Os que odeiam Trump são incapazes de perceber as diferenças entre sua administração e as mentiras do Império Soviético| Foto: Divulgação

O Poderoso Chefão visto pela esquerda não é o mesmo filme visto pela direita. Uma grande obra de arte pode parecer diferente de acordo com a lente através da qual vemos o mundo. O mesmo se dá com a brilhante série Chernobyl, da HBO. Ela disseca todas as coisas soviética, embora muitos, inclusive seu criador, considerem a produção também um alerta contra algo bem distante do comunismo: o trumpismo.

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Impossível não elogiar entusiasmadamente Chernobyl. A minissérie em cinco episódios de Craig Mazin é um magistral suspense dirigido com a ferve nervosa de Johan Renck: uma história de detetive cujos personagens voltam no tempo para tentar entender as causas da catástrofe de 1986 e também um mistério que avança no tempo, à medida que os especialistas tentam encontrar uma forma de salvar milhões de pessoas da morte. É uma lição empolgante sobre os detalhes da energia nuclear que entrelaça habilmente os reinos do diálogo expositivo e técnico sem jamais prejudicar a dramaticidade.

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Tangencialmente, a minissérie flerta com o humor negro kubrickiano: A frase “são apenas 3,6 roentgens” deve entrar para a história como símbolo de qualquer esforço absurdo para se menosprezar más notícias. Chernobyl é um drama humano extraordinariamente comovente: o líder dos mineiros, com o rosto coberto de fuligem, é um arquétipo de todos os trabalhadores sofridos e corajosos que, ao longo da história, tiveram de pôr a vida em risco para corrigirem erros cometidos por seus superiores letrados. A forma como Mazin expressa a complexidade da situação num diálogo forte é uma maravilha. E acima de tudo isso está a principal qualidade de Chernobyl: a exposição devastadora que ela faz de um gigantesco fracasso político.

A referência anti-Trump que Mazin e outros veem na série não surpreende, quando se vê seus antecedentes, mas essa análise sobre de uma ideia fixa ou de uma visão estreita — uma miopia conceitual que exclui as forças de equilíbrio da Era Trump. O que aqueles que odeiam Trump veem em Chernobyl é isso: assim como a burocracia soviética, Trump é hostil à verdade e não recua nem quando lhe dizem que ele está errado. De acordo com a caricatura da esquerda, Trump também se opõe perigosamente à ciência e à razão. Ele é supostamente o negacionista teimoso que não reconhece a Cherbobyl em câmera lenta que é o aquecimento global. Trump é o engenheiro que diz que o reator 4 não poderia ter explodido porque essa é sua opinião e nenhum fato é capaz de mudar isso, nem mesmo depois que as provas caem do céu ao seu redor. Trump é o velho camarada do partido dizendo para seus subordinados se calarem e que a prioridade é não permitir que as pessoas digam a verdade. Trump é o político sem qualificação nenhuma que acaba repreendido por uma cientista determinada: “Eu sou uma física nuclear. Antes de ser vice-secretário você trabalhava numa fábrica de sapatos”. Sim, responde o homem, “eu trabalhava numa fábrica de sapatos. Agora quem manda sou eu”.

Problemas com a verdade

Trump tem lá seus problemas com a verdade, mas isso não vem ao caso, porque a diferença epistemológica entre Trump e a era soviética é gigantesca. A união Soviética era um sistema de mentiras, um império de mentiras que durou somente porque contava com a garantia do terror. A mentira era algo eficiente na URSS. Trump, por outro lado, não ameaça ninguém para que ele repita sua versão da realidade, exceto por um punhado de apadrinhados, e a única coisa que eles temem é perder seus empregos. A mentira não só é ineficiente para Trump como também lhe causa – a ele, não ao país – danos consideráveis. Ele não criou, e não seria capaz de criar, um sistema de mentiras. Ele não gosta, para usar um exemplo que salta aos olhos, de poder dizer a Jim Acosta o que o jornalista pode falar a seu respeito. O Partido Comunista não tinha esse problema. Depois de Chernobyl, ele não tinha nem de se preocupar se a televisão estatal ia transmitir uma mensagem que o Comitê Central talvez desaprovasse.

