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Artigo da Magna Carta
Artigo da Magna Carta escrito em muro: “Nenhum homem livre será preso exceto pelo julgamento legal dos seus pares.”| Foto: Big Stock

Caríssimo leitor, meu semelhante e meu irmão, como você responde à pergunta: “Quem manda, afinal, em você?”? É o síndico do prédio? Seu chefe no trabalho? O prefeito... o governador... o presidente? Desde já, sabemos que a resposta sempre será múltipla — porque múltiplas também são as tramas e urdiduras dessa encrenca incontornável, a vida real.

Exageros à parte, o fato é que o poder é um grande perigo, sempre. E não apenas quando se concentra nas mãos de um tirano: também é perigoso quando se capilariza, sutil, até chegar ao proverbial guarda da esquina — aquele em quem Pedro Aleixo (vice de Costa e Silva, nos idos de 1968) vislumbrava uma ameaça maior do que a dos generais do regime.

Deixemos para um outro os riscos específicos do poder “distributivo”. Afinal, sua concentração já traz problemas bastantes para nos ocuparmos aqui. Melhor, então, tratar da primeira metade do quebra-cabeça: como o poder absoluto se tornou avalanche, e quais barreiras encontrou que fossem capazes de o deter.

Porque também houve resistência e barreiras — e uma delas configura ainda hoje um marco simbólico, no imaginário e no vocabulário dos homens: a Magna Carta, que o rei John da Inglaterra — o John Lackland, o mitológico João-Sem-Terra — foi premido a assinar em 15 de julho de 1215. Para o bem e para o mal, a Europa e a civilização ocidental nunca mais foram as mesmas.

Onde a Lei é o limite

Magna Carta é a forma abreviada do título em latim do documento: Magna Charta Libertatum, seu Concordiam inter regem Johannen at barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni angliae (ou Grande Carta das liberdades, ou concórdia entre o rei João e os barões para a outorga das liberdades da Igreja e do rei Inglês). Abreviando-se também seu escopo, costuma-se dizer que foi o primeiro decreto ocidental a estabelecer limites para o poder dos monarcas europeus. Especialmente em três pontos vitais, tanto mais importantes por serem direitos conquistados, e não proibições impostas: o direito da Igreja de atuar livremente, sem a interferência do Estado; o direito de todos os cidadãos livres de possuírem e herdarem propriedade; o direito de serem protegidos de impostos excessivos.

Fato inédito na história da Civilização pós-romana (e a ressalva é importante, pois o Império Romano tinha mecanismos que faziam as esferas de poder se vigiarem e restringirem mutuamente), pela primeira vez um decreto real limitava (em vez de ampliar) os poderes do monarca, impedindo-lhe o exercício do poder absoluto. Pela primeira vez, um monarca inglês era posto literalmente contra a parede pela nobreza e pelas leis. Com o tempo, o modelo se estendeu pelas monarquias europeias, estabelecendo que ao soberano caberia julgar os indivíduos conforme a Lei, de acordo com o devido processo legal, e não segundo a sua vontade, até então absoluta. A Lei passava a ser o limite.

O filósofo Ortega y Gasset advertia que “nunca se escreveu um livro que explicasse satisfatoriamente por que alguém fez determinada coisa”. O caráter genérico da afirmação faz muito sentido: as motivações sempre são muitas — e as boas e más intenções dos homens também não são poucas. Feita a ressalva, pode-se dizer que a Magna Carta coroou uma longa sequência de desentendimentos entre o rei John (ou, para simplificar, daqui para a frente “João da Inglaterra”), o Papa Inocêncio III e os barões ingleses em torno de ponto crucial: até onde vale o arbítrio de um soberano. O poder, fatiado e repartido, começava a se distribuir — o que deu a início a uma nova modalidade de encrenca (como já mencionamos, en passant).

Porque, longe de ser um “final feliz”, a Magna Carta inaugurou outra sequência de disputas. A mais imediata foi a Primeira Guerra dos Barões, conflito civil entre um grupo de nobres rebelados, sob a liderança do barão Robert Fitzwalter, e o próprio João da Inglaterra, que se recusava a cumprir as determinações do documento. (Afinal, ninguém vai cortar o galho em que está sentado…) A Guerra se estendeu até 1217, quando o trono era já ocupado por Henrique III, o herdeiro de João da Inglaterra (morto no meio da briga, em 16 de outubro de 1216). Com intermediação do papa Inocêncio III, uma nova versão da Carta foi assinada, com algumas cláusulas “adicionais” que protegiam os direitos dos nobres sobre seus súditos feudais, e reduziam as restrições dos poderes do Rei para cobrar impostos. Tudo como dantes, no quartel – ou melhor, no reino – d’Abrantes.

