Ouça este conteúdo
O município fluminense de Maricá ficou conhecido em todo o país graças a uma conversa telefônica constrangedora entre Lula e Eduardo Paes, divulgada pela Polícia Federal em março de 2016.
Era o auge da Lava Jato, e o então juiz Sergio Moro havia derrubado o sigilo do grampo do petista. Em uma das ligações vazadas à imprensa, o político carioca prestava solidariedade ao aliado e ironizava o sítio em Atibaia, pivô de sua condenação na operação.
“O senhor me para com essa vida de pobre, com essa tua alma de pobre, comprando esses barcos de merda, sitiozinho vagabundo”, disse Paes, ainda em sua primeira passagem (de oito anos) pela prefeitura do Rio de Janeiro.
E completou: “Imagina se fosse aqui no Rio esse sítio. Não é em Petrópolis, não é em Itaipava. É como se fosse em Maricá”.
A “brincadeira” de Eduardo Paes pegou muito mal, e ele rapidamente se desculpou com a população maricaense. Também fez questão de ligar para o prefeito local, Washington Quaquá, do PT, que lamentou o ocorrido.
Naquela época, Quaquá e Maricá pautavam os jornais regionais graças a uma “revolução” em curso no município – onde programas inovadores de inclusão e distribuição de renda eram aplicados com êxito pela gestão de esquerda.
Mas não se tratava do resultado de um case brasileiro inédito de eficiência administrativa e equilíbrio fiscal.
Com a expansão do pré-sal, a cidade litorânea de 197 mil habitantes se tornou a campeã nacional na arrecadação de royalties repassados pela indústria de exploração de petróleo e gás (só no ano passado, recebeu R$ 2,4 bilhões).
Nadando nesses petrodólares, Washington Quaquá iniciou uma série de projetos voltados ao incremento do turismo e, principalmente, para o que ele chama de “economia das pessoas”.
Começando por uma “moeda social”, a mumbuca, que as famílias de baixa renda recebem todos os meses e trocam por produtos e serviços, movimentando o comércio.
Durante seus dois mandatos, entre 2009 e 2017, o petista também construiu um hospital de referência, batizado com o nome de Dr. Ernesto Che Guevara.
Instituiu o passe livre para os ônibus (os “vermelhinhos”) e criou um passaporte universitário, com o qual jovens carentes podem se matricular em faculdades particulares da região.
Essas e muitas outras notícias positivas sobre o município não ultrapassavam as divisas fluminenses. Porém tornaram o prefeito uma das lideranças políticas mais influentes do estado – e do PT, onde é admirado por caciques como José Dirceu e o próprio Lula.
Tanto que chegou à vice-presidência nacional do partido, função que hoje exerce em paralelo ao mandato de deputado federal.
Seus críticos, no entanto, afirmam que o ex-prefeito é quem ainda dá as cartas na cidade. Além de fazer seu sucessor, Fabiano Horta, ele emplacou o filho como vice.
Diego Zeidan, de apenas 25 anos, licenciou-se do cargo em 2023 para virar secretário municipal de Desenvolvimento Econômico Solidário do Rio de Janeiro, onde tenta lançar uma moeda social nos moldes da mumbuca: a “carioquinha”.
Sim, o rapaz agora trabalha diretamente com Eduardo Paes, o mesmo que tirou sarro de Maricá há oito anos. Paes, inclusive, foi agraciado com o título de cidadão honorário do município em 2022, com direito à presença de Washington Quaquá na cerimônia.
Mas Quaquá não está satisfeito na Câmara – onde se notabilizou, em seu primeiro ano e meio de mandato, apenas pelo tapa que deu no colega Messias Donato (Republicanos-ES) durante um bate-boca ocorrido em dezembro de 2023.
O parlamentar agora quer voltar ao seu “lugar de direito”, o comando de Maricá. E mais: pretende fazer com que sua ex-mulher, a deputada estadual Rosângela Zeidan (mãe de Diego), seja eleita prefeita da vizinha Itaboraí.
