A China começou a estocar Equipamentos de Proteção Individual (EPI), como máscaras e aventais, meses antes de notificar o mundo sobre o surto da Covid-19. Além de restringir severamente as exportações desse tipo de item entre agosto e setembro de 2019, na mesma época Pequim também comprou estoques de EPI na Europa, Austrália e Estados Unidos. A descoberta, publicada no sábado (8) pelo jornal britânico The Telegraph, foi feita pelos ex-funcionários do governo norte-americano Tom McGinn, conselheiro sênior de saúde do Departamento de Segurança Interna (DHS, na sigla em inglês), e coronel John Hoffman, pesquisador sênior do Instituto de Proteção e Defesa de Alimentos, que trabalhou por décadas no governo e nas forças armadas americanas.
Pouco convencidos de que a pandemia se originou em um mercado de frutos do mar em Wuhan, em dezembro de 2019, eles começaram a estudar alternativas. Ao vasculharem o banco de dados da Alfândega e Proteção de Fronteiras, que rastreia as mercadorias que entram nos EUA, notaram que as exportações chinesas de EPI para o país caíram praticamente pela metade, entre agosto de setembro daquele ano, mais de três meses antes do que se divulga ser a data inicial do surto.
A dupla analisou os dados de importação de três anos anteriores e atestou que a variação foge da normalidade, mas, ao apresentar as informações ao Escritório de Combate a Armas de Destruição em Massa do DHS, ouviu que o caso não seria investigado por não apresentar indícios além de flutuações normais de oferta e procura. Procurada pelo coronel Hoffman, no entanto, uma das maiores redes hospitalares dos EUA, a HCA Healthcare (que opera algo como 200 hospitais e 2 mil clínicas) relatou uma falta de aventais e máscaras no fim de setembro de 2019.
“Perguntei ao pessoal da HCA se isso havia acontecido recentemente. A resposta foi não – eles não conseguiam se lembrar de ter visto tanta coisa dessas em pedidos pendentes”, contou Hofffman ao Telegraph.
Além de restringir a saída de suprimentos de seu território, a China, maior fabricante mundial de EPI, também comprou estoques globais nos Estados Unidos, Europa e Austrália. Isso contribuiu para a escassez global desses itens, de acordo com o ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA David Asher, que atuou na resposta à pandemia e atualmente é membro sênior do Hudson Institute (think tank conservador americano com sede em Washington).
“Foi um aumento persistente [de compras chinesas]. E foi significativo o suficiente para que meus colegas do DHS ouvissem sobre isso de empresas americanas que fabricam EPI e, mais importante, de hospitais dos EUA relatando que não conseguiam obter o suprimento normal de máscaras, luvas, aventais e óculos de proteção”, afirmou Asher ao jornal inglês.
Para os ex-funcionários do governo americano, a falha em investigar a escassez de EPI equivale a um encobrimento, uma vez que um inquérito nesse sentido teria sido importante para proteger os cidadãos e entender as origens da pandemia.
Origem ainda duvidosa
Embora os esforços da China em trazer para seu território os estoques globais de EPI tenham se intensificado em janeiro e fevereiro de 2020, a mudança no comportamento desse mercado meses antes leva especialistas a questionarem se Pequim não estava ciente do problema há mais tempo. Pesquisadores alertam que, além da movimentação chinesa por equipamentos de proteção, outros fatos ocorridos em setembro de 2019 apontam que talvez esse tenha sido o real início da pandemia.
Embora virologistas tenham se unido “para condenar veementemente as teorias da conspiração que sugerem que a Covid-19 não tem uma origem natural”, em fevereiro de 2020, ainda não se pode chegar a uma conclusão definitiva sobre o surgimento da pandemia. Nem a emergência natural nem a hipótese de escape de laboratório podem ser descartadas, uma vez que não há evidência direta sobre nenhuma delas.
Há, entre os estudiosos, grupos que acreditam que o vírus SARS-CoV-2 pode ter vazado por acidente de experimentos do laboratório da virologista Shi Zhengli, no Instituto Wuhan de Virologia (WIV, na sigla em inglês), que investigava a transmissão de coronavírus por morcegos. A tese ganha reforço ao se observar que a restrição às exportações de EPI pela China ocorreu na mesma época em que o WIV removeu um banco de dados com sequências de genes de vírus de morcego.
“Surpreendentemente, esses registros de acesso eram públicos e não exigiam login para visualização. Os registros mostraram que o banco de dados ficou offline em 12 de setembro de 2019 entre 2h e 3h, horário local. Ficou assim, exceto por alguns curtos períodos de dezembro a fevereiro, durante os quais não houve registro de acesso externo de fora do WIV. O Sr. [Charles] Small [um consultor que começou a investigar de forma independente o trabalho dos cientistas do WIV] arquivou centenas de páginas desses registros de acesso, que mostraram um pico de atividade significativa em junho de 2019. Sabemos que em algum momento entre setembro e dezembro de 2019, a versão 2 da ficha técnica do banco de dados de patógenos WIV foi substituída pela versão 3, que foi substituída com a versão 4 em 30 de dezembro. A essa altura, o próprio nome do banco de dados havia mudado de 'Banco de dados de patógenos virais transmitidos pela vida selvagem' para 'Banco de dados de patógenos virais transmitidos por morcegos e roedores’”, contam Alina Chan e Matt Ridley, no livro ‘Viral: The Search for the Origin of Covid-19' [Viral: a busca pela origem da Covid-19, em tradução livre].
