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Perfis conservadores

Christopher Dawson, o historiador que diagnosticou a doença do século XX

Christopher Dawson
Christopher Dawson: “o principal historiador do século XX” (Foto: Reprodução)

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São poucos aqueles que ostentam a envergadura intelectual para ser denominado “o principal historiador do século XX”. Christopher Dawson (1889-1970) não só tem essa envergadura como conseguiu desenhar, em pleno século passado, uma apologia consistente ao cristianismo ― mais especificamente ao catolicismo romano ― através de sua reflexão filosófica sobre a história.

Mas se engana se já pensa que Dawson era um católico pronto para inserir o catecismo da sua avó na moleira dos ateus desalmados. O catolicismo de Dawson foi, na verdade, a cola de suas ideias, o elo entre seu espírito e sua razão. Porém, é bom ressaltar, suas ideias iam muito além do catolicismo paroquiano da Irlanda, ou de uma apologia sensacionalista e apaixonada dos ditos “papistas” britânicos ― termo pejorativo usado pelos anglicanos. Sua erudição filosófica era espantosa. Ao encontro com seus originais e analisando os relatos dos editores que trabalharam com ele, percebemos que muitas das analogias e argumentos construídos em seus livros e palestras carregavam alto teor de lembranças assustadoramente específicas sobre citações que ele havia lido, artes que havia visto ou contos que havia escutado.

Santo Agostinho de Hipona (350-430), com certeza foi sua maior influência filosófica e teológica, e se esse gigante africano da Igreja Cristã foi o responsável por “converter” Platão e Aristóteles ao cristianismo, ao unir a conceituação filosófica grega à civita romana e à fé cristã, foi Dawson que teve a grandeza de unir os pressupostos religiosos do cristianismo a fim de oferecer uma resposta coesa e completamente sensata à problemática cultural de seu tempo: a insurreição secular da religião civil, os adventos demoníacos das catastróficas ideologias do século XX.

Mas vamos entender o homem Dawson antes de entender suas ideias.

Todos os caminhos levam a Roma

Christopher Henry Dawson nasceu em 12 de outubro de 1889, em Hay Castle, no País de Gales; todavia, foi efetivamente criado em Hartlington Hall, Yorkshire. Teve uma educação erudita e tradicional voltada às humanidades no Winchester College e, posteriormente, no Trinity College, de Oxford; tudo isso apesar de seu pai, H. P. Dawson, ter sido um militar ― mais especificamente um oficial do exército da rainha. H. P.

Dawson não deixou de obter uma instrução histórica e filosófica aprofundada, sendo geralmente descrito pelos biógrafos de Christopher Dawson como “um homem de profunda inteligência crítica e interesses culturais”.

Sua mãe, Mary Louisa Dawson, assim como seu pai, era formalmente protestante e, como de costume, nessa vertente cristã, o pequeno Christopher foi criado. No entanto, por ocasião de uma intelectualidade mais aberta e profunda de seu pai ― como destacado acima ―, desde pequeno Christopher aprendeu a admirar a organização histórica e profundidade teológica do catolicismo.

Em 1909, Dawson visitou a Itália e encontrou o catolicismo em sua versão humana, artística e teológica mais robusta e bem trabalhada. Segundo alguns biógrafos ― como a professora Caroline T. Marshall ―, Christopher decidiu-se definitivamente pela conversão após conhecer e se apaixonar Valery Mills, uma católica; mas também por ocasião do ambiente cultural que Roma lhe propiciou, inclusive ofertando-lhe inúmeros insights para os livros de História Cultural que se seguiriam nos anos vindouros.

Ora, se o ditado: “Todos caminhos levam a Roma” é verdadeiro, sem demora podemos afirmar que a estrada de Dawson foi ladrilhada pela erudição liberal de seu pai, a paixão profunda por sua esposa, a beleza cultural de Roma, a filosofia de Santo Agostinho e teologia combativa de John Henry Newman (1801-1890) ― este último um ex-sacerdote anglicano convertido ao catolicismo e feito cardeal pelo papa Leão XIII (1803-1903).

