É impossível escapar da presença de sir John A. Macdonald em Kingston, Ontário.
Seu nome está na estrada para a cidade, na avenida principal e em prédios por todo o espectro educacional, de uma instituição de ensino primário de subúrbio à faculdade de Direito da prestigiada Queen's University.
Macdonald, cujo rosto se vê nas notas de dez dólares canadenses, criou esta nação há 150 anos, foi o primeiro primeiro-ministro do país e seu principal negociador político.
Só que era também um homem, vários de seus admiradores reconhecem, grosseiramente racista em relação às populações indígenas e que montou um programa de educação forçada para mais de 100 mil crianças, que uma comissão nacional recentemente declarou ter sido um "genocídio cultural".
Agora Kingston, o lugar onde ele é mais celebrado, tornou-se o berço de um debate sobre como, ou se, seu legado deve ser comemorado.
Como a briga recente nos Estados Unidos a respeito dos monumentos da Guerra Civil, o assunto também possui um peso emocional no Canadá, mas tem ficado limitado a argumentos e atos de vandalismo, sem confrontos violentos.
Um sindicato de professores primários de Ontário aprovou uma decisão pedindo que os conselhos das escolas retirem o nome de Macdonald de nove instituições de ensino da província, a mais populosa do Canadá, medida que irritou muita gente e atraiu críticas severas de alguns políticos.
John Baird, que foi ministro no governo conservador anterior ao atual, disse à Canadian Broadcasting Corp. que tirar o nome de Macdonald das escolas era "maluco e ridículo, uma maneira de tentar apagar a história canadense sob o pretexto de uma atitude politicamente correta extrema e radical".
Mas Perry Bellegarde, chefe nacional da Assembly of First Nations, a maior organização indígena do Canadá, afirmou que remover o nome de Macdonald poderia ser parte de um programa prometido pelo primeiro-ministro Justin Trudeau para pedir desculpas aos povos indígenas por todos os erros, como a educação forçada.
"Se eu sou jovem e sei que John A. Macdonald causou grandes danos ao meu povo, não me sentiria muito bem indo a uma escola que tem o nome dele. Por que submeter as crianças a isso?", disse Bellegarde.
Abusos sexuais
A Comissão da Verdade e da Reconciliação do país passou cerca de seis anos reunindo testemunhos de estudantes sobreviventes que foram internos das escolas indígenas, e Trudeau se comprometeu a cumprir a maioria das 96 recomendações com os povos nativos propostas pela comissão.
Em um período de cerca de 100 anos, mais ou menos 150 mil crianças indígenas foram tiradas de suas famílias, algumas vezes pela polícia, e mandadas para internatos administrados pelas igrejas.
A comissão descobriu que várias delas foram abusadas sexual e psicologicamente nas escolas e algumas até morreram. Os professores e funcionários de várias instituições eram no mínimo incompetentes, segundo a comissão, que diz que "a negligência era institucionalizada".
Macdonald acreditava que uma criança indígena educada onde vivia era "simplesmente um selvagem que não pode ler ou escrever", enquanto as mandadas para os internatos "adquiriam hábitos e modos de pensar dos homens brancos". Para aumentar a assimilação dos alunos, as escolas baniram as linguagens indígenas e proibiram, algumas vezes à força, suas práticas culturais.
Brindes e celebrações
Macdonald também abriu o caminho para uma ferrovia transcontinental nos anos 1880 impedindo, em algumas regiões, o apoio alimentar aos indígenas durante uma época de escassez até que eles concordassem em se mudar para reservas estabelecidas pelo governo. Os moradores de várias dessas áreas ficavam confinados até conseguir um passe de um agente do governo para viajar.
No verdejante City Park de Kingston, que tem um campo de críquete, uma estátua de Macdonald, que liderou o Canadá de 1867 a 1873 e depois novamente de 1878 até sua morte em 1891, se tornou um local de celebrações e protestos.
