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Cartaz com o rosto da jovem salvadorenha Beatriz, falecida em 2017, durante uma conferência em San Salvador, capital de El Salvador.
Cartaz com o rosto da jovem salvadorenha Beatriz, falecida em 2017, durante uma conferência em San Salvador, capital de El Salvador.| Foto: EFE/Rodrigo Sura

A Corte Interamericana de Direitos Humanos deve votar em breve um caso que pode ter consequências importantes para a discussão sobre o aborto no continente.

O processo teve origem em El Salvador, ainda em 2013. Conhecido como “Caso Beatriz”, o episódio envolve uma jovem que teve negado um pedido de autorização para abortar sua filha diagnosticada com anencefalia (a ausência do encéfalo, a parte mais importante do cérebro). A premissa original da petição era a de que o aborto era necessário para salvar a vida da mulher. O aborto não aconteceu e a mulher só morreu quatro anos depois, após um acidente de trânsito. Ainda assim, ongs feministas transformaram Beatriz em um símbolo e tentam usar um caso raríssimo para forçar a legalização da prática no continente.

Beatriz (um pseudônimo adotado para manter o anonimato da mulher) era portadora de lúpus, doença autoimune que aumenta os riscos da gestação. Ela já havia engravidado anteriormente e dado à luz a um bebê prematuro e com problemas de saúde. Por causa de sua doença, a jovem sofria com dores e feridas pelo corpo. Segundo a família, a situação se agravava com a gestação.

Adotada por grupos feministas, Beatriz — que vivia na pobreza em uma área rural de El Salvador — pediu à Corte Suprema de Justiça de El Salvador para realizar um aborto, com o argumento de que a continuidade da gestação traria riscos à vida da jovem. Mas, depois de solicitar uma análise de peritos médicos sobre o caso, o tribunal negou o pedido.

Os profissionais de saúde acabaram realizando uma cesárea quando a gestação estava em 26 semanas. A bebê — que recebeu o nome de Leilani — viveu por cinco horas.

Beatriz sobreviveu ao parto, mas morreu em 2017 depois depois de um acidente de trânsito. As ongs pró-aborto têm usado a tragédia a seu favor, afirmando que a gestação não-interrompida fragilizou a saúde dela e contribuiu indiretamente para a morte da jovem. Não há evidências disso.

O caso Beatriz é importante porque, se a corte decidir que negar o aborto é uma violação aos direitos humanos da mulher, países com leis pró-vida podem ser punidos pelo tribunal.  Esta é a primeira vez que o tribunal analisa um caso assim.

Caso não era de vida ou morte

O caso Beatriz chegou à corte no começo do ano passado, encaminhado pela CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos). A comissão afirma que o governo de El Salvador não promoveu uma resposta adequada às suas recomendações neste caso, e decidiu levar o caso à corte Interamericana de Direitos Humanos. A petição requer que El Salvador indenize a família de Beatriz e legalize o aborto “pelo menos” nos casos similares ao de Beatriz. Além disso, pede que o país adote leis e políticas públicas para “garantir que o acesso ao aborto seja efetivo.”

A comissão a corte são níveis distintos, embora ambos estejam sob o guarda-chuva da OEA (Organização dos Estados Americanos). A primeira tem o poder de emitir recomendações, mas apenas a segunda pode decidir por sanções.

Nesta semana, a corte realizou audiências públicas que, juntas, chegaram a dez horas de duração. Os dois lados do debate apresentaram seus argumentos.

Julissa Matilla Falcón, relatora dos direitos para as mulheres da CIDH, disse que na audiência pública de quarta-feira (22) que o caso é emblemático: "Este caso envolve questões de ordem pública interamericana. Será o primeiro em que a nobre corte poderá se pronunciar sobre a convencionalidade da proibição voluntária da interrupção da gravidez, em particular em caso de riscos à saúde, vida e integridade da mulher, e quando existe uma inviabilidade do feto”, ela disse. Julissa admitiu que, no caso de Beatriz, havia a “probabilidade” (e não a certeza) de morte materna caso a gestação não fosse interrompida.