Christopher Dawson se converteu oficialmente à Igreja Católica na Páscoa de 1914, caminho tomado que não era mais surpresa a ninguém, dadas as confissões cada vez mais públicas de sua fé romana e seus escritos cada vez mais influenciados pelas perspectivas católicas. Christopher e Valery se casaram em 1916 e tiveram três filhos.

Vocês devem estar se questionando: “por que esse episódio da vida de Dawson é tão importante”? Porque efetivamente sua conversão significou uma reviravolta também em suas ideias e em sua produção intelectual. Vocês entenderão mais à frente.

Da academia à eternidade

Após estudar em Oxford, doutorou-se em História Moderna e, por um breve período, dedicou-se também ao estudo de economia, matéria que achava ser de suma importância para entender a organização social de um país.

Na Segunda Guerra mundial, em razão de sua saúde sempre frágil, e também por sua esposa despender cada vez mais atenção, dada uma condição psicológica instável que a encerraria em um hospital psiquiátrico no fim de seus dias, Christopher não serviu ao exército britânico no campo de batalha, apesar de ter feitos alguns trabalhos estratégicos para o Partido Conservador.

Ainda em vida, influenciou ativamente dois intelectuais de suma importância para o século XX, o filólogo e romancista J. R. R. Tolkien (1892-1973) e o poeta e crítico literário T. S Eliot (1888-1965). Este último chegou a dizer em várias ocasiões que o intelectual que mais o havia influenciado foi Dawson.

No final da década de 1940, escreveu duas obras elementares, as quais o colocaram no radar das grandes universidades do mundo, a obra Religion and Culture (Religião e Cultura), de 1948, e Religion and the Rise of Western Culture (Religião e a Ascensão da Cultura Ocidental), de 1950 ― finalizada ainda em 1949 e publicada no Brasil pela editora É Realizações com o título "Criação do Ocidente - A religião e a civilização medieval". Ao total escreveu 27 obras, entre elas coleções de palestras e artigos.

Em 1958, foi convidado a ser o primeiro professor católico a lecionar na protestante universidade de Harvard, apesar de não mostrar muito interesse pela própria arte de lecionar. Nas palavras de sua biógrafa, a professora Caroline T Marshall: “Em 1958, o seu prestígio acadêmico atingiu outro patamar quando foi convidado para se tornar o primeiro Professor Convidado do departamento de Estudos Católicos Romanos em Harvard”. No final da década de 1960, projetou construir um curso sobre Cultura Cristã e as bases históricas do Ocidente na Universidade Notre Dame, no entanto a sua saúde frágil não lhe permitiu avançar nessa empreitada. Dawson morreu em 25 de maio de 1970.

Fundando o Ocidente x falindo o Ocidente

Dawson sabia que a religião, tão renegada e colocada no lixão da história pelos progressistas, na realidade representava a própria fundação da cultura, aquilo que de maneira muito débil os jacobinos queriam destruir para substituir. Nas palavras de Christopher Dawson em Progresso & Religião: uma investigação histórica: “Desde a ascensão do movimento científico moderno no século XVIII houve uma tendência entre sociólogos e historiadores da cultura de negligenciar o estudo da religião em seus aspectos sociais fundamentais”. Essa negligência era a fundação da crise política e espiritual do Ocidente moderno; seria o começo mesmo daquilo que os historiadores Oswald Spengler (1880-1936) e Arnold J. Toynbee (1889-1975) chamariam de “decadência do Ocidente”.

No entanto, os apontamentos acima vão muito além de qualquer clubismo religioso, ou de uma sanha apologética do historiador, constituem antes a busca pelas fundações da própria realidade e da essência do Ocidente. Christopher Dawson viveu a época das duas grandes guerras mundiais. A decadência moral e os ataques políticos à ordem civilizacional do Ocidente não se tratavam de meros discursos de reacionários cristãos, eram realidades vistas a olhos nus, tanto pelas janelas de cada casa ocidental, como em cada estação de rádio ou jornal do mundo que se dizia “civilizado”. O sensato socialista George Orwell (1903 -1950) escreveu seu espetacular romance distópico, "1984", olhando por sua janela a glamorosa Londres ser bombardeada pelos alemães. Dawson estava na mesma Inglaterra, provavelmente vendo as mesmas bombas atingirem a sua terra.