Seus planos para tomar as rédeas de toda a região começaram oficialmente na última sexta-feira (14), quando promoveu uma festa gigantesca na cidade para anunciar sua candidatura ao pleito de novembro.
Apresentado pelo ator José de Abreu (seu amigo e diretor de uma escola de teatro gratuita que será inaugurada por lá no segundo semestre), o evento contou com a presença de mais de 20 mil pessoas, incluindo vários personagens centrais da política fluminense.
“Quando me elegi pela primeira vez, há 16 anos, esta era uma cidade mal falada, sem educação, sem saúde, sem nada. Hoje, Maricá é motivo de orgulho para todo o Brasil, para todo o mundo”, afirmou o candidato, justificando sua fama de megalomaníaco.
Parlamentar já ficou inelegível e foi condenado a três anos de prisão
A falta de modéstia, no entanto, não está entre os defeitos mais graves de Washington Quaquá, segundo seus opositores.
O deputado de 51 anos é frequentemente acusado de promover uma política assistencialista, para conseguir os votos dos mais pobres e manter seu grupo em voga.
Também é considerado machista, homofóbico e grosseiro – inclusive pela própria esquerda, como veremos mais adiante.
E o pior: vira e mexe surgem denúncias de corrupção e abuso de poder envolvendo seu nome ou de seus protegidos.
A mais recente veio à tona em fevereiro e deu conta de um desvio de mais de R$ 70 milhões da pasta da Saúde de Maricá. Pelo menos três gestores municipais investigados pela Operação Salus, da Polícia Federal, foram indicados aos seus cargos pelo próprio vice-presidente do PT. Todos estão afastados de suas funções públicas até segunda ordem.
Em 2013, Quaquá foi enquadrado na Lei da Ficha Limpa e declarado inelegível por oito anos pelo Tribunal Superior Eleitoral. De acordo com o TSE, ele aumentou em mais de 100% os salários de mais de cem correligionários e apadrinhados políticos “sem qualquer respeito a critérios legais ou administrativos”.
Amparado por um recurso, o petista chegou a disputar a eleição para deputado federal em 2018. Conseguiu 74 mil votos, mas teve seu registro negado pelo tribunal e não assumiu a cadeira em Brasília.
Em outro processo, o político foi condenado a três anos de prisão por fechar a pista do aeródromo do município, em 2013 – impedindo até pousos de emergência. De acordo com a acusação, sua decisão colaborou para a queda de um avião na Lagoa de Maricá, que causou a morte de um instrutor de voo e seu aluno.
No último mês fevereiro, o caso foi julgado em segunda instância no Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Todos os membros do colegiado seguiram o relator e votaram para manter a condenação ao ex-prefeito, enquadrado no crime de “expor perigo a embarcação ou aeronave através de ato para impedir navegação aérea”.
Ele alega que determinou o fechamento da pista para “tirar traficantes de drogas do aeroporto” e vai recorrer da decisão.
Outra de suas inúmeras polêmicas envolve a indicação da filha de Lula, Lurian Silva, para cargos públicos. Primeiro, como assessora da prefeitura de Maricá, durante sua gestão.
Mais tarde, Lurian foi nomeada para a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, onde passou dois anos no gabinete de Rosângela Zeidan, à época ainda sua mulher.
Aliás, o município do litoral fluminense costuma receber de braços abertos, e bons salários, petistas de fora da cidade. Um levantamento realizado pelo jornal O Globo em 2013 mostrou que, naquele ano, haviam 78 “forasteiros” filiados ao Partido dos Trabalhadores lotados na administração.
Quaquá defende que o PT funde uma igreja evangélica própria
Nascido em São Gonçalo, Washington Quaquá viveu na favela do Caramujo, em Niterói, antes de se mudar para Maricá, aos 11 anos.
