Durante o Carnaval, a cantora Claudia Leitte, um dos principais nomes do gênero musical axé, foi alvo de críticas nas redes sociais e nos portais de notícias brasileiros após um vídeo antigo seu alterando a letra de uma música por motivos religiosos "viralizar", dando ensejo a acusações de suposta intolerância religiosa.
O crítico musical Mauro Ferreira escreveu em sua coluna no portal G1 um texto com o seguinte título: "Intolerância religiosa de Claudia Leitte vem à tona com exposição de vídeo". Ferreira ainda escreveu: "Ação lamentável em todo e qualquer época ou lugar, mas sobretudo na Bahia, terra embasada no sincretismo religioso. Salve Iemanjá e todos os santos e orixás da Bahia!"
A canção em questão chama Caranguejo e foi composta em 2004 por Alan Moraes, Durval Luz e Luciano Pinto, integrantes da banda Babado Novo, da qual Leitte era vocalista. Em um dos trechos da música, retirado do DVD Axemusic de 2014 do grupo, a artista muda o último verso “Saudando a rainha Iemanjá”, que faz menção a uma divindade nas religiões de matriz africana, para “Só louvo meu rei Yeshua”, palavra hebraica que em tradução para o português significa “Jesus”. Claudia já declarou em entrevistas anteriores ter se convertido ao cristianismo.
Um dos motivos que levaram a regravação, divulgada há dez anos, a ser ressuscitada foi outra discussão no campo religioso em pleno carnaval de Salvador: a de Baby Brasil e a artista Ivete Sangalo. Baby, que se tornou evangélica e fundou uma igreja, fez um apelo sobre os fins dos tempos em cima de um trio elétrico. Em resposta, Ivete afirmou que não iria deixar o apocalipse acontecer, antes iria “macetá-lo” (em alusão ao seu novo hit Macetando).
Para o professor da Faculdade Presbiteriana Mackenzie de Brasília, Júnio Cezar da Rocha Souza, mestre em filosofia, é um equívoco utilizar a qualificação do termo intolerância religiosa no episódio em questão. "Me parece que não se enquadra na definição. Se regressarmos na história, a intolerância se mostra diretamente vinculada a questões envolvendo agressão, desrespeito, afrontamentos por causa de manifestações religiosas de determinado indivíduo", explica.
Souza cita uma obra do século XVIII, de Voltaire, para exemplificar como o assunto era tratado. "O autor escreveu um texto em 1762 chamado Tratado sobre a Tolerância, narrando o caso de um comerciante de tradição protestante acusado de assassinar o próprio filho que foi encontrado morto. A partir desse fato, a população o acusou de ter matado o garoto por motivos religiosos, visto que o filho havia se convertido ao catolicismo. Então, ele foi condenado por um crime calvinista, descobrindo-se posteriormente que o rapaz havia se suicidado. Isso nos mostra como este tema é tratado há séculos na filosofia e está ligado a agressões e afrontamentos por causa da religiosidade".
O professor de ensino religioso e ética da Mackenzie defende que o caso de Claudia Leitte alterando uma palavra da canção Caranguejo não se aplica ao tópico da intolerância religiosa, uma vez que não há nenhum sinal de não aceitação da religião do outro no episódio discutido.
"Vejo que há muitas pessoas que usam precipitadamente esse termo, como uma tentativa de dar uma feição monumental a algo que não condiz. A meu ver, não é possível sustentar uma crítica no campo religioso somente pela modificação do termo iemanjá, talvez isso proceda no campo jurídico por outros motivos", destacou.
Amelia Sampaio Rossi, advogada e professora do curso de Direito da PUC Paraná, lembra que o Brasil permite a prática das mais variadas formas de manifestação religiosa, por ser um Estado laico. "Nosso país permite as mais variadas expressões de dogmas religiosos e tudo isso está plenamente protegido pela Constituição, em seu artigo 5º. O estado brasileiro não possui uma religião, então há uma neutralidade religiosa nesse sentido", explica.
