Há um temor de que a inclusão do “leitor sensível” resulte na pasteurização da literatura, que perderia o seu caráter provocativo para reforçar pautas minoritárias, como se o papel da arte fosse exclusivamente educativo| Foto: DAMIEN MEYER/AFP

reportagem da FolhaPress do último final de semana a respeito dos “leitores sensíveis” — pareceristas contratados por casas editoriais com a finalidade de identificar possíveis causas de boicotes por minorias a obras publicadas — polarizou opiniões entre dois grupos distintos de leitores (que normalmente não se encontram): os que acham que já tinha passado da hora de adotarem cuidados desse tipo em publicações contemporâneas e os que solenemente taxaram a coisa de censura. Ambos estão errados. 

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Ora, um texto que se proponha a jogar uma luz mínima em um debate que nem deveria ser tão polêmico estará fadado a repetir obviedades que, contudo, parecem precisar de lembrança.

Conceitos ultrapassados

Vamos à primeira delas, portanto: para além do diletantismo e da paixão pela arte, editoras são empresas que precisam de consumidores como qualquer outra. Nesse sentido, cada casa adota a estratégia empresarial que melhor lhe aprouver. Há quem acredite que ofensas e polêmicas vazias vendam bem, e há quem defenda que um cuidado com o psicológico do leitor pague as contas e gere credibilidade. No campo teórico da livre competição, o mercado tratará de estabelecer naturalmente quem ainda terá espaço nas prateleiras e quem será enterrado junto com suas decisões erradas. 

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Contudo, parte intrínseca da edição séria de livros consiste em não apenas separar o joio do trigo em termos estilísticos, mas também barrar o autor sem noção que retrata a realidade de acordo com conceitos ultrapassados, estereotipados ou simplesmente idiotas. Como a liberdade de expressão se tornou uma pauta imediatamente associada à direita conservadora ao mesmo tempo em que a liberdade de crítica se tornou uma bandeira da esquerda é outra história, mas o fato é que se o crivo do editor passar a ser considerado uma censura, essa censura precisaria estar ligada a um poder opressor maior do que a questão de vender ou não vender livros. Não é o caso. 

De acordo com a repórter Amanda Ribeiro Marques, o “leitor sensível” geralmente faz parte de alguma minoria que vem sendo sistemática e erroneamente retratada na literatura, de acordo com a pauta politicamente correta. Pois bem, sua entrada na balança editorial indica pelo menos duas coisas: a primeira é que o mercado de livros não é composto por tais minorias, caso contrário não haveria necessidade de terceirizar o serviço; a segunda é que o parecer literário, como nós o conhecemos, também não se basta mais sozinho. Ambos são diagnósticos terríveis, mas não podem indicar uma falência da qualidade literária de nosso tempo. 

Pasteurização

A teoria do espelho, do escritor francês Stendhal, sobrevive ao tempo pela sua simplicidade. Diz ele que, assim como um espelho em uma carroça se destina a mostrar a paisagem, seja ela bonita ou feia, a literatura meramente reflete sua sociedade. Dito isso, há um temor de que a inclusão do “leitor sensível” resulte em uma pasteurização da literatura, que perderia o seu caráter provocativo e dialógico para reforçar pautas minoritárias, como se o papel da arte fosse única e exclusivamente educativo. Um temor justificável, se levarmos em consideração alguns feitos recentes em nome do politicamente correto. 

O sucesso de séries pedagógicas e desastrosamente medíocres em dramaturgia, como Os 13 Porquês e Cara Gente Branca, mostra que uma parte considerável do público, entre o didatismo e o dialogismo, não hesita em escolher o primeiro. O que pode ser dito de maneira mais precisa é que movimentos dessa natureza refletem para o campo da arte a criação dos “safe zones” — os espaços seguros que ganham força nas universidades dos Estados Unidos e Inglaterra, onde não é permitido o uso de certos termos e a abordagem de certos assuntos. 

Não é necessário um purista para defender a catástrofe de tal comportamento para uma arte que se sustenta quase que exclusivamente na circulação de ideias – principalmente se não esquecermos que a escolha da linguagem também faz parte da ideologia do autor.

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Politicamente correto

O banimento por parte de escolas do estado norte-americano da Virgínia de obras como “O Sol é Para Todos” e “Huckleberry Finn”, de Harper Lee e Mark Twain, respectivamente, devido à linguagem sensível aos alunos, indica uma rejeição de toda obra que não condiga com a moralidade dos tempos atuais, por maior que seja o seu cacife cultural. 

Pode parecer que, no fundo, tudo se resume a uma opinião prevalecendo sobre outra, mas enquanto a abordagem pedagógica em relação a tais obras possa e deva ser amplamente discutida, a crítica literária guarda para si o papel de conservação artística do cânone, e não leva em consideração qualquer reivindicação moral sobre os títulos. Podemos imaginar a catástrofe caso algum dia os especialistas dessem uma de Pôncio Pilatos e jogasse pra galera. Muito provavelmente Os 120 Dias de Sodoma, do Marquês de Sade, não seria tão imortalizado quanto uma cartilha bíblica e a autora de Crepúsculo poderia concorrer ao Man Booker Prize. 

Porém, aos que estão preocupados com a tal censura, fiquem tranquilos: o mais provável é que o “leitor sensível” se restrinja a obras desde já voltadas para o tal público que ele se propõe proteger, e dificilmente uma editora séria dispensaria o próximo Philip Roth por ser excessivamente grosseiro ou descrever um maníaco sexual machista com empatia. Afinal de contas, o Philip Roth atual já faz tudo isso e sua torcida anual para o Nobel só aumenta. No mais, é saudável que autores se preocupem em escrever com empatia e evitem boicotes às suas próprias obras e grupos minoritários se sintam bem representados nas artes. Se serão bons livros ou não, o politicamente correto não terá nada a ver com isso.