A liberdade greco-romana e a ética judaico-cristã, os dois mais profundos arrimos sociais do Ocidente, estavam ― e estão ― sob fogo constante de ideologias afrontosamente desleais e antinaturais. Entender, pois, de onde vinham esses leviatãs era algo mais do que mero catolicismo fanático, era condição real de subsistência social e moral da civilização; dizer que o Ocidente estava em decadência era muito mais que ser reacionário, na realidade tal percepção era simplesmente o odor constante daquela realidade.

Dawson então inicia sua crítica cultural harmoniosamente jogando na cara da sociedade laicista da virada dos séculos XIX-XX que a religião tão renegada e acossada dos clubes dos inteligentinhos é, na realidade, a fundadora da civilização Ocidental. Para completar o AVC dos progressistas de Cambridge, afirmou ainda que, apesar das duras e destruidoras investidas levantadas pelos racionalistas utópicos contra a ordem cristã, ela foi boa o suficiente para garantir que a própria ideia de sociedade laica surgisse. No fundo, Dawson deixava sempre a menssagem: quem tiraniza a história não são aqueles que vestem crucifixos no pescoço, mas sim os que dogmatizam o secularismo na sociedade com o cetro do poder político nas mãos.

Tudo começa na reza

Para o historiador galês, a cultura é, em seu início, um culto religioso. As pessoas se reuniam para adorar uma divindade e, nessa adoração, definam os parâmetros de costumes do grupo, estabeleciam as verdades que logo se transformavam em leis impositivas, forjavam os princípios éticos da comunidade, e, por extensão, as moralidades particulares. Em suma, a própria verdade era assimilada numa conjunção de revelação + percepção ― o que no Ocidente foi aprimorado pela filosofia grega, seus estudos racionalizados do Ser e seus meandros subsequentes.

Nas palavras de Bradley J. Birzer, no ensaio "Christopher Dawson: The Historian of the Twentieth Century":

Em última instância, a cultura veio do cultus, grupo de pessoas, geralmente baseado no parentesco, que se reuniam para adorar a mesma divindade ou divindades. Uma vez que uma adoração comum e compreensão da teologia tinham se desenvolvido, uma cultura naturalmente se desenvolveu. Da cultura, então, derivada economia, política e direito.

(...)

Consequentemente, a perda da fé religiosa resulta na eventual destruição da cultura.

A religião cristã, principalmente no Ocidente, é uma construção sensacional, cujas bases estão assentadas na própria concepção de culto a Deus; com a junção da filosofia grega e do direito Romano, a sociedade tinha em seu firmamento todos os elementos para forjar algo inédito na humanidade, uma “meta-história” concretizada nos avanços lentos, porém robustos, de uma herança interligada de vários povos.

Em suma, o Ocidente conseguiu congregar a coragem do bárbaro, a transcendência espiritualizada e a ética jusnaturalista do judeu-cristão, a inteligência e percepção dos gregos, e a organização social e jurídica dos romanos.

A crise do Ocidente

A cola que mantém tudo isso unido, segundo Dawson, é a tradição e o culto, a religião cristã para ser mais exato. Para o historiador, a ordem cristã é o próprio sustentáculo do Ocidente. Retirando tal pilar, tudo mais começa a cair e se esfarelar. O que assistimos acontecer com o racionalismo pós-renascimento e com as ideias políticas que delas nasceram é um constante esfarinhar das estruturas do Ocidente.

