Em outubro de 1970, militantes da Frente pela Libertação de Quebec, no Canadá, sequestraram e assassinaram o governante da província, Pierre Laporte. Eles também mantiveram em cativeiro, por dois meses, o diplomata britânico James Cross. Em reação, o primeiro-ministro do país à época, Pierre Trudeau, invocou a Lei de Medidas de Guerra. Pela primeira vez a lei era usada em tempos de paz.
Agora, em meados de fevereiro de 2022, o filho de Pierre, o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau, invocou outra legislação de exceção, a Lei de Emergências, aprovada em 1988 para substituir a Lei de Medidas de Guerra e até então nunca utilizada. O texto permite proibir a reunião de cidadãos, assim como restringir viagens dentro do país. E foi acionado a pretexto de barrar o movimento de caminhoneiros que, desde janeiro, protestam nas ruas contra a obrigatoriedade das vacinas contra a Covid-19 para os que desejarem circular a trabalho entre o Canadá e Estados Unidos.
Primeiro-ministro desde 2015 e líder do Partido Liberal do Canadá desde 2013, Justin Trudeau chamou o Comboio da Liberdade de “movimento radical e minoritário”. Agora, com a continuidade do bloqueio em rodovias estratégicas, decidiu apelar para medidas mais radicais. Sinal de que os manifestantes incomodam o governo.
As ações dos manifestantes atingem o centro da capital, Ottawa, além de uma área fronteiriça por onde passa mais de um quarto do comércio entre Canadá e Estados Unidos. O Comboio da Liberdade chegou a coletar US$ 7,8 milhões em doações – mas o valor não chegou a ser usado porque o site responsável pela arrecadação, o GoFundMe, retirou a ação do ar. Ainda que os maiores sindicatos da categoria tenham se manifestado contra os protestos, eles contam com a aprovação de aproximadamente um terço da população canadense, de 38 milhões de pessoas.
Os caminhoneiros canadenses inspiram outros movimentos contrários à obrigatoriedade de certificados de vacina para trabalhar. Na França, no dia 12 de fevereiro, a polícia usou gás lacrimogênio para barrar um protesto na Avenida Champs Elysees, em Paris. Manifestações semelhantes já aconteceram na Bélgica, na Austrália e na Nova Zelândia.
Lideranças conservadoras
O Comboio da Liberdade tem entre seus líderes Tamara Lich, que ficou conhecida há três anos por participar ativamente do movimento pela independência das províncias ocidentais do país. “Os membros desse movimento pela liberdade são cidadãos comuns, amantes da paz, seguidores da lei, que se cansaram de sofrer abusos do governo”, declarou ela ao jornal “Ottawa Citizen”.
Também atuam como porta-vozes do movimento James Bauder e Sandra Bauder, fundadores do Canada Unity – grupo que, assim como outra liderança do comboio, Brian Peckford, passou a pandemia inteira questionando restrições sanitárias. Os manifestantes contam ainda com o apoio público de Cathryn Carruthers, cofundadora do Families for Choice, organização que defende que os pais possam decidir se querem ou não vacinar os filhos.
Por sua vez, outro dos organizadores, Maxime Bernier, é um ex-integrante do Partido Conservador que, em 2018, depois de perder uma disputa pela liderança do grupo, fundou o Partido Popular do Canadá. Sua abordagem política agressiva rendeu a ele o apelido de Mad Max. “Quando a tirania se tornar lei, a revolução se tornará nosso dever”, declarou ele em certa ocasião.
Como o caso de Bernie indica, a relação dessas pessoas com o Partido Conservador do Canadá é, de fato, instável, ainda que alguns de seus participantes, como o caminhoneiro Benjamin Dichter, sejam integrantes do movimento.
O Comboio da Liberdade inicialmente recebeu o apoio do partido, que existe com esse nome desde 2003 e atualmente agrega 270 mil pessoas. Posteriormente, a líder interina Candice Bergen pediu que os bloqueios fossem suspensos e chamou os organizadores de “malucos”.
Partido em crise
O surgimento dessas lideranças não alinhadas ao Partido Conservador indica que o grupo está em crise. No início de fevereiro, enquanto o Comboio da Liberdade agia, Erin O'Toole foi retirado da liderança partidária, que ocupava desde agosto de 2020. O'Toole vinha sendo criticado por tentar aproximar o partido do centro do espectro político do país. O desempenho ruim nas eleições federais mais recentes, realizadas em setembro de 2021, tampouco ajudou, assim como a defesa de posições diferentes das apoiadas tradicionalmente pelo partido. Ele se declara favorável à prática de aborto, por exemplo.
Ao longo de sua história, conservadores governaram o Canadá por longos períodos. Eles Formaram a maior força política do país em todo o período de 1867 a 1935. Com o nome atual, governaram o país entre 2006 e 2015.
Mas agora o grupo político passa por uma situação difícil, de acordo com o jornalista e analista Jen Gerson, que escreve para a tradicional revista canadense Macleans. “O partido decidiu ficar sem líder no momento em que uma manifestação agressiva se levantava em direção à capital, contra as restrições sanitárias da pandemia. O partido agora se vê diante de uma profunda crise de identidade”, analisou ele.
Apoio de peso
Para o canadense Jordan Peterson, um dos intelectuais mais influentes do mundo e uma voz em seu país contra a obrigatoriedade das vacinas, o Comboio da Liberdade alcançou um espaço expressivo na cena política do país. “Fui solicitado a me manifestar sobre os protestos, e agora o faço, após muita reflexão”, comenta ele em um vídeo postado em seu canal no YouTube.
“Vocês chegaram longe. Agora têm voz na Câmara dos Comuns”, declara. “Vocês se mantiveram pacíficos. Não morderam a isca quando foram provocados. Agora têm diante de si uma escolha difícil”, avalia ele, fazendo referência à decisão quanto a em que momento encerrar os protestos.
Peterson é uma das lideranças conservadoras mais respeitadas do Canadá. Ao validar os protestos, apesar de não ter participado da organização da ação ele deixa claro que o movimento tem a capacidade de influenciar nos rumos do Partido Conservador do país, precisamente num momento em que ele se vê em crise.