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Bolsa de Valores de São Paulo

Capitalismo de “justiça social” chega à bolsa: B3 quer cotas raciais e de gênero para empresas

Painel da Bolsa de Valores de São Paulo em março de 2020
Painel da Bolsa de Valores de São Paulo em março de 2020 (Foto: EFE/ Sebastiao Moreira)

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Depois das controvérsias envolvendo o ESG como meio de imposição de pautas progressistas às corporações nos Estados Unidos, a Bolsa de Valores de São Paulo (B3) quer exigir que as empresas brasileiras de capital aberto destinem cotas raciais e de gênero para cargos de alta liderança e incluam indicadores de desempenho ligados a governança ambiental, social e corporativa nas políticas de remuneração variável da administração. As propostas foram discutidas em audiência pública em meados de agosto e podem receber contribuições da sociedade até 16 de setembro. O objetivo é que as novas regras de inclusão e diversidade entrem em vigor no próximo ano e que as empresas tenham até 2025 para começar a se adequar ou para apresentar justificativas de não cumprimento. As consequências da não adesão e da falta de explicação podem chegar à deslistagem da bolsa.

O mecanismo proposto pela B3 prevê “que as companhias brasileiras tenham ao menos uma mulher e um integrante de comunidade minorizada (pessoas pretas ou pardas, integrantes da comunidade LGBTQIA+ ou pessoas com deficiência) em seu conselho de administração ou diretoria estatutária”. O critério para todos os casos será a autodeclaração, e a empresa pode eleger um mesmo membro que acumule as duas características, ou seja, a eleição de uma mulher negra cumpriria a exigência.

De acordo com um relatório da B3, 60% das 423 companhias listadas na bolsa neste ano não têm nenhuma mulher entre seus diretores estatutários e 37% não contam com participação feminina no conselho de administração. A base de dados reportada pelas empresas não inclui informações sobre raça.

“Entendemos como papel da B3 também ajudar a induzir mudanças e avanços no mercado financeiro. O tema da diversidade é um dos que precisamos priorizar, e acreditamos que a implantação das melhores práticas deve ocorrer de maneira progressiva, com prazos que permitam a necessária evolução da diversidade dentro das companhias. Mesmo na questão da participação feminina, que a sociedade debate há mais tempo, constata-se que grande parte das empresas listadas ainda não possui nenhuma mulher em suas diretorias estatutárias e conselhos de administração”, afirma a vice-presidente de Operações da B3, Viviane Basso.

A iniciativa da bolsa brasileira se inspira em mudanças nas normas de listagem do Reino Unido e das bolsas de Nasdaq (EUA), Austrália, Hong Kong, Tóquio e Singapura. A participação de mulheres na alta liderança foi uma preocupação encontrada pela B3 em todas elas, enquanto as regras de diversidade, envolvendo âmbitos como nacionalidade, raça e orientação sexual, foram adotadas por uma parte das analisadas. “As medidas propostas seguem a tendência internacional de indução de maior diversidade no mercado financeiro e precisarão ser adotadas em prazos mais curtos quando comparadas a iniciativas semelhantes anunciadas por outras bolsas e órgãos reguladores ao redor do mundo”, afirma a B3 em comunicado.

Opinião de quem investe 

Sócio-fundador da Liberta Investimentos e de outras empresas que oferecem serviços no mercado financeiro, o empreendedor Leandro Ruschel é um crítico da iniciativa da B3, que considera “muito negativa, não só para o mercado, mas para a sociedade”. "O mercado é promotor de prosperidade e crescimento econômico para todos, porque é baseado na livre iniciativa e na concorrência. Qualquer pessoa é livre para iniciar e administrar um negócio. O objetivo principal das corporações sempre foi gerar lucro e, através disso, oferecer melhores produtos e serviços, por menores preços, em ambiente de livre concorrência. Quando se abandona esse modelo de sucesso para adotar decisões políticas que interferem nesse objetivo, passa-se a ter menos prosperidade para a sociedade”, explica.

Para Ruschel, adotar critérios subjetivos de seleção de lideranças empresariais é “ineficiente e injusto”. “O Brasil é um país bastante misturado, não tem como chegar à conclusão sobre ser negro ou branco. Em situações assim, acaba-se usando tribunais raciais, e isso é muito negativo. Mesmo o conceito de homem e mulher hoje é subjetivo, a pessoa se declara de determinado gênero e é ofensivo se posicionar contra”, diz. “Sou radicalmente a favor da igualdade de oportunidades. Não pode ser preconceituoso por causa de cor de pele, sexo, religião ou o que seja, mas dar espaço para que quem se esforça mais tenha mais capacidade e alcance as melhores posições. O colaborador que performa quero que ele seja o líder. O contrário começa a criar mais animosidade, gera mais divisão e conflito”, acrescenta o investidor.

