Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
opinião

Catherine Deneuve e a diferença feminista francesa

Catherine Deneuve esteve entre as centenas de mulheres que assinaram uma carta pedindo uma perspectiva mais sutil no combate ao assédio sexual do que a defendida pelo movimento #MeToo | JEAN-FRANCOIS MONIER/AFP
Catherine Deneuve esteve entre as centenas de mulheres que assinaram uma carta pedindo uma perspectiva mais sutil no combate ao assédio sexual do que a defendida pelo movimento #MeToo (Foto: JEAN-FRANCOIS MONIER/AFP)

Se há tempos os norte-americanos nutrem um certo fascínio pelas francesas e sua atitude em relação a questões como amor e sexo, a forma como os EUA encaram o sexo, seus códigos sexuais e as relações entre homens e mulheres intrigam os observadores franceses. Simone de Beauvoir não era exceção.  

Em "A America Dia a Dia", que ela escreveu durante sua estadia naquele país, em 1947, a autora observou as mulheres locais com uma perplexidade que ainda molda as relações femininas entre ambos os lados do Atlântico.  

"A mulher norte-americana é um mito. Geralmente é vista como um louva-a-deus predador que arranca a cabeça do parceiro. A comparação é correta, mas incompleta", escreveu.  

Nos EUA, de Beauvoir sentiu que havia uma parede de vidro invisível entre homens e mulheres, coisa que não achava existir na França. "A maneira como as norte-americanas se vestem é violentamente feminina, quase sexual." E falavam sobre os homens com uma animosidade quase explícita: "Um dia fui convidada para um jantar exclusivamente feminino – e pela primeira vez na vida me vi em um evento que não parecia ser só para mulheres, mas sim -sem homens-. As norte-americanas sentem desprezo pelas francesas, sempre dispostas a agradar seus homens e a aceitar seus caprichos – no que elas geralmente têm razão –, mas a tensão com que se mantêm em um pedestal moral revela uma grande fraqueza."  

Mais tarde, escreveria aquela que é considerada a bíblia feminista do século XX: "O Segundo Sexo" – e suas obras, assim como sua vida amorosa movimentada (que, notoriamente, incluiu casos com seus estudantes, homens e mulheres), continuam a moldar a interpretação das feministas francesas de hoje.  

"Estamos falando da destruição de toda a ambiguidade e o charme das relações entre homens e mulheres", explicou a escritora Anne-Elisabeth Moutet, que foi quem assinou a carta, para a BBC. "Somos francesas, acreditamos em áreas cinzentas. Os EUA são um país diferente; lá, as coisas são no preto e branco, mas fazem computadores muito bons. Não achamos que as relações humanas devam ser tratadas dessa forma." As palavras de Moutet se pareciam com as de de Beauvoir:

"Nos EUA, o amor é retratado quase que através de termos higiênicos. A sensualidade é aceita somente de forma racional que, por sinal, é uma outra forma de negá-la."  

Como os EUA, a França está envolvida no escândalo Harvey Weinstein, mas de maneira diferente. A princípio, muitas atrizes, como Léa Seydoux, começaram a compartilhar suas histórias publicamente; logo em seguida, depois de a campanha #MeToo estourar no Twitter, a equivalente francesa, #BalanceTonPorc (Denuncie Seu Agressor), ganhou fama e, já de cara, se mostrou extremamente popular. Mulheres de todas as classes sociais, ideologias e profissões passaram a delatar os predadores sexuais e a inundar o Twitter com os nomes de antigos colegas e/ou chefes que as assediaram. Resultado: os homens foram suspensos ou despedidos.  

Aí então, depois de algumas semanas, o tom começou a mudar. Os intelectuais começaram a externar sua preocupação com as denúncias e o fato de elas terem ido longe demais. Deneuve, em entrevista na TV, declarou: "Obviamente não defenderei Harvey Weinstein; nunca lhe tive muita consideração. Sempre achei que havia algo perturbador nele." Entretanto, confessou-se extremamente chocada "com o que está acontecendo nas redes sociais. É tudo muito excessivo." E não foi a única. 

Teve alguma coisa nas demonstrações recentes de sororidade norte-americana, registrada na capa da revista Time, e na cerimônia do Globo de Ouro, à qual as mulheres compareceram de preto, como pin do "Time-s Up", que parece ter insuflado a irritação gaulesa. Na carta desta semana, as autoras se revelaram temerosas de que a "patrulha do pensamento" estivesse à solta e que qualquer um que discordasse fosse chamado de "cúmplice" e "traidor". Ressaltaram o fato de serem mulheres, e não crianças que precisam de proteção. Mas também teve a seguinte frase:

"Não nos reconhecemos nesse feminismo que parece odiar os homens e a sexualidade."  

Podem chamar de clichê se quiserem, mas a nossa cultura encara, para o bem e para o mal, a sedução como um jogo inofensivo, e isso vem dos tempos medievais do "amour courtois". O resultado é um tipo de harmonia entre os sexos tipicamente francesa. Isso não significa que o sexismo não exista na França; é claro que há. Tampouco quer dizer que não desaprovamos atitudes como a de Weinstein. Entretanto, desconfiamos de tudo que possa perturbar essa harmonia.  

Feminismo francês

Há vinte e poucos anos surgiu um novo feminismo francês, importado dos EUA, denunciando esse tipo pouco natural (para nós) de paranoia anti-homem que de Beauvoir descreveu – e assumiu a forma do #MeToo, essa mesma expressão de feminismo que vem denunciando a carta de Deneuve. Hoje em dia, as francesas também organizam a noitada feminina que de Beauvoir achava tão estranha.  

Quando "A America Dia a Dia" foi publicado, as norte-americanas ficaram escandalizadas. A escritora Mary McCarthy detestou o livro. "Mademoiselle Gulliver en Amérique, que desceu do avião como quem sai de uma nave espacial, usando óculos metafóricos, empolgada feito uma menininha para provar as delícias desta civilização lunar materialista."  

Sob vários aspectos, de Beauvoir virou alvo fácil de desprezo e da gozação, pois escrevia em um estilo direto, autoritário e confiante que pode parecer arrogante aos leitores não acostumados com sua franqueza – mas a reação "alérgica" do outro lado do Atlântico, tanto a de Beauvoir como a essa carta, pode, de fato, destacar a dureza da crítica francesa. Para muitos de nós, ela bem poderia ter escrito esse trecho ontem: "Nos EUA, homens e mulheres parecem estar em pé de guerra permanente. A impressão é a de que eles não se gostam muito; parece não poder existir uma amizade genuína entre os dois. Desconfiam um do outro, não se tratam com generosidade. Seu relacionamento é geralmente composto de pequenas vergonhas, disputas menores e triunfos de vida curta."  

(*Agnès Poirier, escritora e comentarista política, é autora do ainda inédito "Left Bank, Arts, Passion and the Rebirth of Paris 1940-1950".)  

The New York Times News Service/Syndicate – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.