Por outro lado, afirma a especialista, que é doutora em Direito, o Estado é obrigado a proteger a liberdade de qualquer pessoa de expressar suas convicções religiosas. "Temos legislação nesse sentido no Brasil. Por exemplo, em 2023, foi sancionada a Lei 14.532, que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, determinando um dispositivo específico para tratar sobre intolerância religiosa. No estado de Goiás também temos a Lei 20.451, cuja finalidade é desenvolver, dentro do ambiente escolar, projetos acerca desse e outros temas".
Segundo Rossi, o que define no meio jurídico a intolerância religiosa são sinais de violência física ou moral por causa da religião. Nesse sentido, ela entende que o caso da cantora Claudia Leitte não se enquadra nessa situação. "No direito, a liberdade religiosa existe e é ampla aos indivíduos, mas não é absoluta, porque sempre existirão limites impostos por outros direitos. Por sermos um país laico, há proteções constitucionais e outros dispositivos que impõem a tolerância a qualquer religião".
Para a especialista do Direito, de acordo com o que define o ordenamento jurídico, a cantora Claudia Leitte possui a mais ampla liberdade religiosa para expressar suas convicções e não cometeu intolerância no caso debatido nas redes sociais. "Me pareceu algo desrespeitoso por parte da cantora, em função de que substitui uma entidade pela perspectiva evangélica, mas ela não cometeu intolerância por isso", opinou a jurista.
A professora destaca que não há, em um primeiro momento, espaço para a acusação de intolerância religiosa. Contudo, a cantora de axé pode se enquadrar em outras questões, como a de direitos autoriais. "A modificação da letra me parece, a princípio, uma violação a direitos autorais, hipoteticamente, caso não haja autorização dos autores da canção para a modificação da letra. Pode ser que ela tenha autorização, isso teria que ser verificado. A Lei 9.610 regula sobre direitos morais do autor, uma proteção à integridade de sua obra, que não permite modificações, sem a devida autorização. Caso a música esteja em domínio público, não há problema em modificá-la", explicou.
Rossi menciona que, no Brasil, os registros de intolerância religiosa são mais frequentes em religiões de matriz afro. "No entanto, isso pode ocorrer contra qualquer outra expressão religiosa".
A assessoria de Claudia Leitte foi contactada para a reportagem pela Gazeta do Povo, mas não houve retorno até o momento da publicação. O espaço continua aberto para possíveis atualizações.
Outros artistas que também modificaram músicas por motivos religiosos
Joelma - A ex-integrante da banda Calypso, que agora segue em carreira solo, mudou a letra da canção "Príncipe Encantado", lançada em 2022, após se converter ao cristianismo.
Os versos originais da canção diziam: "Tentando desvendar os seus mistérios / Um copo sobre a mesa de Quijá, bola de cristal e cartas de baralho", fazendo alusão à bruxaria. Depois da conversão, o trecho foi trocado por: “Tentando desvendar os seus mistérios / Quem sabe um sonho possa me mostrar / ou mesmo que meu coração fique em pedaços”.
Roberto Carlos - o cantor mudou a letra de alguns de suas clássicas canções por motivos religiosos: "É preciso saber viver", "Custe o que custar" e "Além do Horizonte" são algumas delas.
Na primeira, o rei da música romântica modificou o verso “Se o bem e o mal existem / Você pode escolher” por “Se o bem e o bem existem / Você pode escolher”. Já na Na música "Custe o que custar", que dizia "Será meu Deus, enfim, que eu não tenho paz?", entrou "Somente em Deus, enfim, é que eu encontro a paz".
Em "Além do horizonte", o verso original "De que vale o paraíso sem amor" foi alterado por "pois só vale o paraíso com amor".
Tim Maia - O cantor se converteu à doutrina filosófico-religiosa Cultura Racional e a partir disso também passou a cantar suas músicas com esse viés.
Suas principais marcas eram se vestir de branco, como parte da seita, e mudou todas as letras de suas canções que seriam lançadas a partir da nova perspectiva. As músicas, que estão nos dois volumes do disco "Tim Maia Racional", passaram então a exaltar sua nova visão religiosa.
Simone e Simaria - a antiga dupla sertaneja foi criticada certa vez por não cantar a música completa "Quero ser feliz também", da banda Natiruts, por menções à Iemanjá. À época, Simaria justificou ao portal UOL que não sabia continuar a letra da canção.
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