Mas uma frase espirituosa não pode encobrir a verdade dos fatos. E os fatos dizem que o mundo nunca mais foi como dantes. Assim como não se pode “desacontecer” o acontecido, nem “desfritar” um ovo, da mesma forma a Magna Carta legou ao mundo um novo patamar político, estruturado sobre leis escritas e dispositivos mais claros restringindo e distribuindo poderes e mandos. A César o que fosse de César, a Deus o que fosse de Deus.

No imaginário – e no vocabulário

Mede-se a importância de um evento pela sequência de outros que ele consegue desencadear. Ideias e ações têm consequências — e a Magna Carta de João Sem Terra disseminou seu exemplo por outras partes do mundo. Os casos mais notórios e mais diretos foram: a Revolução Inglesa, o conceito de Constitucionalismo e — exemplo mais pontual — a “Carta Magna” dos EUA, com suas notáveis Segunda e Quinta Emendas.

Falar da Revolução Inglesa (na verdade, houve pelo menos quatro “revoluções” entre meados do século XVI e o fim do século XVII) demanda um texto bem mais longo, recheado de nomes e datas. Mas Deus nos livre, leitor, dos textos enfadonhos! Por isso mais vale reter os pontos essenciais: seu caráter predominante, de restauração conservadora, bem diferente da mentalidade revolucionária dos franceses, que naquela mesma época instauravam uma curiosa modalidade de Justiça instaurada por guilhotinas. Já o apogeu da Inglesa (a chamada Revolução Gloriosa, de 1688) desenrolou-se sem sangue e sem conflitos – culminando na implantação de uma monarquia parlamentarista na Inglaterra, em que a religião e a política estavam ligados, mas cada uma da sua esfera.

O segundo item, o Constitucionalismo, é uma conquista revelante do Direito e das teorias políticas – um conceito que toma por parâmetro principal o ordenamento jurídico do Estado, e o estudo comparativo das Constituições: suas intenções, erros e acertos. Mais uma vez, o tema merece longos parágrafos e capítulos inteiros, o que não é o caso deste artigo. Aqui, basta acrescentar que o Constitucionalismo pressupõe a limitação do poder do Estado, e seu desenvolvimento se enraíza na gênese da Constituição dos Estados Unidos – que tem tudo a ver com nosso próximo tópico.

Aprovada em 1787, a Carta americana (primeira e até hoje a única do país) destaca-se pela durabilidade, mas também pela concisão: tem apenas sete artigos e 27 emendas, e, mesmo parcialmente contestada, continua em vigor. Se os Obamas e Bidens lançam uma névoa sombria sobre o horizonte liberal-conservador que ainda caracteriza os Estados Unidos, não se pode perder de vista que ela está longe de ser “letra morta” – e ainda conserva no DNA o espírito da Magna Carta: uma Lei que protege o cidadão contra ela mesma. Daí merecer destaque especial a afamada Segunda Emenda, que garante a posse e o porte de armas a qualquer cidadão, para que ele possa defender sua casa e sua família contra tudo e contra todos – inclusive, defender-se dos avanços do próprio Estado!

A Quinta Emenda não é menos famosa, e é sempre referendada nos diálogos banais de qualquer telefilme, quando o policial repete para o vilão que vai ser preso: “Você tem o direito de permanecer calado, etc. etc.” São estes os direitos intransponíveis que a Quinta Emenda estabelece contra o abuso da autoridade estatal: o julgamento pelo chamado “grande Júri”; o direito de permanecer calado e evitar a produção de provas contra si mesmo; o direito de ser julgado apenas uma vez sobre mesmos fatos; e ainda o direito à justa compensação por bens desapropriados. São conquistas fundamentais motivadas pela Magna Carta de João da Inglaterra, e que  Bidens e Obamas não podem revogar sem comprometer a própria sobrevivência do país. O mar da História é agitado, já disseram muitos poetas – mas há também bons ventos e calmaria. E navegar, afinal, é preciso!

Existe uma outra forma de se mensurar os efeitos de um acontecimento: sua capacidade de se incorporar ao vocabulário corrente de um idioma. E, neste sentido, ocorreu com a expressão magna carta um fenômeno semelhante ao de palavras como xerox e cotonete, gilete e maisena: de nomes próprios e marcas de produtos, tornaram-se substantivos comuns de uso diário, para além dos limites originais. Hoje a expressão define nos dicionários, na categoria “por extensão”, qualquer documento que limite poderes e regulamente direitos, deveres e privilégios.

(Em muitos casos, chega a ser um exercício de ironia ou deboche: por exemplo, chamar de Magna Carta nossa “Constituição-Cidadã” de 1988! Poucas vezes uma legislação presumidamente democrática impôs tantas restrições à livre iniciativa, à propriedade privada e as liberdades individuais.)

Mas não nos apressemos. Se tudo tem limites, o papel da Carta de João da Inglaterra também tem. E seria apressado e simplista afirmar que o mundo mudou essencialmente por causa dela. Porque o mundo, àquela altura, já havia mudado – e muito.

