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O que aconteceu no Capitólio na quarta-feira (6) foi algo bizarro e indesejável, mas talvez não do jeito que você pensa. Não foi um golpe, no sentido de uma tentativa ilegal e violenta de tomar o poder. O acontecido certamente foi ilegal e violento, mas não havia nenhuma intenção de se tomar o poder com a invasão do Senado por uma trupe de personagens extravagantes. Nem como pretexto para uma ação militar por parte de Trump o evento serviu. Um golpe é uma ação política totalmente diferente. Pegue a Turquia de 2016, por exemplo.
Mas não faria objeção a que o acontecido fosse chamado de “golpe”, o que me leva àquilo que considero o mais interessante sobre o evento. Não podemos interpretá-lo à luz da tradição política norte-americana. O que aconteceu foi importante porque sinaliza uma mudança mais radical. Enquanto um golpe no sentido literal tivesse um sentido preciso dentro dessa tradição, o que aconteceu na quarta-feira nos deixa sem palavras. Basta ver as fotos tiradas de dentro do Capitólio.
Numa dessas fotos, um personagem usando um capacete viking posa no púlpito do Senado, enquanto seus companheiros tinham fotos. Um está deitado pensativamente no chão, aparentemente ao telefone. (Descobriu-se que o viking é Jake Angeli, um ator profissional). Noutra foto, um revolucionário todo feliz usa uma touca de lã com pom-pom, enquanto carrega um púlpito com a marca da Presidência da Câmara. Fiquei também impressionado com a imagem da multidão lá fora, usando roupas bordadas com os dizeres “Guerra Civil, 6 de janeiro de 2021”, numa referência ao filme que eles pretendiam encenar.
Já à noite, o Senado recuperou seu ar soturno e os golpistas foram vistos bebendo no salão do hotel Grand Hyatt. Enquanto isso, à medida que os acontecimentos no Capitólio se sucediam, o índice Dow Jones subia 400 pontos e fechava numa alta recorde. Nada mau para um golpe.
Não foi uma produção teatral, porque uma peça é mais segura, não tem riscos; mas foi uma encenação, o que pode ser muito mais perigoso para os envolvidos — cinco pessoas morreram na invasão. O “golpe” chegou ao fim quando o principal conspirador foi banido temporariamente das redes sociais. Não foi um golpe no mundo real, mas foi vista assim por aqueles que dele faziam parte.
O mais interessante é que aqueles chocados com o que acontecia no Senado também estavam envoltos na fantasia, a ponto de talvez acreditarem que um golpe real foi tentado e derrotado. Em Washington, você aparentemente pode ter a “experiência completa de golpista” em poucas horas A ação acontece numa espécie de realidade virtual na qual acidentes horríveis podem acontecer e acontecem, mas as consequências mais trágicas para o regime político e os espectadores em casa são de alguma forma contornadas.
Isso significa que a extravagância no Capitólio foi algo trivial e desimportante? De jeito nenhum. De certa forma, ela foi mais importante do que um golpe de verdade. Um golpe ao menos faria sentido, enquanto a substituição quase completa da política séria por uma fantasia leva a uma sensação de vertigem. Nossa forma tradicional de ver o mundo entrou em colapso. Nada parece real e as dúvidas persistem quanto ao que pensar ou dizer diante dessa situação nova. No debate no Senado que precedeu o caos, Ted Cruz foi ouvindo gritando aos colegas. “Seja ousado. Impressione os espectadores”. Palavras proféticas. Ficamos impressionados mesmo.
Pense em Trump não como um déspota, um político lidando com os fatos, e sim como alguém que vive tão absorto por sua vida de sonhos que hoje espera que os acontecimentos no mundo real se encaixem automaticamente em suas fantasias. Para mim, Trump sempre pareceu representar o nível mais básico da fantasia: a irritabilidade com as frustações e inconveniências da vida real, o desejo de uma vida livre dos limites do politicamente correto e até mesmo dos bons modos. O que lhe faltava era um ato realmente criativo, as relações complexas do mundo ficcional. Infelizmente, parece haver só uma forma comprovada de lidar com essas aflições psicanalíticas: obrigar a fantasia a se confrontar com a realidade, e foi isso o que aconteceu na quarta-feira.