A União Soviética da série, retratada com uma absurda gravidade e uma direção de arte fascinantemente detalhada, não é nada parecida com os sempre beligerantes e autoquestionadores Estados Unidos da América, na Era Trump ou qualquer outra. Os EUA contam com a garantia não só da separação dos poderes, mas também de liberdade que geram instituições não-governamentais concorrentes que exercem muita influência e poder. A imprensa e a cultura são livres para confrontar Trump e — você não percebeu ainda? — elas o fazem. Será que Trump se comportaria como um burocrata soviético se uma emergência nacional como a de Chernobyl acontecesse? Nossos amigos de esquerda diriam enfaticamente que sim. Eu digo que não importa: se ele agisse assim, não conseguiria sair impune. É maravilho ser norte-americano.

Se a URSS hermeticamente fechada de Chernobyl o faz se lembrar de algum presidente norte-americano, não deveria ser Trump, e sim Woodrow Wilson. Os cientistas e burocratas e mineiros e juristas e soldados fazem parte de uma mesma unidade, todos se chamando de “camaradas”. Todos respondem a uma mesma autoridade máxima, o Secretário-Geral Gorbachev. Wilson se sentia frustrado com a separação de poderes e ficou famoso por associar o governo a um organismo vivo que deve funcionar de acordo com as ordens de um único cérebro, sem ter suas funções distribuídas: “Nenhum ser humano pode ter os órgãos competindo entre si, como um jogo de damas, e continuar vivo”, disse. O Partido Comunista soviético é a realização do sonho de Wilson de uma burocracia permanentemente entrincheirada – o Estado dos especialistas tecnocratas que são inteligentes demais para se sujeitarem a qualquer ato do Congresso. (“A administração não pode se sujeitar ao Legislativo; ela deve ter carta branca para agir sem qualquer motivo específico”).

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Chernobyl é um alerta contra o Estado completamente ensimesmado cuidado de seus próprios interesses em vez de cuida dos interesses do povo, sem se preocupar com o fato de alguém fugir à regra porque o preço a ser pago por isso é do conhecimento de todos. Como chefe político do Ministério de Energia, Boris Shcherbina, interpretado por Stellan Skarsgard, diz à física Ulana Khomyuk (Emily Watson) quando ela ameaça contar a todos sobre o desastre:

Já conheci almas mais corajosas do que você, Khomyuk, homens que tiveram oportunidade e não fizeram nada. Porque, quando se trata da sua vida e da vida daqueles que você ama, sua convicção moral não significa nada. Ela a abandona. E tudo o que você quer naquele instante é não levar um tiro.

O único motivo para o mundo ter ficado sabendo do que acontecia em Chernobyl foi o fato de que o vento radioativo, ao contrário das informações, não pode ser contido. Quando a contaminação começou a aparecer na Suécia, os cientistas de todo o mundo começaram a entender o que estava havendo.

E se Stálin estivesse no comando

Não se deve ignorar o fato de Chernobyl ter ocorrido no auge da União Soviética, quando ela era mais ou menos eficiente sob a liderança do (relativamente) amável Camarada Gorbachev. Qual teria sido a reação se Stálin estivesse no comando? Ele começaria a mandar fuzilar as pessoas. Ele rapidamente se perceberia incapaz de encontrar alguém disposto a lhe falar a verdade. O reator exposto teria continuado a liberar a radiação de 48 Hiroshimas por dia. A Europa poderia ter sido completamente destruída. Gorbachev ao menos se mostrou disposto a ouvir os especialistas em vez de procurar bodes-expiatórios. Ele usou os torniquetes necessários para conter a hemorragia.

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Um dos muitos sinais de ironia é a imagem de um cartaz de propaganda pendendo na zona contaminada perto de Chernobyl: “Nosso objetivo é a felicidade de toda a Humanidade”. Os soldados que veem isso estão passando os dias matando os gatos e cachorros das pessoas a fim de que eles não espalhem a radiação. Um instrumento de controle-remoto criado para um pouso na lua que nunca ocorreu é usado no inferno do núcleo do reator – um símbolo apropriado da imaginação soviética desabando e caindo num poço venenoso de sua própria criação. Eis as últimas páginas da fantasia socialista, uma conclusão cuja trilha-sonora não é composta por marchas militares de vitória, e sim da estética aguda assustadora dos dosímetros usados por homens apavorados em trajes de proteção. Cinco anos mais tarde, a União Soviética acabaria. Chernobyl foi a manifestação emética da doença que foi o socialismo soviético.

Kyle Smith é crítico da National Review.

© 2019 National Review. Publicado com permissão. Original em inglês