A imposição de cotas de diversidade é ainda mais grave, na opinião de Ruschel, pelo fato de a bolsa brasileira não ter concorrência. “A bolsa não deve se meter, mas oferecer o ambiente de negociação e garantir que as regras de mercado sejam respeitadas. Não definir políticas públicas de cunho socialista, ainda mais de forma obrigatória: ou faz isso ou não pode ser listado. Diferentemente dos Estados Unidos, onde, se não gosto de uma bolsa, vou atrás de outra, no Brasil é um monopólio. Se quero oferecer ações publicamente vou ter que passar pela B3”, argumenta.

Já o economista Pablo Spyer, sócio da XP Investimentos, aprova a proposta da B3 que, na opinião dele, tem um cunho educacional e pretende “cumprir um papel de boas práticas”. “A B3 tem esse DNA, e vejo com bons olhos essa agenda para trazer diversidade. Na verdade, ainda é uma proposta, está em audiência, e as pessoas podem fazer contribuições”, reforça.

Favorável à meritocracia, Spyer afirma que a ideia não é dar cargos a quem não tem preparo profissional, mas combater o racismo de “não contratar [alguém preparado] porque é preto”. “Tem vários machistas que não querem colocar mulher, mas não é colocar quem não entende do business. Tem que ser boa profissional, capacitada, trabalhadora. Não são só homens brancos que têm isso, é preciso expandir, é preciso convidar mulheres, negros, pardos, deficientes, LGBT”, acrescenta.

“A ideia é combater o racismo, não está certo não contratar porque é preto; combater a homofobia, mostrar que a inclusão faz bem para a empresa no fim das contas. E não é igualdade de salário também, a mulher pode ganhar mais, porque ela é melhor. É tirar o racismo e incluir a meritocracia”, opina Spyer.

No ano passado, a XP Investimentos se tornou ré em uma ação civil pública movida por entidades dos movimentos negro e feminista, sob a acusação de “falta de diversidade”. O processo ocorreu após a publicação de uma fotografia que mostrava funcionários da empresa, a maioria homens, brancos e jovens. Na ação, as entidades pedem para si uma indenização de R$ 10 milhões por dano moral coletivo a "todos(as) os(as) negros(as) e mulheres do Brasil" que se candidataram a vagas na companhia e na Ável Corretora de Seguros, uma vez que a foto provaria que a política de contratação de ambas seria "notoriamente excludente e discriminatória".

Nos EUA, experiência aponta problemas 

A ideia de que o objetivo de uma empresa não deve se limitar ao lucro dos acionistas, e sim mirar a construção de um mundo melhor para todos não é nova, mas ganhou força nos últimos anos. Com mais de cinco décadas de existência, o conceito “capitalismo de stakeholders” (ou capitalismo das partes: funcionários, clientes, fornecedores, comunidades locais e a sociedade em geral) vem crescendo no mundo desde a publicação do Manifesto de Davos 2020, assinado pelo fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial, Klaus Schwab (também responsável por cunhar o termo ainda nos anos 1970).

O texto defende que “uma empresa é mais do que uma unidade econômica geradora de riqueza. Ela cumpre as aspirações humanas e sociais como parte de um sistema social mais amplo. O desempenho deve ser medido não apenas pelo retorno aos acionistas, mas também pela forma como atinge seus objetivos ambientais, sociais e de boa governança” e tem servido de apoio para a adoção de medidas políticas dentro das corporações.

Os problemas dessa linha de condução dos negócios já têm sido sentidos nos Estados Unidos, com o boicote de marcas pelo público consumidor, o aumento de legislações contra empresas militantes e a reação de acionistas contra a politização das companhias.

Comentando a decisão de bancos americanos de não fazer ou restringir negócios com empresas e pessoas ligadas à fabricação de armas e munições, o colunista Jonathan Tobin, da revista conservadora norte-americana National Review, alertou que esse tipo de restrição é incompatível com a democracia. Ele ressalta que, quando empréstimos ou investimentos “socialmente responsáveis” passam a ditar que as empresas parem de vender algum produto ou reduzam as vendas a certos compradores, é sinal de que os bancos estão assumindo um poder que não lhes foi dado por meio do voto.