Filho de um soldado da PM, ele conta que morava em um barraco de pau a pique e tentava catar caranguejos com a mão no Rio Mumbuca (inspiração para o nome de sua “moeda social”).
“Caguei num buraco até os 18 anos de idade, p*!”, costuma dizer – sempre usando o palavrão como se fosse uma vírgula.
Reza a lenda que seu apelido vem da voz de taquara rachada, mas ele nega. Segundo o político, a alcunha surgiu de sua mania de infância de ficar sempre à beira da Lagoa de Maricá, onde nadam vários patos.
Marxista e católico, envolveu-se com política ainda nos tempos de escola. Já cursando Sociologia, se aproximou do líder estudantil Vladmir Palmeira e da organização trotskista Convergência Socialista – grupo que participou da fundação do PT e foi expulso do partido na década de 90, dando origem ao PSTU.
O casamento com Rosângela Zeidan durou 23 anos. Quando anunciaram a separação, em julho de 2020, os dois fizeram questão de afirmar que o rompimento havia sido amigável.
“Continuamos amigos, cúmplices, companheiros de luta e ideias de vida. E parceiros na política”, disse a deputada estadual em sua conta no Instagram.
A paz, contudo, não durou muito. No mês seguinte, Quaquá comemorou na internet o nascimento de mais uma filha, dessa vez com a estudante de Psicologia Gabriela Lopes. Enfurecida, Zeidan abriu o jogo em suas redes.
“Filha fruto de uma deslealdade comigo, que sempre fui leal a você. Nunca te perdoarei por isso! Nunca”, afirmou, para depois apagar a mensagem.
Seja como for, o já citado apoio mútuo do ex-casal nas próximas eleições mostra que, pelo menos nas aparências, as rusgas foram deixadas de lado.
Quanto à Gabriela, ela se tornou uma das principais colaboradoras do marido em suas empreitadas empresariais: uma agência de turismo e a marca Favela, que inclui uma confecção de roupas (produzida no esquema de cooperativa por costureiras de comunidades carentes) e um concorrido camarote homônimo na Marques Sapucaí.
Este último empreendimento, além de lucrar cerca de R$ 1 milhão a cada Carnaval, serve como plataforma de networking para o parlamentar e seus aliados. Neste ano, por exemplo, passaram por lá diversos petistas de outros estados, como Zeca Dirceu (PR), Nilton Tatto (SP) e Camila Jara (MS).
A paixão pelo samba, e também por futebol, levou Washington Quaquá a se lançar em mais duas aventuras fora da política (pelo menos da partidária).
A escola União de Maricá, da qual é idealizador e presidente de honra, surgiu em 2016 e neste ano desfilou pela primeira vez no Sambódromo.
Participante do Grupo de Acesso (a “série B” do Carnaval do Rio), a agremiação recebeu R$ 8 milhões da prefeitura da cidade – um valor quatro vezes maior ao da subvenção paga pela gestão de Eduardo Paes às escolas do Grupo Especial (a “série A”) sediadas na capital carioca.
Já o Maricá Futebol Clube, atualmente na segunda divisão do campeonato do Rio de Janeiro, ganhou um estádio próprio em 2023. O dado curioso fica por conta do nome da arena: João Saldanha, em homenagem ao célebre jornalista e treinador – também conhecido por sua militância comunista.
O vice-presidente nacional do PT ainda tem outro par de projetos ambiciosos na manga. O primeiro é o livro, ainda em fase de finalização, ‘Diálogos com a Utopia’, em que explica sua teoria da “economia das pessoas” e “propõe a reconstrução da esquerda mundial”.
O segundo, bem mais ousado, dá conta da criação, por parte do PT, de um novo movimento cristão.
“Defendo que os filiados do partido montem uma igreja evangélica. Nós, que montamos sindicatos, associações de moradores e organizações da sociedade, precisamos disputar a teologia e montar uma igreja que ensine verdadeiramente os preceitos cristãos de solidariedade, amor ao próximo e prioridade aos pobres”, afirma.