Civilização cristã: a Boa Nova que mudou o mundo

Certamente, a Carta de João da Inglaterra é um marco importante no conjunto de avanços civilizacionais do Ocidente. Mas precisa ser incorporada como é: um marco simbólico, num contexto mais amplo, do qual ela não é propriamente causa, mas um de seus frutos. E esta grandeza tem nome: o advento e incorporação vitoriosa do Cristianismo pelo Ocidente.

A cristianização da Europa – e, a partir dali, a de boa parte do mundo – é o verdadeiro marco inaugural de todas as iniciativas de limitação do poder do Estado. “O Cristianismo transformou a essência da condução do Estado, justamente porque não se ocupou dele”, sintetiza com talento exemplar o historiador francês Fustel de Coulange – e, na sequência, explica que a ação do Estado se tornou mais limitada porque a “alma da civilização” (ou seja, a própria ação humana) viu-se liberada para projetos mais elevados – e isso envolve toda a sociedade, governantes e governados. Nenhum empreendimento social ou moral, antes do Cristianismo, tornou o cidadão tão livre, justamente porque o valorizou como indivíduo.

Convenhamos: não é pouca coisa. Sobretudo levando-se em conta o enunciado surpreendente de outro historiador francês, Bertrand de Jouvenel, para quem o Poder não experimentou nenhuma redução significativa ao longo do tempo – pelo contrário, só fez crescer, desde o fim da Idade Média europeia. Considerado tradicionalmente como um princípio de autoridade necessário mas inimigo da liberdade, o Poder (que Jouvenel grafa sempre com P maiúsculo) passou a ser alardeado e defendido como “agente da própria liberdade”. “A transformação do Poder aconteceu de um jeito que fez desaparecer  toda e qualquer desconfiança em relação a ele. E esse crédito acumulado preparou a era das tiranias”.  Na mosca! A Revolução Francesa que o diga.

Juntando-se os dois enfoques (Coulange e Jouvenel), teremos um retrato mais completo: de um lado, o peso às vezes esmagador de um Poder em gradativa ascensão; de outro, o contrapeso corajoso do espírito do Cristianismo, a lembrar que a verdadeira riqueza e o Reino verdadeiro não são deste mundo. No entroncamento desse “duelo de titãs”, todos nós, e nossa pequena vida humana – que foi se tornando maior e melhor, à luz da verdade cristã.

Sem apelar a nenhum otimismo impertinente, arrisco dizer que as coisas poderiam estar muito piores sem o contraponto do Cristianismo. E é justamente neste sentido que se deve interpretar o famoso enunciado de Leibniz de que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”: não como um arroubo panglossiano, mas como o reconhecimento humilde da presença de um Criador que sabe o que está fazendo – e faz sempre o melhor. (Mas isso também já seria assunto para um outro artigo...)

No fim das contas...

Nunca é demais ressaltar: fiz aqui uma apresentação compacta dos acontecimentos que envolveram o episódio da Magna Carta de João da Inglaterra. Faltaria talvez acrescentar que, entre 1215 e o final do século XV, os sucessivos monarcas ingleses se comprometeram a cumprir a Carta, editando e assinando dezenas de atos complementares. Mas não considero simplista resumir o vasto painel histórico nestas pinceladas rápidas: afinal, o mais importante é o que a Magna Carta continua simbolizando, num mundo marcado pela capilarização do poder – fenômeno que o próprio Documento ajudou a desencadear.

“A tragédia deste mundo é que ninguém é feliz”, lamentou certa vez o físico e romancista norte-americano Alan Lightman. Mas, se algo o Cristianismo ensinou  (e ele ensina tantas coisas!), é que a Caridade deve ser a meta – e não a Felicidade. E não custa repetir, antes de terminar: a verdadeira riqueza e o Reino verdadeiro não são deste mundo. Talvez as coisas não estejam saindo como queriam os que ajudaram a plantar a semente bem-intencionada de um poder limitado pelas leis, de um Estado regulado pela eterna vigilância de homens livres. Mas, de um jeito ou de outro, a Igreja Católica se faz presente em todo o mundo, e conta com seu próprio ordenamento jurídico, autônomo e soberano (o Direito Canônico).

É bem verdade que, no horizonte pandêmico atual , as autoridades confusas e onipresentes dificultam as coisas, na hora de responder à eterna pergunta: “Afinal, quem manda?”. Um fiscal sanitário? Um distribuidor e máscaras e multas? O guarda da esquina? Mesmo assim (ou talvez justamente por isso), precisamos continuar nos lembrando do antigo e “magno” documento assinado pelo rei João da Inglaterra, mesmo que a contragosto. No fim das contas, o que importa é a própria ideia intangível de grandeza, e ela precisa permanecer como um ponto de referência – uma espécie de bússola, cuja agulha nos aponte sempre o Norte.

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