Cabe salientar que tal percepção não é exclusiva do historiador católico aqui biografado, o agnóstico sociólogo e também historiador Raymond Aron (1905-1983) afirmara em "O ópio dos intelectuais": “Um regime social é sempre reflexo de uma atitude com relação ao Cosmos, ao Estado ou a Deus”; e mais, agora sobre a relação ateísta do comunismo e a religião, afirmou também:

"É verdade que o comunismo atrai ainda mais quando o trono de Deus está vazio. Caso o intelectual não se sinta mais ligado nem à comunidade nem à religião dos seus antepassados, ele pede às ideologias progressistas o pleno preenchimento da sua alma."

O filósofo britânico e ateu John Gray disse em "A busca pela imortalidade: A obsessão humana em ludibriar a morte" que: “Os pensadores seculares vitorianos imaginavam que, quando Deus tivesse desaparecido, a moral preencheria a lacuna que ficasse, mas quando o teísmo desapareceu, a própria ideia de uma moral categórica tornou-se sem sentido”.

Também o muito possivelmente agnóstico historiador francês Paul Hazard (1878-1944), concorda com a análise dawnsoniana sobre núcleo da revolução moderna, deixa isso claro quando comenta a respeito da volúpia literária dos iluministas em sua espetacular obra "A crise da consciência europeia: 1680-1715":

Todas as instituições são demolidas, pelo prazer de contestar. Sábios anciões aparecem em boa hora para substituir, com seus sermões laicos, os ministros do culto; vangloriam as repúblicas incorruptíveis, as oligarquias tolerantes, a paz obtida pela persuasão, a religião sem sacerdotes e sem igrejas, o trabalho reduzido que transforma em prazer; enaltecem a sabedoria reinante em suas terras, terras admiráveis que perderam a noção do pecado.

A questão da religião, para o historiador católico, vai muito além de um apreço à religião romana. Dawson encontrou na religião cristã a viga principal de sustentação da civilização que mantém e defende as liberdades individuais e demais garantias éticas da sociedade.

Segundo cita o historiador Bradley J. Birzer, em "Sanctifying the World: The Augustinian Life and Mind of Christopher Dawson" (Santificando o Mundo: A Vida e Mente Agostiniana de Christopher Dawson), Christopher Dawson encontrou cinco problemas centrais que se transformaram no verdadeiro cancro moderno, isto é, a decadência mesma da sociedade ocidental. O historiador brasileiro Alex Catharino reproduz tais cinco pontos no prefácio da edição brasileira de O julgamento das nações:

  • 1. A ameaça à liberdade política devido ao crescimento do controle burocrático da máquina governamental;
  • 2. O risco de mecanização da sociedade por intermédio do processo de centralização da atividade econômica;
  • 3. A ameaça à liberdade intelectual pela dominação dos especialistas e dos técnicos;
  • 4. O perigo para a liberdade espiritual causado pelo controle e pela manipulação da opinião públicas pelas técnicas psicológicas totalitárias;
  • 5. O risco da liberdade nacional e da paz internacional serem atacadas pela agressão ilimitada e pala violência das novas tiranias de massa.

Podemos resumir todo este escopo problemático e teórico da meta-história Ocidental levantada pelo historiador, como sendo, então, o “problema teológico das duas cidades”.

Santo Agostinho e o problema da soberba

Resumindo, podemos dizer que, na esteira de quase toda a intelectualidade sensata do século XIX e XX, Dawson viu nas ideologias modernas uma prostituição latente da sociedade frente aos seus valores mais importantes. Assim como uma infinidade de pensadores ligados ao pensamento conservador e liberal, de François-René De Chateaubriand (1768-1848) a Isaiah Berlin (1909-1997), de Edmund Burke (1729-1797) a João Camilo de Oliveira Torres (1915-1973), todos de certa maneira entenderam as ideologias políticas modernas como uma espécie de secularismo religioso externalizado, uma religião civil tal como Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) propôs em seu "Contrato Social".

