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Enquanto tentam resolver o desafio da escalabilidade do produto, as empresas planejam convencer o mercado consumidor de que a carne artificial é mais ecológica e ética do que a tradicional
Enquanto tentam resolver o desafio da escalabilidade do produto, as empresas planejam convencer o mercado consumidor de que a carne artificial é mais ecológica e ética do que a tradicional| Foto: Bigstock

Desde que o consumo de carne passou a ser considerado o vilão das mudanças climáticas, o prato do consumidor tem se tornado um dos campos de batalha mais acirrados do planeta. Longe de ser uma questão de liberdade individual, como defendem os conservadores, para os progressistas “comer menos carne é um ato político”, como argumenta o Greenpeace. O debate promete se intensificar nos próximos anos, com a ascensão da carne produzida em laboratório, novidade que deve chegar a alguns restaurantes americanos ainda em 2023 e aos mercados até 2028. Enquanto tentam resolver o desafio da escalabilidade do produto, as empresas planejam convencer o mercado consumidor de que a carne artificial é mais ecológica e ética do que a tradicional. Com o ativismo alimentar simpático à ideia, em um futuro não tão distante seremos obrigados a comer carne cultivada no lugar de carne natural?

Como não envolve o abate de animais, apenas a coleta de células para replicação dos tecidos em laboratório, a carne cultivada aparece como uma alternativa de alimentação mais “ética” para quem não come proteína animal por razões morais. O fato de o processo ocorrer em um recipiente de aço, e não em um pasto aberto, também chama a atenção de quem está preocupado com o impacto ambiental. A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que a pecuária é responsável por 14,5% das emissões mundiais de gases de efeito estufa.

“A carne cultivada pode ser uma solução promissora porque permite que os consumidores continuem comendo carne e, ao mesmo tempo, compensam os encargos ambientais da produção em massa de carne”, defende Janet Tomiyama, do Departamento de Psicologia da Universidade da Califórnia, e outros colegas pesquisadores, em um estudo sobre a percepção do público acerca da carne artificial. Os autores concordam que os humanos são evolutivamente predispostos a desconfiar de alimentos desconhecidos e defendem que as barreiras à aceitação pelo consumidor “exigirão diferentes abordagens – algumas resolvidas pela ciência e tecnologia, outras pela educação e outras ainda por políticas”.

Jan Dutkiewicz, pós-doutor em ciência política pela Universidade Johns Hopkins, concorda que não é mais preciso escolher entre ser sustentável e comer hambúrguer: a solução “está nas startups de ‘carne limpa’ do Vale do Silício”. “A agricultura celular, por sua vez, usa células-tronco de animais para cultivar carne em um ambiente de laboratório que é geneticamente análogo à carne de animais abatidos. A startup Memphis Meats já produziu almôndegas indistinguíveis das reais. Em comparação com a carne convencional, a carne limpa gera 96% menos emissões de GEE [gases de efeito estufa] e usa 99% menos terra e até 96% menos água”, comenta.

Dutkiewicz defende a rápida regulamentação e investimentos públicos na nova tecnologia, que ainda tem os desafios de reduzir custos e aumentar a produção, para ser uma alternativa à carne real.

Autor do livro “Como evitar um desastre climático”, o fundador da Microsoft, Bill Gates, defende que “os países ricos devem mudar totalmente para a carne sintética” em vista da saúde planetária. “Eu não acho que os 80 países mais pobres vão comer carne sintética. Acho que todos os países ricos deveriam mudar para carne bovina 100% sintética. Você pode se acostumar com a diferença de sabor, e a alegação é que eles vão torná-lo ainda melhor com o tempo”, afirma, defendendo desde incentivos à mudança de comportamento do consumidor até o uso da “regulamentação para mudar totalmente a demanda”.

Até o momento, apenas Singapura tem aprovação para a venda de carne artificial no varejo. Em novembro, a FDA, agência federal do Departamento de Saúde dos Estados Unidos, disse que um peito de frango cultivado em laboratório pela UPSIDE Foods, com sede na Califórnia, era seguro para consumo humano. A empresa ainda aguarda inspeção do Departamento de Agricultura e a aprovação de seus rótulos, para seguir com os planos de distribuição nos próximos cinco anos.

Temores de coerção

A defesa da carne cultivada como alternativa à proteína animal tradicional aparece em um contexto de guerra cultural intensa, aumentando temores de que a solução seja imposta à população, tão logo se torne viável economicamente.

Rumores sobre planos governamentais de banir o consumo de carne cresceram nos Estados Unidos em 2021, com o Green New Deal, de Biden. “O plano climático de Joe Biden inclui cortar 90% da carne vermelha de nossas dietas até 2030. Eles querem nos limitar a cerca de quatro quilos por ano. Por que Joe não fica fora da minha cozinha?”, protestou na ocasião a deputada republicana Lauren Boebert, do Colorado.

De acordo com a imprensa americana, no entanto, a notícia de que Biden pretendia limitar a alimentação dos cidadãos surgiu do cruzamento equivocado das propostas climáticas do governo com um trabalho acadêmico feito em 2020, na Universidade de Michigan, que estimava possíveis impactos de mudanças hipotéticas na dieta dos americanos.

“Não, hambúrgueres, costeletas e bifes não serão proibidos, mas com toda a probabilidade serão racionados, ainda que pelo preço e não pela lei. A perspectiva de que taxas de gases de efeito estufa cada vez mais onerosas – e inegavelmente regressivas – possam ser impostas à carne está longe de ser remota”, pondera Andrew Stuttaford, editor da revista conservadora National Review.

