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A obra de arte serve para tornar a experiência humana comunicável e significativa. Sem formas e paradigmas narrativos as nossas vivências se fragmentariam caoticamente, como se jamais pudéssemos expressar os nossos dramas fundamentais; e as nossas palavras carecessem de relação com a vida, dispersas entre a frivolidade ignóbil e os verbalismos pedantes. Ao que Monteiro Lobato tem razão ao afirmar: “Só compreendemos o abstrato quando existe material concreto na memória.” Ele delineia o valor da formação do imaginário: a riqueza de elevar experiências existenciais a conceitos gerais e devolvê-los ao mundo da vida. No entanto, há produções artísticas que se perdem em estereótipos e ideologias, pelas quais deixam de comunicar a experiência com a realidade e corrompem o nosso imaginário e senso estético. “Capitão Fantástico”, filme de 2016, disponível na Netflix e Amazon Prime Vídeo, faz parte de um desses movimentos ideológicos.
Antes de analisá-lo antecipo as críticas que recebo: dizem os revolucionários que chamo de ideológica a arte de que simplesmente discordo. Longe disso, especialmente porque somente é possível discordar de ideias, quanto às narrativas, são verossímeis ou inverossímeis – não verdadeiras ou falsas. E o problema das ideologias é exatamente este – a inverossimilhança. A ideologia substitui a realidade pela ideia: torna o discurso pura construção da mente.
Isto é claramente observável na ideologia de gênero. Os ideólogos propõem a ruptura entre sexo (a realidade material) e o gênero (a construção social). “Capitão Fantástico” age a partir da mesma tática: o discurso feito para encobrir a realidade em vez de elucidá-la. Por exemplo: a fim de sugerir que o espírito revolucionário deixa o homem saudável, ao passo que a aceitação do capitalismo destrói o seu corpo e alma, os personagens liberais passam a ser figurados por obesos, enquanto os anarquistas/socialistas são todos atores de corpo atlético. A impressão que se forma na alma é inverossímil porque tanto há indivíduos liberais magros e saudáveis, quanto o próprio Karl Marx era gordo; e ela causa uma ruptura com a unidade do próprio filme, já que passada a cena reaparecem capitalistas magros, à desatenção do diretor.
Ritos de passagem
Este pecado artístico é lamentável considerando que “Capitão Fantástico” tinha potencial para ser um ótimo filme. Ele peca na forma, mas tem bom conteúdo. Inclusive, parte de um drama humano profundo, a saber: a escolha de criar uma família numerosa, na natureza selvagem, com educação física e intelectual de excelência.
O pai — Ben — parte da pedagogia de Platão: “A educação começa com música para a alma e ginástica para o corpo.” Enquanto a arte abre o espírito às mais altas qualidades humanas, o exercício físico dá forças para realizá-las. Sem ginástica, a personalidade ficaria afeminada; e sem poesia, bruta. Já a educação pública, da qual Ben foge, transforma a cultura em instrumento do Estado; priva os jovens da leitura dos clássicos, como se devessem ler apenas manuais entediantes, a fim de passar em provas acadêmicas e nada relevantes para a vida.
Ben também critica a falta de ritos da Modernidade. Esta deixa o jovem sem saber qual é o seu lugar no cosmos. Não à toa somos uma geração de incontáveis eternos adolescentes, niilistas e existencialistas frustrados. Falta um rito de passagem que sinalize: “Agora você é responsável por si, pelos próprios atos ou suas consequências; deve ter maturidade emocional e psicológica, autoconhecimento e autorrespeito. Chegou a hora de ter o seu autossustento; de ser adulto, maduro, responsável.” Já Ben segue os antigos povos: realiza um ritual com o menino mais velho, que deve executar um bicho de grande porte e depois ouvir do ancião: “Hoje o garoto morreu. Em seu lugar há um homem.”
Deslocados da vida real
Parece que eles têm uma vida perfeita? Apenas parece. Logo recebem a notícia de que a mãe — que voltara à cidade a fim de tratar de problemas psicológicos — dera fim à própria vida. O suicídio materno dramatiza que o isolamento na natureza não cura todas as dores: depressão, ansiedade, vazio existencial. O filósofo Eric Voegelin expõe muito bem este drama: “A tentativa de encontrar a paz somente pelo refúgio na solidão do mar ou das montanhas é uma fantasia vulgar, porque o único refúgio possível e eficaz é o refúgio na intimidade da alma bem-ordenada.”
Eis que a família precisa retornar à civilização e, rumo ao velório da mãe, os filhos mensuram o quão estão deslocados da vida real. Eles sabem falar dos clássicos e sobreviver nas florestas, mas nada entendem das diferenças humanas e ambiguidades da sociedade. Por exemplo: o filho mais velho — Bodevan — apaixona-se, porém desconhece como abordar uma mulher. Ele fala com aquela que deseja como se fosse o Príncipe diante da Princesa. Pede-lhe em casamento, logo após o primeiro beijo, com declarações quixotescas.
O filho precisava adequar os seus ideais familiares, inculcados pelo pai, com a sua experiência social, o que só seria possível através do contato com outras pessoas. A socialização e experimentação do novo serve para nos libertar do hábito pueril de julgar como imediatamente inferior o modelo de vida que é diferente do nosso. Por mais que exista uma filosofia superior, a suspensão provisória do juízo é fundamental para nos libertar do provincialismo – a estreiteza de espírito resultante da falta de contato com outras formas de pensamento – e para avaliar não só o que você pensa dos outros, como o que eles pensam de você. A agitação do mundo forma o caráter humano.
Ética da intenção
No entanto, restritos à convivência com o pai, os filhos nunca tiveram a oportunidade de perceber que foram educados segundo a ética da intenção, em vez da ética da responsabilidade. Este é o conceito do sociólogo Max Weber que fundamenta a moralidade revolucionária, a qual justifica os seus maus atos pela nobreza da intenção. Por exemplo: a revolução francesa guilhotinou uma multidão sem pudor e justificou estas mortes pelos princípios de Liberdade, Igualdade e Fraternidade. O mesmo faz Ben ao pedir que os filhos furtem alimentos do supermercado, justificando o assalto à maneira de Márcia Tiburi: “Os capitalistas continuarão a enriquecer vendendo as suas mercadorias, por que não fazer uma reparação histórica?”
É terrível como estes homens idealizam a malandragem, o vício e o crime. Pensam que os bandidos são essencialmente bons ou, pelo menos, vítimas da sociedade, enquanto a polícia é essencialmente má ou, pelo menos, opressora pelo Estado. No filme, estes ideais só são questionados quando as crianças encontram o avô materno. Este mostra como a educação anárquica de Ben está transformando os filhos em militantes capazes de justificar o roubo, arriscar a própria vida nos perigos da floresta, e passar a existência sem conhecer outras pessoas. O pai reavalia a sua conduta quando vê uma das filhas — Vespyr — cair do telhado na ocasião de uma de suas “missões”, o que lhe poderia ter custado os movimentos da perna.
Depois do acidente, a família volta à civilização, mediante uma adequação parcial. Pois a mensagem do filme não é a de que há coisas boas no liberalismo, e sim a de que o militante não deve permanecer isolado. Ele precisa mudar o sistema desde o interior do próprio sistema, o que é menos arriscado e mais integrativo. Assim os seus ideais nobres, jamais questionados, não colocarão em risco a sua própria vida, nem se limitarão à família. Eis que o filho, radicalmente mais inteligente e forte do que todos os liberais, vai à universidade e todos os telespectadores escutam: “Poder para o povo, desafie as regras!”