No entanto, Dawson entendeu esse processo de religião política como um caminho essencial, de caráter espiritual e político. Para o historiador, a modernidade padecia a falta de sentido para sua existência material, e, num processo desesperado pós-revolução francesa, encontrou na razão cientificista uma escatologia de proveta uma transcendência política feita de papel machê, pronta para se desmanchar na primeira garoa de realidade que viesse. Quando a modernidade destituiu Deus, não encontrou mais nada do tamanho e qualidade Dele para substituí-lo; eis, aliás, de forma resumida, a ontologia da crise moderna.

Para Dawson, isso era um insight factual, uma verdade histórica que gritava de cada beco do mundo. Como agostiniano que era, ele entendia que tanto a liberdade individual quanto a sanidade social estavam fundamentadas na teoria das cidades de Santo Agostinho. A divisão qualitativa realizada pelo santo africano dava o fundamento filosófico e teológico para a humanidade, arregimentava as diferenças e esperanças sociais no terreno da realidade social e religiosa; delegava corretamente as competências da filosofia política e as matérias da teologia cristã.

Para Dawson, essa acentuada e humanamente intransponível divisão entre a Cidade de Deus e a Cidade dos homens era motivo de esperança para a humanidade, o terreno do possível e o terreno do perfeito eram cidades habitáveis, só não o eram ao mesmo tempo. Enquanto uma lidava com as limitações da finitude, a outra nos informava os caminhos da verdade e da bondade. Tal filosofia agostiniana impedia, ao mesmo tempo, que os sacerdotes politiqueiros e os reis divinizados tentassem a todo custo moldar a política dos homens ao Reino dos céus, dizia de forma final: não é possível juntar as cidades!

Dawson, assim, considerava que o progressismo pensou histericamente ter transposto essa lacuna ontológica; que, por fim, o dedo de Adão, no afresco "A criação e Adão de Michelângelo" (1475-1564), tinha tocado o dedo de Deus, e, assim sendo, agora o homem também era Deus. Ou seja, o erro ideológico moderno não é uma heresia somente contra o cristianismo, mas também contra a própria natureza humana, um atentado à própria ordem da realidade. O homem evoluído do século XVIII acabou construindo, com suas vertentes racionalistas suntuosas, um palacete de ilusões e mentiras políticas ― quiçá religiosas ―; abandonando os dogmas da Igreja, criou após isso uma igreja sem Deus para fantasiar seus axiomas sociais.

E “calma lá” se está achando isso reacionário demais. T. S. Eliot, por exemplo, acreditava ser Dawson um dos homens mais liberais que ele conhecia, justamente por não contrapor nenhum avanço realmente benéfico da história moderna. Nas palavras do prefaciador americano da obra "O Julgamento das Nações", Michael J. Keating: “Dawson sustentava que a civilização ocidental era a única entre as culturas do mundo cuja visão espiritual não era de inatividade, mas de desenvolvimento dinâmico”.

Voltar aos valores e resgatar as bases cristãs da cultura Ocidental, para o historiador, era um processo de conhecimento e tomada de sentido histórico ante a civilização a fim de realizar corretos avanços sociais, e isso sequer significava qualquer tipo de conversão em massa ao catolicismo que ele tanto cultuava. Aliás, para Dawson, a liberdade religiosa é fruto da liberdade de consciência, que por sua via é fundamentada na Lei Natural da dignidade inalienável de cada indivíduo. Em suma, para o historiador, só há liberdade religiosa onde o cristianismo teve tempo de amadurecer e formar uma raiz profunda.

Se existe algo que não pode ser apartado de Dawson é sua consciência de finitude e expansão filosófica; e, cabe salientar, se reacionário fosse, e se internamente fosse impelido à missão de devolver o bebê ao útero, não seria ele nada além do que um ideólogo progressista às avessas. Derrubando-se, assim, no mar da hipocrisia, invalidando todo o seu desenvolvimento crítico filosófico de uma vida.

O julgamento das nações

Por fim, Dawson argumenta que o único caminho para a modernidade é reconhecer as suas falhas bisonhas, pedir desculpas pelas burocracias cientificistas estéreis que criaram milhares de involuções sociais desumanas, empobrecendo, assim, espíritos e economias; desculpar-se pelos planejamentos políticos que exaustivamente findaram em amontoados aterradores de corpos humanos em todos os cinco continentes; pedir insistentemente indulgências pelas ideias que conduziram milhões e mais milhões ao fanatismo pseudorreligioso e assassino do comunismo e do nazifascismo.

