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Em sua cruzada contra o que considera “desinformação”, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu investir em um novo público: as crianças. O tribunal lançou uma cartilha com o intuito (no papel) de ensinar estudantes a respeito da Constituição. O material já está sendo distribuído.
A cartilha “Uma Aventura com a Constituição”, lançada recentemente, é fruto do "Programa de Combate à Desinformação do STF".
O livro tem a autoria Eduardo Jara, professor da Udesc (Universidade do Estado de Santa Catarina). A área dele não é o Direito: formado em Matemática e doutor em Administração, Jara escreveu sua tese de doutorado sobre o empreendedorismo para crianças.
O material da cartilha, escrito por Eduardo Jara, não resiste à tentação de fazer uma pregação ideológica sobre a “homofobia” e a “desinformação”.
Crianças que falam como adultos
O livro começa com um professor de Geografia (curiosamente parecido com Eduardo Jara) pedindo que os alunos preparem uma apresentação sobre "as regiões do Brasil, seus problemas, e como poderiam solucioná-los".
Os protagonistas são quatro cuidadosamente divididos em categorias étnicas diferentes: Cacá (negra), Yong (um asiático cadeirante), Jana (de ascendência indígena) e Dudu (um menino loiro). A turma também tem um cachorro de estimação, criativamente batizado de Caramelo.
Dudu está preocupado porque não sabe como completar o trabalho encomendado para o professor. Cacá tenta acalmá-lo e sugere uma solução: caminhar até a Praça dos Três Poderes.
Já em frente à estátua que representa a Justiça, na entrada do STF, Jana revela ter parentes indígenas que precisam se preocupar… com as terras indígenas. “Eu tenho uns tios-avós que são do povo Txikiyana lá do Parque do Tumucumaque, no Pará. Volta e meia eles têm que se preocupar com as terras indígenas. Isso me parece um grave problema!”, diz ela.
Este é um problema recorrente do livro: crianças que falam como adultos e adultos que soam como adultos imitando crianças. Em outra passagem, Cacá afirma: “Pessoal, parece que há, de fato, muitas injustiças no Brasil.”
Estátua da Justiça ganha vida
Na história, enquanto os alunos discutem o trabalho de Geografia diante do STF, a estátua da Justiça ganha vida e se afirma ser a deusa grega Têmis. Em seguida, ela apresenta às crianças sua amiga: a Constituição, que também tem capacidade de falar. “Sou a norma mais importante de um país. É a partir dos meus textos que todas as pessoas se organizam em torno da nação, pois neles se definem direitos e deveres”, a Carta Magna anuncia.
Na página 20, o livro traz um resumo importante da divisão dos poderes: o Legislativo faz as leis, o Executivo aplica as leis e o Judiciário "julga se as leis são cumpridas".
Em uma frase truncada, o Supremo Tribunal é apresentado como um representante de tudo que é bom e belo. "É nesta Casa que se defende a Constituição e onde garantimos o pleno exercício da democracia, dando ao povo a tranquilidade de acesso aos seus direitos garantindo a preservação de nosso belíssimo e rico meio ambiente, incluindo nossas plantas e animais, né Caramelo?”, indaga a Constituição, que tem olhos e boca, mas não nariz ou ouvidos.
Caramelo não responde.
Oficina com crianças
A nova publicação do STF já está sendo distribuída. Na semana passada, 40 crianças de uma escola municipal de Florianópolis participaram de uma oficina na qual receberam as cartilhas e discutiram o conteúdo do livro. O evento foi uma iniciativa da Udesc.
Antes disso, em 30 de outubro, alunos de escolas públicas de Itabira (MG) visitaram o STF e receberam cópias da cartilha. Os estudantes tinham entre nove e 15 anos de idade.
Segundo a Udesc, o projeto também vai virar filme em breve.
O desfecho: contra a homofobia e a desinformação
Depois de se apresentar às crianças, a Constituição se transforma em um tapete mágico e leva os estudantes para sobrevoar todas as regiões do país. “Têmis enviou um feixe de luz que iluminou a cabeça dos tripulantes e eles puderam entender com maior clareza os graves problemas que prejudicam o país: desmatamento, queimadas, bullying, escolas superlotadas, falta de vagas em hospitais, pobreza, má distribuição de renda, falta de acessibilidade para pessoas com deficiência, racismo, homofobia, fome, violência…”
No desfecho do livro, Cacá — agora plenamente educada sobre seus direitos constitucionais — ensina uma lição aos colegas durante a apresentação do trabalho: “Combatendo a desinformação e trabalhando juntos em prol de justiça e cidadania, poderemos melhorar a condição de vida de todos os brasileiros e brasileiras, incluindo as plantas e os animais!”
O professor dá nota dez para a apresentação dos alunos. Caramelo, a Constituição falante e a estátua da Justiça observam discretamente pela janela da escola. A frase final é um apelo à emoção: "Ninguém reparou, mas uma lágrima de emoção caiu do olho da estátua". Fim da história.
A reportagem da Gazeta do Povo procurou a Udesc e o STF para comentar o conteúdo da cartilha, e ainda aguarda resposta.
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