Dreampolitik
Em sua recente entrevista para Jeffrey Goldberg, da Atlantic, Barack Obama começa tentando ver Trump como um personagem autoritário — até mesmo protofascista — mas depois se confessa intrigado: “Penso no clássico herói da cultura norte-americana de quanto éramos criança: John Wayne, Gary Cooper, Jimmy Stewart, Clint Eastwood, e assim por diante.”. Mas será que o Trump é assim? Não, bem o contrário. Ele está mais perto dos personagens da Dreampolitik retratados com tanta cor por Joan Didion: os motoqueiros que já não consideram as pequenas irritações da vida algo a ser tolerado, as aspirantes a atriz que veem o futuro como algo controlado por uma divindade de Hollywood, com sua providência benevolente. “Qualquer coisa menos do que um atendimento instantâneo num restaurante constitui uma provocação intolerável: tenho que destruir o lugar, matar o dono, estuprar a garçonete. Subir na Harley e ir embora”.
Na mesma entrevista, Obama se aproxima da verdade, ainda que previsivelmente se recuse a aceitá-la. Trump não é um personagem autoritário, e sim um personagem de liberdade — a liberdade compreendida como a satisfação de todos os desejos, por mais extremos que sejam eles, no aqui e no agora — e, portanto, alguém que representa forças poderosas e ascendentes na sociedade norte-americana contemporânea.
Nessa visão de mundo, o mundo existe para servir como um palco para nossas fantasias. Isso é política de harém no maior estilo. Improvável e, em sua forma atual, insustentável. O que impressiona essa visão de mundo considera a destruição uma força. Só havia uma alternativa a Trump, que era levar o trumpismo ao ponto de ruptura. Ainda assim, ao longo de toda a administração Trump, o sistema deu certo. Acho que funcionava até melhor do que as pessoas supunham porque o sistema norte-americano de governo não pretende se transformar numa tranquila social-democracia nórdica. Ele pretende abrir um espaço considerável para a encenação de fantasias políticas, ao mesmo tempo em que as impede de se tornaram reais demais.
Sempre que Trump trouxe as coisas para o lado da realidade — no sentido de impor suas histórias a todos como se elas fossem reais — o sistema as rejeitou, nem tanto se aproximando de uma versão de alguma forma mais aceitável de mundo, e sim insistindo para que Trump e seus seguidores permanecessem no reino da ficção e da encenação, isto é, no mundo da Dreampolitik. O sistema deu certo, mas o problema é que o sistema hoje age para evitar apenas consequências catastróficas e por meio de ciclos de prosperidade e recessão.
Se seria melhor substituir a fantasia por uma ideia mais adequada de mundo real? Idealmente sim, mas parece que já passamos dessa fase. O mundo real é quase uma ilusão. Vivemos cercados pela Internet — vivemos dentro dela — e a verdade institucionalizada do passado perdeu sua força. A sociedade hierarquizada, a religião, os velhos limites, os limites naturais da tecnologia: todos os monumentos do passado estão lutando para sobreviver na nova América. Então teremos de ser um tanto quanto mais sofisticados em relação a esses assuntos. Não que todas as conspirações e profecias que se multiplicam na direita e na esquerda devam ser levadas a sério, mas está cada vez mais difícil dizer o que deve ser levado a sério — o mundo real? Talvez a Suprema Corte possa nos dizer onde encontrá-lo. Neste momento, só podemos esperar por fantasias melhores do que os nossos dramas políticos atuais. Onde está você, Ronald Reagan? Uma nação solitária... e assim por diante.
Parece um começo. Um começo desastroso em vários sentidos, mas alguém acredita que os demônios soltos nos últimos anos voltarão para a caixa? James Madison argumentava que o caminho para se interromper a violência de uma facção é criar vários interesses e partidos de modo que uma maioria não possa se sobrepor.
A lição continua válida hoje, quando a violência da fantasia pode ser interrompida por meio da multiplicação de suas fontes, dando a ela, paradoxalmente, o controle da situação — assim como Madison queria dar controle total à facção, mas foi considerado louco por dizer isso. Mas um novo James Madison e um novo Alexander Hamilton estariam à míngua hoje porque a mentalidade institucional da sociedade virtual – uma teoria política do virtualismo – ainda precisa ser desenvolvida. Para isso serão necessárias reformas profundas na organização da Internet, da imprensa e da tecnologia. Só estamos começando.
Bruno Maçães é membro do Hudson Institute.