Questionada sobre o sumiço, a dra. Shi Zhengli disse que o banco de dados foi retirado do ar “por razões de segurança”. “Compartilhar essas informações em particular com membros internacionais da comunidade científica, se não publicamente, imediatamente após o surgimento do SARS-CoV-2, teria sido uma maneira rápida e eficaz de dissipar teorias sobre o vírus ter escapado do WIV. A falha em compartilhar o banco de dados, mesmo confidencialmente com os investigadores, aprofundou, portanto, a suspeita de que havia algo a esconder”, completam Chan e Ridley.
Na publicação, os autores listam uma série de "indícios de que a epidemia começou antes de dezembro de 2019”. Um dos “enigmas” da origem da pandemia aparecem na época dos Jogos Mundiais Militares, ocorridos entre 18 e 27 de outubro de 2019, em Wuhan, com participação de 9 mil atletas de cem países.
“Estranhamente, a Xinhua [agência de notícias oficial da China] informou que em 18 de setembro a Alfândega de Wuhan e o Comitê Executivo dos Jogos Mundiais Militares realizaram um Exercício de Resposta de Emergência, para treinar o que fariam no caso de duas emergências no aeroporto da cidade: a chegada de bagagem com radiação nuclear e a chegada de um passageiro infectado com um novo coronavírus. Atletas posteriores de vários países reclamaram que adoeceram em Wuhan com febre, tosse e diarreia. Alguns ficaram acamados por semanas. No entanto, houve pouco ou nenhum esforço para descobrir se alguns desses casos poderiam ter sido Covid-19. Josh Rogin, do Washington Post, que relatou esta história, chamou-a de um 'fio investigativo definhando devido à negligência’”, contam os autores.
Ocidente recebeu alertas
Uma reportagem da Bloomberg, agência de notícias sobre o mercado financeiro, mostra que na semana em que os EUA confirmaram seu primeiro caso em janeiro de 2020, logo após o bloqueio de Wuhan, epicentro da pandemia, organizações cívicas chinesas empreenderam um esforço de compra de máscaras e outros equipamentos de proteção nos cinco continentes. O plano do Partido Comunista foi instar chineses residentes no exterior a comprar máscaras em massa para “mandar de volta à pátria lotes de suprimentos escassos”.
A mobilização sem precedentes foi orquestrada pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida do Partido Comunista Chinês e resultou em desabastecimento de EPI em muitos locais no planeta. No final de fevereiro, segundo dados do governo chinês, 2,5 bilhões de itens no valor de 8,2 bilhões de yuans (US$ 1,2 bilhão) foram enviados para a China, o que incluía dois bilhões de máscaras.
Vale lembrar que, até abril de 2020, a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) não recomendava o uso de máscaras por pessoas saudáveis, alegando não haver “evidências suficientes” da eficácia do item na proteção contra a Covid-19. O conselho da OMS era de que apenas profissionais da saúde, pessoas doentes e seus cuidadores usassem máscaras. Em junho, porém, a Organização mudou as orientações e disse que as máscaras deveriam ser usadas em público por todas as pessoas, para ajudar a conter a propagação do coronavírus.
Além da atuação da Frente Unida, alguns governos estrangeiros também enviaram ajuda à China, como o Canadá, que remeteu 16 toneladas de EPI em 9 de fevereiro. Com o alastramento do vírus, a demanda por máscaras e demais equipamentos fez o mercado disparar logo em seguida, e o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, passou a enfrentar críticas quando os preços das máscaras N95 subiram cinco vezes.
Na época, o ex-embaixador do México em Pequim Jorge Guajardo alertou, pelo Twitter, que havia algo de estranho na busca por máscaras na América. “Tão certo quanto o dia segue a noite, a escassez de algo na China logo se reflete mais perto de casa", disse. Em entrevista ao portal canadense Global News, Guajardo criticou a operação “sub-reptícia” chinesa, que deixou “o mundo nu, sem fornecimento de EPI”.
Agora trabalhando em uma consultoria em Washington, nos EUA, ele foi contatado em meados de janeiro de 2020 por uma fonte logística da cadeia de suprimentos mexicana. “Eles disseram: você sabe uma coisa engraçada, estou sendo inundado por ordens para enviar todas as N95 que puder encontrar para a China.” O resultado do movimento não demorou: em março, as máscaras vendidas durante janeiro e fevereiro para a China, estavam sendo comercializadas por um preço de 20 a 30 vezes maior no México, segundo Guajardo. “Essa pandemia se complicou por causa do encobrimento da China no início”, ressalta.
Além de Guajardo, outro crítico à atuação da China em relação aos EPIs foi o parlamentar conservador canadense Erin O’Toole. Ele contou ao portal Global News que fontes nos círculos militares e industriais alertavam os governos ocidentais sobre um aparente confisco da China ao fornecimento global de EPI. Segundo o parlamentar, “de fato” altos burocratas canadenses foram informados da manobra em janeiro, mas, em vez de responder à ameaça, enviou toneladas de máscaras e outros equipamentos à China. Para ele, não só os métodos usados por Pequim, mas a resposta do governo canadense necessita de ampla investigação.
“O Partido Comunista da China reteve intencionalmente informações sobre um surto por pelo menos semanas, se não meses. Isso não apenas deu ao mundo menos tempo para responder, como minimizou a gravidade potencial da ameaça. Os países não tomaram decisões em relação a proibições de voos e (à proteção de) lojas de EPI”, acrescenta.