“A noção de que o que esses bancos estão fazendo é meramente o livre mercado em ação é uma distorção da verdade. Essas restrições são uma tentativa de usar o poder dos bancos para contornar o processo legal e político normal. Para o Congresso ficar parado e deixar os banqueiros neutralizarem a Segunda Emenda [que protege o direito da população e dos policiais à legítima defesa, por meio de porte e posse de armas] seria um abandono do dever, não uma defesa do livre mercado”, opina Tobin.

Preocupação semelhante com a democracia é apontada por Leandro Ruschel, com relação às novas regras da B3, uma vez que a separação entre mercado e política é uma “garantia de liberdade”. “O poder econômico é substancial por si só, o dinheiro é uma forma de poder. O poder político tem que se afastar do econômico. Esse tipo de medida deve ser debatido no Parlamento, pelos representantes do povo, para ver se as regras serão adotadas e se isso pode ser mudado. Quando as empresas arrogam a si o direito de decidir políticas públicas, não tem como votar contra. Percebo que essa união entre poder econômico e político, promovido por corporações como BlackRock e outras gestoras, é ofensiva à democracia por concentrar poder econômico e político nas mãos de poucas pessoas”, analisa.

Para os críticos, outro ponto controverso de medidas como a adoção de critérios ESG é seu alto custo de implantação, o que pode até levar os negócios a desvantagens competitivas. Nesse contexto, os investidores acabam considerando mais atrativas as empresas que investem em pautas da militância esquerdista (como a existência de um plano de ações sustentáveis e a diversidade nos seus quadros de gestão) do que as que garantem os maiores retornos financeiros a seus acionistas.

“O ESG, portanto, se tornou uma força motriz muito perniciosa nos negócios americanos, que está levando as empresas a adotar valores políticos em detrimento dos valores tradicionais de negócios”, opina o escritor Stephen R. Soukup, autor do livro “The Dictatorship of Woke Capital: How Political Correctness Captured Big Business” (“A Ditadura do Woke Capital: Como o Politicamente Correto se Apropriou das Grandes Corporações”, em tradução livre), ainda sem edição no Brasil.

Pressão sobre a B3 

Há pelo menos dois anos, a B3 vinha sofrendo cobranças pela implementação de ações afirmativas e de regras de diversidade para as empresas listadas. Em agosto de 2020, a Educafro enviou uma carta ao presidente da bolsa, Gilson Finkelsztain, apontando “a ineficácia e a propagação de desigualdades pelas políticas de governança da B3”. Assinada pelo fundador, Frei David, a carta “acusa a B3 de ser omissa em sua função regulatória de instituir condições, parâmetros e políticas de governança para as empresas que negociam suas ações no mercado financeiro brasileiro”. Segundo texto publicado no site da Educafro, na época, “a Bolsa de Valores é conivente e contribui para as desigualdades raciais e de gênero”.

Em dezembro do ano passado, a bolsa do Brasil se tornou uma apoiadora do Pacto de Promoção da Equidade Racial, com o objetivo de “incentivar que o mercado avance no tema”. Uma das ações do Pacto é o Pacto foi o Protocolo ESG Racial no Brasil, cuja proposta envolve a adoção de ações afirmativas, melhoria da qualidade da educação e formação de profissionais negros. Um dos pilares do Pacto é o Índice ESG de Equidade Racial (IEER), desenvolvido por econometristas da USP e do INSPER, “para medir o desequilíbrio racial dentro das organizações em termos de renda destinada a profissionais negros, quando comparado ao percentual de negros na população economicamente ativa na região em que a empresa atua”.

“O apoio institucional da B3 é um convite para que as companhias, não apenas as listadas, mas as que atuam no mercado financeiro de forma geral, revisem suas práticas, tracem planos e partam para a ação. Adotar práticas ESG passa por proporcionar um ambiente de equidade e respeito e essa evolução coordenada por parte das companhias tende a contribuir de forma relevante para a transformação estrutural que todos nós esperamos”, afirmou Ana Buchaim, diretora executiva de Pessoas, Marketing, Comunicação e Sustentabilidade da B3, na época. A adesão das empresas naquele momento, portanto, era voluntária.

Agora, o que está em discussão na B3 são regras no modelo “pratique ou explique”. Ou seja, “as companhias que eventualmente não conseguirem avançar precisarão indicar ao mercado e aos investidores em geral os motivos que inviabilizaram os avanços”. Até o próximo dia 16, atores do mercado e toda a sociedade podem enviar por e-mail (sre@b3.com.br) contribuições que serão avaliadas pela B3. O texto final das novas regras será submetido à aprovação de órgãos internos e da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão estatal que regula e fiscaliza o mercado de capitais. A B3 também se comprometeu a divulgar na íntegra todas as manifestações públicas que forem enviadas.

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