Mais uma vez, as chuvas de 2020 estão castigando o Sudeste do Brasil. Em janeiro, Minas Gerais registrou quase 60 mortos por causa de enchentes e deslizamentos de terra. Por sorte, nenhuma barragem se rompeu – ainda. No Espírito Santo, as chuvas mataram e praticamente destruíram a cidade de Iconha, no sul do estado. E agora é a vez de São Paulo sentir o efeito das chuvas.
Sempre que vejo essas notícias de enchentes no Sudeste do Brasil me lembro da crise hídrica que afetou São Paulo a partir de 2014 e até 2016. E quem não se lembra de acompanhar com alguma apreensão o nível do Sistema Cantareira caindo dia após dia - até chegar a zero e descortinar para a humanidade o famoso “volume morto”?
Nessa época, como sempre acontece em eventos climáticos extremos, surgiram várias teorias para explicar a seca que prometia não só deixar a maior cidade do Brasil, da América Latina, do Hemisfério Sul (!) sem uma gota d’água como também desertificaria o interior do Estado, transformando toda a região numa savana improdutiva, pobre e inabitável.
Por algum motivo, os climatologistas, ambientalistas e hidrólogos (não confundir com hidrófobos) de plantão abdicaram das teorias tradicionais, geralmente envolvendo os fenômenos de aquecimento ou resfriamento do Oceano Pacífico, os chamados El Niño e La Niña, para lançar, com algum estardalhaço, uma teoria revolucionária (com um quê de poesia) que associava a seca em São Paulo à destruição da Amazônia de uma forma inequívoca.
Poesia sem base científica
Trata-se dos “rios voadores”. A teoria se baseava em modelos matemáticos (essas runas abstratas que servem como verniz de hermetismo sábio por parte dos cientistas-oráculos) que provavam, para além de qualquer dúvida, de forma taxativa e irrevogável, e você é um obscurantista-terraplanista-negaciosta se duvidar!, que a evaporação da água na região Amazônica criava rios voadores que corriam em direção ao Sudeste, abastecendo os reservatórios da região.
Animações explicavam ao público como era essa ação milagrosa e perfeita da Mãe Natureza, Gaia ou sei lá como a estão chamando hoje em dia. Primeiro a aguinha subia por entre a copa das árvores e virava nuvem. Daí vinha um vento e empurrava essas nuvens contra a Cordilheira dos Andes. Pressionadas contra as montanhas, as nuvens então corriam para o sul, davam uma guinada à esquerda e, obedientes que são, desabavam sobre o Sudeste, saciando a sede de milhões.
A teoria dos rios voadores, além de ostentar esse nome poético, com um quê de hippie, parecia óbvia naquele momento de caos provocado pela seca extrema. E, a partir de então, passou a ser usada por todo mundo que queria explicar a falta d´água na torneira. A solução proposta pelos cientistas era de uma simplicidade pungente: impeçam o desmatamento da Amazônia que a água voltará a fluir e o tal do volume, antes morto, ressuscitará.
Quando a realidade se impõe
O jornalista Leandro Narloch foi o único a questionar a teoria dos rios voadores. Ele ouviu três especialistas em dinâmica climática e todos foram categóricos em dizer que, apesar da poesia, da suposta “autoevidência” e das animações didáticas, a informação não tinha base científica alguma. Ninguém lhe deu ouvidos.
Mas, como previsto, a partir de 2016 as chuvas voltaram ao normal. E, por normal, entenda-se: muita chuva, sobretudo no verão, causando alagamentos, deslizamentos e mortes nos quatro estados. À medida que a preocupação das pessoas deixou de ser “morrer de sede” para “não morrer levado pela enxurrada”, a teoria dos rios voadores, como que por encanto, perdeu espaço na imprensa e no imaginário popular.
Até porque a consequência direta da teoria, se ela fosse evocada hoje em dia, seria a de que já está mais do que na hora de darmos uma “desbastadinha” maior na Amazônia a fim de regular os tais rios voadores e, assim, diminuir a ocorrência de chuvas no Sudeste, não é mesmo?
Mais do que um caso curioso e sintomático de uma ciência corrompida pela ideologia, a falsa teoria dos rios voadores mostra a validade de uma sabedoria que escapa aos modelos matemáticos gerados em supercomputadores e interpretados por homens de semblantes sombrios em imponentes jalecos brancos: não existem respostas simples para problemas complexos.
Em tempo: ninguém está propondo, aqui, que se transforme a Amazônia num grande estacionamento. Mas o caso da relação entre os rios voadores e o ciclo de secas e chuvas no Sudeste ilustra bem como a ciência, com seus estudos que “podem indicar” e seus dados que “sugerem”, deve ser vista com prudência e uma boa dose de ceticismo. É tentador acreditar que chegamos a um ponto tal que somos capazes de explicar absolutamente todos os fenômenos da natureza. Mas a verdade é que ainda há muita coisa a ser descoberta e entendida.
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