral ainda deixado de lado. “As mulheres agora podem oprimir, claro que em uma pequena escala, os pobres, os vulneráveis, os imigrantes e as comunidades internacionais. Podemos vender camisetas com slogans de empoderamento que são feitas por crianças em Bangladesh, e nos sentir muito bem com isso”, acrescenta.
Nascida no Kansas, nos Estados Unidos, Crispin, de 39 anos, manteve até o ano passado a revista virtual Bookslut (bookslut.com), publicada desde 2002 e referência em resenhas de obras escritas por mulheres. Até que decidiu encerrar a página e se dedicar em tempo integral ao seu próprio livro — uma obra destinada a enfrentar aqueles livros tão repetitivos que as editoras lhe enviavam —, já que conforme os anos passaram, diz Jessa, os textos que chegavam às suas mãos pareciam se tornar cada vez mais rasos.
Truque de marketing?
Apesar do título de seu livro, Crispin não está em uma cruzada contra o feminismo. Sua crítica é outra: por ter se tornado tão amplo, o próprio conceito de “feminismo” estaria perdendo seu sentido. “Costumava haver um entendimento do que significava a palavra ‘feminismo’. Agora, ela tem sido usada em tantas campanhas de marketing e para justificar tantas coisas terríveis... eu sou uma feminista por acreditar na filosofia, mas não acho que a palavra ainda é útil”, esclarece a autora.
A conquista de espaços teve o efeito colateral de tornar as mulheres os opressores patriarcais
Por um lado, o fato de que cada vez mais pessoas se dizem feministas sem levantar bandeiras históricas do movimento deixa as velhas lutas estagnadas. Por outro, grandes empresas estariam — com sucesso — buscando surfar na onda do feminismo, por meio de estratégias de marketing voltadas a mulheres “fora dos padrões” — caso de marcas de cerveja que, após anos utilizando imagens de modelos seminuas, começaram a convidar mulheres para protagonizar propagandas sem apelo sexual. Outras companhias estariam tentando ganhar simpatia ao colocar mulheres em posições de poder sem modificar suas posturas empresariais na prática, no que Jessa considera um grande jogo de fachada.
“A conquista de espaços teve o efeito colateral de tornar as mulheres os opressores patriarcais”, argumenta Crispin, que entende que a medida do sucesso feminino ainda é a mesma que antes valia para os homens, não havendo uma alteração de perspectivas.
Militância de selfies e redes sociais
Jessa acredita que é preciso superar a militância de selfies e redes sociais e partir para uma ação que leve em conta problemas sociais mais amplos, que se refletem também na situação das mulheres – mas não apenas delas. Para ela, cada vez menos feministas leem as autoras da chamada “segunda onda”, que defenderam posturas mais radicais entre as décadas de 1960 e 1980.
“Não apenas dentro do feminismo, já não trabalhamos com as tradições. Há uma falta de interesse naquilo que veio antes de nós. Estamos obcecadas por nós mesmas”.
A conquista de espaços, pelo menos em um país como os Estados Unidos, também significa que as bandeiras se tornaram mais específicas do que antes: “quando ainda existem obstáculos facilmente identificáveis para se enfrentar, o feminismo tende a ser um movimento claro e útil. É quando esses obstáculos foram removidos que as coisas se tornaram confusas”, acredita Crispin. “Precisamos lembrar que as mulheres não são livres até que todos sejam livres. A verdadeira igualdade é a igualdade de todas as raças, todos os gêneros, todas as sexualidades, todas as idades, todas as classes. Não podemos nos distrair por mulheres em altas posições de empresas ou de governos”, completa.
Há uma falta de interesse naquilo que veio antes de nós. Estamos obcecadas por nós mesmas
Nos Estados Unidos, lembra a autora, barreiras que ainda são grandes pautas feministas ao redor do mundo já foram derrubadas. “O problema é que essas coisas ainda estão fora do alcance para muitas mulheres. Muitas meninas em nosso país não podem cursar o ensino superior sem contrair enormes dívidas”, exemplifica Crispin. “Esse é o momento em que as coisas se tornam difíceis em um movimento: quando é mais um problema de justiça e acesso do que apenas de protesto”.
Panorama nacional
O contexto de direitos para mulheres sobre o qual Jessa Crispin escreve, evidentemente, guarda grandes diferenças com aquele visto no Brasil. Aqui, o feminismo ganhou força mais tarde, e algumas disputas legais geraram resultados muito tempo depois – ou ainda são alvo de longas discussões.
Segundo Celi Pinto, professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e especialista em teoria feminista, os movimentos que proliferaram no país foram fortemente influenciados pelos do exterior: “Nancy Fraser, uma das grandes cientistas políticas do mundo atual, fala que nos anos 70 o feminismo esteve muito ligado à ideia de igualdade não só nas relações de gênero, mas na sociedade como um todo. A crítica, hoje, é que o feminismo perdeu isso – tornou-se uma questão de a mulher vencer como homem dentro do sistema capitalista, sem se preocupar com desigualdades sociais, de classe, de raça”, descreve.
Para Celi, a tradição dos movimentos dos Estados Unidos e da Europa também foi assimilada por países como o Brasil. Na opinião da professora, a variedade de movimentos distintos que se identificam como feministas é positiva, mas a transformação é evidente. “Esse feminismo contemporâneo, esse feminismo blogueiro, muito jovem, está muito mais ligado ao corpo. No mundo atual, aquele feminismo da década de 70, 80 e 90, que tinha luta social, desaparece”, complementa.
Quanto à conquista de espaços, é taxativa: “as lutas por igualdade, justiça, têm que ser mais amplas. Esse feminismo liberal, bem comportado, vai se contentar em ver uma mulher no Judiciário, por exemplo. Mas as mulheres que estão lá são diferentes dos homens que vieram antes? Também são brancas, de classe média alta... É importante que as mulheres estejam nos lugares, mas também é importante que o movimento feminista retome sua perspectiva de transformações na sociedade”.
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