Para o analista, é bom que cientistas possam “desenvolver carne alternativa nutritiva, de custo competitivo e saborosa à base de plantas ou cultivada em laboratório”, mas isso apenas deveria ampliar “a escolha do consumidor”. “A bem-vinda disponibilidade de uma gama crescente de alternativas (eu as experimentaria) não deve se tornar um caminho para a proibição ou taxação penal da carne ‘real’, um prazer que beneficiou nossa espécie por milhões de anos”, defende Stuttaford.

A coerção, seja por meio de leis proibitivas ou de taxação (o que tornaria, por exemplo, a carne real uma alternativa possível apenas para os ricos), é um dos pontos do ativismo alimentar duramente criticado por conservadores. “Quando um conservador é vegano, ele simplesmente não come carne. Quando um progressista é vegano, ele não quer que VOCÊ coma carne”, argumenta Dan Lakey, fazendeiro do estado americano de Idaho.

Guerra à carne

De acordo com uma reportagem da agência de notícias Associated Press, o consumo de carne passou para o centro da guerra cultural americana, juntamente com “aborto, controle de armas e direitos dos transgêneros”. Enquanto a deputada democrata de Nova York Alexandria Ocasio-Cortez defende um esboço ambiental que aponta a necessidade da redução na produção de gado, a senadora republicana Joni Ernst, de Iowa, apresentou, em abril de 2021, um projeto de lei para impedir agências federais de estabelecer políticas proibindo servir carne aos funcionários em determinados dias da semana. Para ela, as “segundas-feiras sem carne” são uma “guerra à carne” como outras já travadas anteriormente, contra o Natal, por exemplo.

Na Europa, ativistas também têm declarado guerra à carne e a quem a consome. Em setembro do ano passado, a filial alemã de um grupo de direitos dos animais chamado Peta defendeu que homens que comem carne (o que seria um “sinal de masculinidade tóxica”) deveriam ser proibidos de fazer sexo e se reproduzirem, para “salvar o planeta”. “Agora há comprovação científica de que a masculinidade tóxica também prejudica o clima. Portanto, um pesado imposto sobre a carne, de 41% para os homens, seria apropriado. Uma proibição de sexo ou procriação para todos os homens que comem carne também seria importante neste contexto”, disse Daniel Cox, líder da Peta Alemanha.

No mês seguinte, o Comitê de Participação Cidadã e Petições Públicas do Parlamento Escocês prometeu considerar uma petição sobre a proibição de carne em todo o país, entre 2023 e 2040. O pedido foi apresentado por Roger Green, da Vote With Your Fork [Vote com seu garfo], uma campanha que luta por um mundo sem carne no futuro. Segundo Green, um membro do Parlamento “concordou amplamente com o conteúdo e a proposta” e outro estava de acordo com alguns pontos, mas ainda não convencido de que a proibição de carne seria viável.

Na mesma época, a cidade de Haarlem, na Holanda, anunciou que vai ser a primeira do mundo a banir anúncios de carne em espaços públicos a partir de 2024, em decorrência do impacto climático da proteína animal. "Proibir propaganda por motivos de origem política é quase ditatorial", disse o vereador Joey Rademaker, do partido de direita BVNL, que classificou a medida como uma violação da liberdade empresarial, possivelmente fatal para suinocultores. “As autoridades estão indo longe demais ao dizer às pessoas o que é melhor para elas", afirmou a Organização Central do Setor de Carnes à rede BBC.

Sinalização de virtude

Nos últimos anos, relatórios climáticos têm apontado a proteína bovina como o alimento que mais contribui para emissões de gases de efeito estufa e desmatamentos em regiões como Amazônia e Cerrado. Isso porque o gás carbônico e o metano são emitidos na pecuária em três momentos: no desmatamento de áreas usadas para pasto, na erosão do solo da pastagem e no processo de fermentação gástrica dos bovinos. Embora estudiosos apontem boas práticas no campo como saídas importantes para reduzir os impactos da atividade econômica, há opiniões mais radicais, que defendem a eliminação completa do consumo de carne para conter o aquecimento.

“De longe, a coisa mais importante que você pode fazer é surpreendentemente simples: você pode parar de comer carne”, disparava um artigo na imprensa americana em 2016, quando o tema começou a ganhar mais espaço, baseado em dados divulgados uma década antes pela FAO.

Em 2018, a We Work, gigante do coworking que opera em cerca de 38 países, resolveu banir a carne de eventos corporativos e das refeições de seus 6 mil funcionários. A proibição abrange carne vermelha, aves e suínos, com o objetivo de “deixar um mundo melhor para as gerações futuras”. “Novas pesquisas indicam que evitar a carne é uma das maiores coisas que um indivíduo pode fazer para reduzir seu impacto ambiental pessoal – ainda mais do que mudar para um carro híbrido”, disse o cofundador da empresa, Miguel McKelvey, em comunicado.

O analista financeiro Felix Salmon definiu a medida como “paternalismo arrogante” por parte do bilionário, “cuja pegada de carbono pessoal está certamente entre os 0,1% dos cidadãos globais” [um estudo mostra que o 1% mais rico do mundo emite mais que o dobro de carbono que metade da população mais pobre]. “Haveria maneiras muito mais fáceis e eficazes de reduzir a pegada de carbono da empresa. E embora a política certamente economize uma certa quantia de dinheiro, duvido que essa seja a motivação principal. Em vez disso, este é um estudo de caso perfeito em sinalização de virtude. Chame isso de vegetarianismo performático: essa é uma política que ganhará aplausos de McKelvey e status social entre os bilionários woke [lacradores] de Powder Mountain [maior estação de esqui dos EUA, bastante frequentada por milionários], ao custo de enormes dores de cabeça de RH e ressentimento generalizado dos funcionários”, criticou.

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