O filósofo e ex-senador holandês Roel Kuiper, na sede das Nações Unidas.| Foto: Arquivo pessoal

O desenvolvimento de uma sociedade depende do seu capital moral. Essa é a ideia central de Roel Kuiper no livro Capital moral: o poder de conexão da sociedade (Ed. Monergismo), publicado em 2009 nos Países Baixos e que acaba de ganhar uma edição em português.

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Kuiper sempre teve um pé na política e outro na universidade. Historiador e filósofo, hoje leciona Identidade Cristã nas Práticas Sociais na Theologische Universiteit, em Kampen – instituição da qual também é reitor. Em 2007, foi eleito senador pelo partido União Cristã (Christen Unie). Deixou o Senado em junho deste ano, ao fim do seu terceiro mandato, para se dedicar mais intensamente à academia.

Ele esteve em Curitiba para participar do congresso “Ética e ação cidadã em tempos de extremos” e lançar a edição brasileira de seu livro. Na ocasião, Kuiper conversou com a Gazeta do Povo. Confira a entrevista:

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Em que consiste, em linhas gerais, o seu conceito de capital moral?

Escrevi sobre isso a partir de uma preocupação e de uma convicção. A preocupação é com os rumos da cultura ocidental, em que forças como a individualização e a globalização exercem bastante pressão sobre as estruturas sociais – famílias, nações e comunidades locais. Não sou o único que faz esse tipo de análise. Nos Estados Unidos há muita literatura sobre o desmoronamento das instituições sociais. Já a convicção vem do fato de que sou cristão e acredito que a filosofia cristã com a qual me ocupo pode dar respostas a essa situação. Pois bem, o que é o capital moral? Nos Estados Unidos, cunhou-se o termo capital social. É um conceito que sublinha a importância das redes de relações que estabelecemos. Mas isso não me satisfazia, porque o conceito de capital social não diz nada sobre a habilidade ou o preparo para importarmo-nos uns com os outros.

Na minha opinião, é aí que está o coração do problema – e também da solução. Precisamos nos importar com o outro, demonstrar interesse pelo bem do outro. Essa é a verdadeira força de ligação. É o que eu chamo de capital moral. De certo modo, podemos dizer que é a expressão social e política da noção bíblica de amar o próximo. É o oposto de ser egoísta e de pensar o tempo todo nos próprios interesses, nos próprios benefícios e no próprio lucro.

Mas, de certo modo, o nosso sistema econômico e político nos convida diariamente a buscarmos exatamente isso – o próprio benefício e o próprio lucro –, importando-nos apenas conosco mesmos, nos orientando para nós mesmos. O conceito de capital moral procura superar isso, invertendo a direção e afirmando que o que necessitamos é a atitude de cuidar uns dos outros e do mundo. Podemos dizer que o capital social é um eixo horizontal e que temos necessidade de um eixo vertical, ou seja, de saber para que são as relações sociais, qual é o seu sentido.

Como é possível desenvolver esse capital moral?

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Eu acredito que o capital moral é uma atitude formada em nós como uma virtude, ou seja, algo que se torna um hábito. E é formada em ambientes sociais como a família, a comunidade local e a escola. Todas essas esferas têm um certo caráter moral em si mesmas. Na família, por exemplo, precisamos nos importar uns com os outros e não ser egoístas o tempo todo. A própria estrutura social convida você a ser moral – os pais em relação aos filhos, os filhos em relação aos pais, os esposos em relação um com o outro e os irmãos em relação uns com os outros. Uma vez formada, essa atitude de se importar com o outro é levada à sociedade e aplicada às mais diferentes situações.

É por isso que acredito no papel das instituições como espaços em que somos formados e de que temos necessidade para construir o nosso capital moral e assim poder estabelecer laços em sociedade e servir o bem comum – e não o nosso bem individual. É algo que aprendemos no microcosmo da família, da escola, da igreja e da comunidade local.