Ouvida pela corte, a mãe de Beatriz admitiu que a filha sabia dos riscos de engravidar pela segunda vez mesmo sendo portadora de lúpus. Exibindo um lenço de um grupo feminista, a mulher afirmou que sua filha tomou a decisão de não se esterilizar depois da primeira gestação porque imaginava que seu primeiro filho, que nasceu com problemas de desenvolvimento, não iria sobreviver por muito tempo.

A lei de El Salvador proíbe o aborto em todos os casos, mas um protocolo do Ministério da Saúde autoriza a prática em casos emergenciais em que a vida da mãe está em risco e não há viabilidade para o bebê.

Depois da mãe, o tribunal ouviu Guillermo Ortiz, médico que acompanhou Beatriz e que criticou a legislação de El Salvador. Para ele, casos como o dela são problemáticos porque a lei do país não dá flexibilidade para que os profissionais de saúde ajam de acordo com o que eles acreditam ser o cenário mais provável. Neste caso, ele acreditava que Beatriz morreria — uma suposição que se mostrou equivocada.

A corte também ouviu Rafael Barahona Castaneda, outro médico disse que atuou no caso. Ele negou que a situação exigisse um aborto para salvar a vida da mãe. "O lúpus eritematoso sistêmico que Beatriz tinha esteve controlado totalmente com medicamentos durante toda a segunda gravidez”, ele afirmou. Castaneda acrescentou que a jovem não teve falha renal ou pré-eclâmpsia durante a gestação. "A vida da Beatriz na segunda gestação nunca esteve em risco", disse ele.

O tribunal também ouviu dois especialistas externos: um convocado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e o outro pelo governo de El Salvador, que defende na causa a legislação que proíbe o aborto no país. Isabel Cristina Caramillo Sierra, professora na American University, em Washington, afirmou que os direitos de Beatriz foram violados. Indagada pela representante do governo de El Salvador se o bebê em gestação é um ser humano, ela tentou se esquivar: "Essa é uma pergunta que ainda está em aberto, e eu não creio que seja relevante para a discussão." Depois que a advogada salvadorenha Juana Acosta insistiu, Isabel disse que o embrião é uma vida humana, mas não uma pessoa.

"A vida humana em gestação é vida humana em gestação. É humana, é vida, mas dali concluir que é pessoa nos termos da Convenção Americana… creio que essa mesma corte (...) concluiu que não é a mesma proteção, e que portanto a expressão 'pessoa' se reserva para outras circunstâncias", ela disse. No entanto, o Artigo 1º do Pacto de São José da Costa Rica, no qual a Corte Interamericana de Direitos Humanos se baseia, afirma diretamente que “pessoa é todo ser humano.”

Também ouvido pelo tribunal, um professor de Direito da Universidade de Notre Dame, no estado americano de Indiana, afirmou que todos os seres humanos, sem distinção, merecem proteção igual de seus direitos fundamentais. Segundo Paolo Carozza, "sem essa base estável, os direitos humanos se tornariam ilusórios e arbitrários, pertencendo apenas àqueles seres humanos cujos valores já são reconhecidos e não àqueles cujo valor é ignorado e rejeitado por quem detém o poder."

O professor também rebateu a tese de que a palavra final em casos de natureza ética como o de Beatriz deve ser dada por cientistas. "Não é a ciência que nos diz que a vida humana é valiosa. A ciência não tem nada a dizer sobre o valor de uma vida humana. A ciência não pode nos dizer que uma criança que sobrevive apenas algumas horas fora do útero não tem valor ou dignidade”, afirmou.

A advogada  Juana Acosta, em nome do governo de El Salvador, afirmou que os direitos da mulher e da criança são equivalentes, e que o pedido da Comissão Interamericana de Direitos Humanos pretende impor uma visão que destruiria esse equilíbrio. "Não só se pretende eliminar um dos lados dessa balança, mas também dar ao tribunal internacional um papel que não tem”, criticou.

Na fase final da audiência, os representantes dos dois lados também responderam perguntas dos juízes.

As partes têm até 24 de abril de 2023 para apresentar suas alegações finais por escrito. Depois disso, os membros do tribunal devem redigir seus votos.

Nos últimos anos, organizações abortistas têm feito uma ofensiva pela legalização na América Latina. Elas obtiveram vitórias na Argentina (2020), no México (2021) e na Colômbia (2022). Já no Chile, a maior parte da população rejeitou no ano passado o texto de uma nova Constituição que ampliaria os casos de aborto legal.

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