Mas Quaquá também tem seu lado artístico, que expressa por meio da poesia.
“Nunca deixei de sonhar e ter a cabeça nas nuvens. Quem não sonha e não flerta com o céu e as estrelas perde a humanidade. Vira robô dos sistemas. Minha alma anarquista e macunaímica não se deixa aprisionar pela lei da gravidade”, diz no prefácio de seu livro ‘Cabeça nas Nuvens’.
Lançada em 2023, a obra traz poemas com títulos como “Cuba libre”, “Che Vive!” e “O coxinha mandou eu ir para Cuba”. E ele foi mesmo, várias vezes.
“Mamãe eu vou lá / Vou deixar os coxinhas / Aqui no Brasil / Com Bolsonaro e seu blablablá!”
Versos do poema “O coxinha mandou eu ir pra Cuba”, publicado no livro 'Cabeça nas Nuvens', do deputado federal Washington Quaquá
Uma de suas viagens à ilha do Caribe, no entanto, causou a ira da “companheirada”.
Enquanto cumpria uma agenda oficial em Havana com outros três deputados da base governista, o dirigente deixou de participar da votação sobre o decreto do saneamento básico – e contribuiu para uma das maiores derrotas de Lula no Congresso.
Atitudes do vice-presidente do PT desagradam setores do próprio partido
Chegado num “rolê”, o político também foi alvo de críticas dos próprios aliados devido aos passeios que costuma fazer no exterior com a família.
Só nos primeiros cinco meses de seu mandato como deputado federal, ele viajou cinco vezes para fora do país – acumulando 11 faltas no plenário e 24 em comissões, num período considerado crucial para o PT engrenar no governo.
A verdade é que vários setores da legenda desaprovam o estilo controverso de Washington Quaquá. Principalmente aqueles mais ligados à esquerda identitária.
No episódio do tapa em Messias Donato, por exemplo, ele ainda xingou o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) de “viadinho”, o que ofendeu os homossexuais.
Dois anos antes, o petista foi condenado a pagar uma indenização por danos morais à colunista política carioca Berenice Seara. Insatisfeito com uma nota publicada por Berenice, ele afirmou que mulheres usam o jornalismo para ganhar dinheiro ilegalmente, com o objetivo de “comprar botox”.
A própria Gleisi Hoffmann já teve de vir a público para dar um chega para lá no ex-prefeito de Maricá. Em fevereiro de 2023, ela o criticou por posar para uma foto com o deputado Eduardo Pazuello (PL-RJ), ministro da Saúde de Bolsonaro.
Segundo Gleisi, a imagem é “desrespeitosa com o PT e ofensiva às vítimas da Covid”. “Na vida e na política, tudo tem limites”, disse.
Em março deste ano, a dirigente petista voltou a desaprovar seu vice quando ele declarou não acreditar que Domingos Brazão ordenou o assassinato da vereadora Marielle Franco (mais tarde, Quaquá faltaria à votação que manteve o deputado preso).
“A posição dele não reflete a do partido. É uma posição isolada”, afirmou Hoffmann.
Ao que tudo indica, o político não está preocupado com a opinião de seus colegas petistas. Além de exercer grande influência no PT fluminense, ele tem as costas quentes com a principal liderança do partido – o presidente Lula (que, por sinal, perdeu para Bolsonaro em Maricá nos dois turnos de 2022).
Em uma entrevista concedida à emissora CNT, Quaquá revelou ter procurado Lula depois da polêmica foto com Pazuello. Disse ao mandatário que ele poderia lhe dar um “esporro” caso estivesse “fazendo merda”.
E ouviu a seguinte resposta do presidente: “Quaquazinho, fique tranquilo. Merda todo mundo faz”.
A reportagem da Gazeta do Povo procurou a assessoria de imprensa de Washington Quaquá para solicitar uma entrevista, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.