A cantora Fabiana Cozza decidiu não participar mais do musical “Dona Ivone Lara – Um Sorriso Negro”, que tem estreia prevista para setembro. Ela anunciou sua decisão pelas redes sociais, no domingo (3), após receber uma série de críticas. Para muitos, a cantora, que é filha de pai negro e de mãe branca, tem a pele muito clara para interpretar a lenda do samba.
A decisão de Fabiana foi anunciada dias depois da divulgação do elenco da produção. Ela interpretaria Dona Ivone Lara na vida adulta, e foi indicada para o papel pela família da sambista. Conhecida como Rainha do Samba, Dona Ivone Lara morreu no mês de abril, aos 97 anos. Para o crítico de música Julio Maria, tratava-se da maior compositora do samba e da música brasileira.
“Renuncio por ter dormido negra numa terça-feira e numa quarta, após o anúncio do meu nome como protagonista do musical, acordar “branca” aos olhos de tantos irmãos. Renuncio ao sentir no corpo e no coração uma dor jamais vivida antes: a de perder a cor e o meu lugar de existência. Ficar oca por dentro. E virar pensamento por horas”, disse Fabiana em sua página no Facebook.
O cientista social Eduardo Baroni Borghi ficou surpreso com as críticas que diziam que Fabiana era branca. “Não há como negar que ela possui uma pele mais clara do que a de Dona Ivone Lara. Mas não há como negar que ela é negra”, comentou Borghi.
Segundo Borghi, o episódio mostra que existe falta de representatividade de pessoas negras com a pele mais escura em papéis de destaque em produções audiovisuais. “O foco da discussão teria que ser esse”, disse.
Colorismo
Os movimentos negros alertam para a existência do “colorismo” – a discriminação pela cor de pele que faz com que os negros e pardos de pele mais escura sofram preconceito de forma diferente do que os de pele mais clara. A discussão em torno do musical coloca em pauta essa questão, na opinião da coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) da Universidade Federal do Paraná, Lucimar Rosa Dias.
Para Lucimar, as críticas surgiram porque “sempre que se vai colocar um personagem negro em evidência, a opção da mídia e dos diretores é pelas pessoas mais claras. A polêmica explicita isso que os movimentos negros têm apontado. Essa não é a primeira vez, é algo recorrente”, disse.
A pesquisadora ressaltou que a escolha de Fabiana Cozza para o papel é legítima, já que foi feita pela própria família, e porque a cantora se identifica como negra. “Mas acho que qualquer pessoa mais clara que assuma o papel de um personagem mais escuro tem que saber que essa polêmica vai acontecer, porque há uma discussão em torno disso”, afirmou Lucimar.
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Borghi concorda com a escolha de Fabiana Cozza para o papel, e acha que o episódio tomou outra proporção quando as pessoas focaram na legitimidade da escolha da cantora, e não na questão de por que os negros de pele mais escura não são representados. “Eu acredito que ela tenha legitimidade em fazer esse papel pelo fato de ser negra, porém de pele mais clara, e por conta de toda a trajetória dela ligada ao samba, à própria Dona Ivone Lara, e também à militância voltada às questões sociais”, disse.
“Em vez de ficar brigando entre nós, deveríamos ter um foco maior, tentar reverter isso”, completou.
Família
A família de Dona Ivone Lara recebeu com tristeza a notícia da desistência de Fabiana de interpretar a compositora.
"É uma total falta de respeito com a Fabiana. Para a gente, ela é negra. Além de ser uma artista incrível, ela e minha avó se conheciam há mais de 20 anos, eram muito amigas. A Fabiana também tem conhecimento profundo de todo o repertório da Dona Ivone e consegue interpretá-lo como ninguém. Esses dois fatores – o grande talento e a amizade com a minha avó – foram determinantes para que ela fosse escolhida. E é bom registrar: a direção do musical está em contato com a gente há muito tempo, tudo foi conversado conosco antes", disse o neto de Dona Ivone Lara, André Lara, ao site G1.
Legitimidade
Em texto divulgado no Facebook, Jô Santana, produtor do musical, disse que uma nova artista será escolhida para interpretar a personagem.
Aceitamos a renúncia de Fabiana Cozza, Cantora e Atriz de reconhecimento internacional, de qualidade Artística inquestionável.
Em respeito à indicação da Família de Dona Ivone Lara, a única atriz convidada para o espetáculo foi Fabiana Cozza, os outros 21 atores foram selecionados via Audições. Ao pensar em Fabiana, pensamos na representatividade que a artista teve em toda sua trajetória e na ligação pessoal entre a artista e a homenageada e sua família.
Acreditamos que as demandas do movimento que desencadeou a renúncia são legítimas. Que bom que a partir de uma obra teatral possamos trazer à tona discussões pertinentes à sociedade.
Aceitamos as demandas, nos reconhecemos nestas; porém, não podemos comungar com reações violentas que foram levantadas na última semana contra a artista e contra este coletivo de trabalho formado por artistas de reconhecimento internacional.
Jô Santana é o idealizador do Projeto Trilogia do Samba, que conta a trajetória de três expoentes da cultura brasileira: Cartola, Martinho da Vila e Dona Ivone Lara. A direção e dramaturgia do projeto é de Elísio Lopes Jr. e a direção musical está sob a batuta de Rildo Hora.
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