Desta maneira, o julgamento que Dawson previa às nações vai muito além do "antifascismo" medonho de nossos tempos, de um anticomunismo da moda, ou de um antinazismo fantasmagórico da neoesquerda stalinista; o julgamento se dará pelo plano meta-histórico, isto é, ele ocorrerá pela negligência humana aos valores que fundamentam à própria ética social ― Lei Natural ― e demais tradições da Civilização ― Direito Natural ―, e não pelas atomicidades politiqueiras do momento. O julgamento de Deus começa, assim, pelas escolhas sociais e políticas dos homens; não importa a fé ideológica do puritano e humanista Fidel Castro (1926-2016), mas as suas escolhas, as suas obras. Não importa quão bela e inclusiva seja uma ideologia, o que será julgado são suas consequências. Já diria São Tiago: “Mas alguém dirá: ‘Tu tens fé, e eu tenho obras’. Mostra-me a tua fé sem obras e eu te mostrarei a minha fé pelas minhas obras”. (São Tiago 2, 18)

Diz Dawson em "O julgamento das nações":

A causa que defendemos é muito mais fundamental que qualquer forma de governo ou qualquer credo político. Está vinculada a toda a tradição de cultura ocidental e cristã ― por um lado, à tradição de liberdade social e de cidadania e, por outro, à liberdade espiritual e ao valor infinito da pessoa humana individual.

Dawson afirma que a humanidade terá que escolher entre os valores ocidentais alicerçados na ordem cultural cristã ou nas ideologias político-religiosas criadas em laboratórios universitários da modernidade. O indivíduo do século XXI terá que escolher entre o que a história deixou como experiência testada e confirmada, e o que as aventuras ideológicas deixaram como espólios sacrificiais de Homens. A liturgia de Deus, ou a liturgia dos homens.

Síndicos da civilização

Por fim, Christopher Dawson foi um historiador combativo e extremamente ousado na arte de não ser atual, quando a moda do atual entre o século XVIII e XX era ser inventor de sociedades perfeitas. Enquanto seus pares acadêmicos gastavam suas erudições em cálculos, historicistas em combinações econômicas e políticas exóticas, Dawson lembrava a todos que a cultura nova que eles tempestuosamente estavam tentando criar dependia antes do culto, de uma religião profunda e metafísica que lançasse os alicerces fundamentais dos costumes e da ética. E se a modernidade se fez na própria ideia de negação da religião, logo a cultura dela proveniente será o caos, o esfacelamento da própria condição humana de liberdade e civilidade.

Dawson era conservador, não tanto por opção e primazia política, mas porque os conservadores britânicos ainda guardavam um pouco daquela sanidade de síndicos da civilização. Os conservadores enxergavam claramente que o valores ocidentais eram mais que abstrações moralistas, ou fetiches de avós, acreditavam que tais princípios eram o próprio arrimo de liberdade e cidadania.

Dawson pode não ter sido um historiador carismático, ou um intelectual ativo ― Caroline T. Marshall afirmou até que ele simplesmente ignorava os louros acadêmicos ―, todavia foi aquele tipo de historiador tão coerente e profundo em suas análises que não dá para passar por ele numa leitura séria de história ou filosofia e simplesmente ignorá-lo.

Se alguém me pedisse uma personificação metafórica do que foi o Christopher Dawson para o estudo de filosofia da história, diria que ele é o remédio amargo que a maioria das pessoas não gostaria de ingerir deliberadamente, mas que pelo menos uma vez ao ano faz bem tomar; ou quem sabe ele seja aquela lombada numa reta longa de uma estrada perigosa, tão inconveniente aos ousados, mas ao mesmo tempo tão necessária aos sensatos. Não à toa muitos o chamam de "O historiador do século XX".

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