Você é um crítico do conceito de contrato social e propõe, em vez disso, a noção de aliança. Qual a diferença entre essas duas concepções?

No século XVI, quando os filósofos tentavam encontrar palavras para expressar o que está por trás da res publica, alguns autores cristãos optaram pelo uso do termo “aliança”. O que temos uns com os outros na sociedade é uma aliança: nós nos comprometemos uns com os outros, prometendo permanecer juntos e cuidar uns dos outros. O exemplo mais claro foi o que ocorreu no convés do Mayflower, o navio que transportou os chamados “peregrinos” da Europa para a América do Norte, em 1620: antes de desembarcar na nova terra, eles se comprometeram em uma aliança: custe o que custar, prometemos que permaneceremos juntos e nos importaremos com cada membro da comunidade, incluindo os deficientes, os doentes e os idosos, constituindo uma verdadeira comunidade, uma comunidade solidária e amorosa. Podemos encontrar o eco disso nas constituições de alguns estados norte-americanos, que consideram a sociedade uma aliança desse tipo.

No século XVII, no contexto da guerra civil na Inglaterra, havia um clima de tanta angústia que as pessoas passaram a pensar na sociedade como um contrato: simplesmente um acordo para viver em paz. Thomas Hobbes, John Locke e Jean-Jacques Rousseau estão nessa linha. Um contrato é menos que uma aliança. É só um acordo entre mim e você. Não nos envolve completamente. A aliança atinge um nível moral, enquanto o contrato aborda apenas alguns pontos em que concordamos, mas exclui todo o resto. O contrato parte do indivíduo, enquanto a aliança parte da comunidade.

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Além disso, ao contrário de uma aliança, um contrato é uma teoria. Aplicando isso à sociedade como um todo, se torna uma grande teoria: talvez “a” teoria sobre a sociedade. Acredito que podemos ter uma ideia mais rica sobre o que é ser uma sociedade se redescobrirmos e reavivarmos as suas estruturas de aliança. Como fazemos isso? Olhando para as comunidades locais e as famílias como alianças. É pedir demais que toda a sociedade seja uma aliança, mas podemos voltar o olhar para as estruturas de aliança que a compõem. São as pequenas comunidades, em que conhecemos uns aos outros, sabemos que não vamos deixar os outros para trás e promovemos uma atmosfera de cuidado.

Essa noção de que o contrato se restringiria ao campo da teoria, ou seja, seria incapaz de abraçar a complexidade da realidade, tem a ver com a noção de ideologia? A sua crítica ao utopismo se relaciona com isso?

Sim. A utopia pertence ao campo das ideologias, como o comunismo e o nazismo. Há um perigo no pensamento utópico: nós vivemos no futuro e nos desconectamos do presente. Você quer romper com o presente para criar um futuro melhor, a utopia. Com isso, legitima-se o uso da força e da violência contra o presente. Mas você nunca chega à utopia. Ao mesmo tempo, o presente se torna inabitável.

O risco é olharmos sempre para o futuro como o lugar em que queremos estar e esquecermo-nos de ser responsáveis pelo aqui e pelo agora. Nossas obrigações morais são concretas nas situações particulares em que estamos, diante daqueles com quem convivemos.

Não estou dizendo que o desenvolvimento ou o progresso são ruins. Mas eles devem ser construídos a partir de onde estamos, ligados às responsabilidades que realmente podemos assumir. Não se trata de sonhar acordado com algo que é impossível.

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Como o capital moral está associado ao cenário religioso de uma nação?

Eu não acredito que esse conceito deva estar fechado unicamente em uma linguagem religiosa. Algumas estruturas, como a família, têm essa dimensão do cuidado por si mesmas.

Você não precisa ser cristão para entender que os pais têm que cuidar dos seus filhos ou para entender que os irmãos têm laços entre si e cuidam uns dos outros. Isso é como que natural e tem implicações na forma como vivemos algumas estruturas, como a família ou a comunidade local. Do mesmo modo, boas escolas e boas lideranças procuram fomentar comunidades solidárias, em que há um espírito de união, em que aprendemos como cuidar uns dos outros.