Catorze anos atrás, Arthur Milnes, autor local que se autodescreve como "historiador público", reuniu oito pessoas aos pés da estátua em 11 de janeiro, data aceita como a de aniversário de Macdonald. Eles cantaram o hino nacional ("O Canada") e o britânico ("God Save the Queen") e fizeram um brinde ao antigo primeiro-ministro que, segundo a lenda, gostava muito de beber.
Nos anos seguintes, a multidão chegou a milhares, com apresentação de coros, e Milnes recebeu dinheiro dos governos conservadores para várias comemorações relacionadas com Macdonald.
"Ainda acho que se Macdonald era ou não racista, o que ele fez, junto com vários pais da confederação, foi uma coisa incrível. Apesar de todas as falhas, e sabemos que elas existem, nos padrões mundiais, se você é canadense, é uma pessoa de sorte", afirma Milnes.
Espírito do tempo?
A estátua e o Canadá possuem significados muito diferentes para Krista D'Amour Flute, uma lakota sioux adotada por uma família não indígena canadense, dias depois do nascimento, na Dakota do Sul. Quando chegou à adolescência, ela se afastou de seus pais adotivos e se tornou ativista de questões indígenas.
"As pessoas dizem que era o espírito daquele tempo, mas, quando John estava vivo, nem todo mundo concordava com suas políticas e resultados, nem todo mundo acreditava que os povos indígenas tinham que ser tratados da maneira como eram. E nem todo mundo pensava como ele", afirma ela, usando uma camiseta sem manga que dispensava as celebrações dos 150 anos do Canadá com um palavrão.
Em janeiro deste ano, não houve brinde, uma medida que Milnes tomou pensando na segurança das pessoas.
Felipe Pareja, professor do subúrbio de Toronto que apresentou a moção para retirar o nome de Macdonald das escolas, diz que o momento, em conexão com a violência recente de Charlottesville, na Virgínia, foi apenas uma coincidência. O impulso para se livrar do nome de Macdonald, conta, veio das recomendações da Comissão da Verdade e da Reconciliação do Canadá, o inquérito que condenou as políticas de educação do ex-primeiro-ministro.
"Essas escolas internas foram criadas com o objetivo de separar as crianças de suas famílias, para minimizar e enfraquecer os laços familiares e as ligações culturais, para doutrinar os jovens em uma nova cultura, a da sociedade canadense euro-cristã dos que dominavam legalmente, liderada pelo primeiro-ministro, sir John A. Macdonald", relatou a comissão.
Kathleen Wynne, governadora de Ontário, disse em comunicado que a monção para remover o nome de Macdonald "não fazia sentido" e pediu aos conselhos das escolas locais responsáveis pela decisão que não tomassem essa medida.
"Precisamos ensinar as crianças toda a história deste país, inclusive o colonialismo, os povos indígenas e suas histórias, e sobre como nossos fundadores criaram o Canadá e fizeram do país o que é hoje", explicou Wynne.
Reflexos de Charlottesville
Essa também é a visão dos funcionários e dos clientes da Kingston's Royal Tavern, um dos lugares preferidos de Macdonald para comícios políticos.
"As coisas aconteceram no passado e deveriam ser deixadas de lado. Isso é história. É possível que as pessoas se lembrem do que aconteceu na época só por ainda ver o nome dele", diz o barman Mick Smith.
Mas Charlottesville e suas consequências parecem ter influenciado a opinião de pelo menos um dos envolvidos no debate de Kingston.
Milnes afirma que aprendeu com a discussão sobre o simbolismo do Exército Confederado dos Estados Unidos que o contexto "é importante".
"Nas últimas semanas, percebi que se você tira a estátua com respeito e coloca em um museu, não está desrespeitando o pai da confederação."
"Muitas vezes a gente gosta de se mostrar como essa sociedade perfeita, inclusiva e não racista, mas não somos. A verdade é que não dá para prometer um consenso geral, mas acredito que estamos caminhando para um lugar melhor", afirma.
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