Há visões religiosas que tendem ao individualismo e, dessa maneira, prejudicariam o capital moral. Assim, uma sociedade altamente religiosa não seria necessariamente uma sociedade com um bom capital moral, certo?

Um ponto a respeito disso é que poderíamos dizer que pessoas que não professam uma religião também podem ser religiosas na medida em que professam algo que sentem como verdade. O individualismo liberal tem tons religiosos, porque assume uma crença na autonomia do indivíduo. Isso, de fato, prejudica a formação do capital moral.

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A regra é: você é livre, pode viver a vida que quiser, seguir seu próprio caminho e trabalhar pelo seu próprio interesse – por que alguém deveria interferir nisso?

Quando a mensagem é essa, a sociedade é ferida. Se cada um vive a sua própria ética, que consiste em viver em benefício próprio, não há sequer sociedade. Ninguém se importa com o outro.

E quando comunidades religiosas vivem de maneira autocentrada e partidarista?

Sei que isso acontece. Não deveria ser o normal. Comunidades cristãs podem ser muito autorreferenciais e preocupadas apenas consigo mesmas. Isso é uma aberração. Deveria ser exatamente o contrário. Os cristãos deveriam entender que são chamados a ser bons e a fazer o bem para todas as pessoas, independentemente de sua posição ou origem. Isso está claro nas Escrituras. Quando a formação do capital moral tem êxito, as pessoas entendem que se trata de algo que não deve ser vivido apenas internamente, mas aplicado para além dos limites dos próprios círculos em que vivem.

A polarização, com a desumanização do adversário político, contribui para o decréscimo do capital moral?

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Sem dúvida. A desumanização do adversário é incompatível com o capital moral. É preciso parar com esse tipo de polarização. O caminho para fazer isso é simplesmente dialogar. Devemos entender que somos seres humanos e que precisamos dialogar uns com os outros; precisamos compreender o outro, o que o move, quais são seus medos e seus desejos.

Há muito medo na sociedade. Parte da desumanização do outro vem daí. Acredito que é algo que está no fundo do ser humano – e é também uma ideia cristã – que nós fomos feitos para o diálogo. Desumanizar o outro é loucura. Não podemos ter uma boa sociedade a partir disso.

Se aprendemos o hábito de respeitar o outro e se importar com ele, é claro que não fazemos esse tipo de coisa. Não é um sinal de cuidado e de amor pelo outro insultá-lo ou recusar-se a trabalhar ao seu lado.

Há uma filosofia política que diz que somos inimigos o tempo todo. É o que Hobbes proclamava no século XVII: “O homem é o lobo do homem”. Mas então não há sociedade. Tornam-se necessários vastos contratos para de alguma forma manter um equilíbrio. Minha visão filosófico-política é que enxerguemos uns aos outros como parceiros e colaboradores. Estamos uns ao lado dos outros e precisamos dialogar sobre tudo aquilo que é necessário e importante para a sociedade.

O diálogo inclui o reconhecimento de que não tenho todas as respostas. Como esse reconhecimento se conjuga com a fidelidade às próprias convicções?

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Bem, você pode ter respostas. Você pode ter a convicção de que tem respostas a oferecer. Não há nada de errado com isso. Mas esteja pronto para dialogar com os outros sobre elas, sem ser inflexível ou intolerante, recusando-se a escutar as ideias dos outros. Acho que sempre devemos ser humildes e nos dar conta de que somos apenas humanos. Podemos errar. Podemos ter ideias erradas. É possível. E é aí que você reconhece que pode e precisa dialogar. Não é necessário renunciar às próprias convicções, mas trazê-las à conversa e ver que, ao lado dos outros, podemos construir ideias melhores. Esse é o caminho do progresso.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]