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Esses dias andei conversando com um francês morto da época da Segunda Guerra. É um romancista, chama-se Georges Bernanos e, na altura em que conversei com ele, tinha abandonado as atividades de ficcionista para fazer palestras inflamadas na França pós-ocupação nazista. Ele ficou no Brasil por vários anos, inclusive durante a Guerra, e aqui encontrou devotos do seu ideal de França: universalista e humanista. Por isso, eram franceses espirituais, os brasileiros que encontrara no interior e na cidade.
De volta à França, Bernanos encontrou franceses bestificados pelos nazistas. Os brasileiros preservavam a França do Iluminismo no espírito; os franceses tinham o Sartre como ideal de intelectual. (Para quem não sabe, Sartre era ao mesmo tempo heideggeriano e stalinista. O filósofo chileno Víctor Farías já provou por A+ B que a filosofia de Heidegger era nazista, assim como o filósofo).
O livro dele que li é “Liberdade, para quê?”, que acaba de sair pela É Realizações. Dá para ler como uma conversa, porque ele, polemista inflamado, deixa coisas no ar. Como leitores, ficamos concordando, discordando, devolvendo perguntas que ele não vai responder porque morreu, e então tentamos responder por nossa conta.
Embora escrito no pós-Guerra, o livro descreve um estado de espírito atual. É clichê dizer que um livro velho é atual, então vou ser mais precisa: se eu o lesse há sete anos, não o acharia atual. Isso quer dizer que os ânimos de 2020 estão mais parecidos com os de 1945 do que com os de 2013. Estranho, não? Esse ânimo de 45, reconhecível hoje, é a substituição do pensamento por propaganda e slogan. Para Bernanos, teria havido no pensamento algo análogo à substituição do artesão pela indústria. Antes, cada um pensava de um jeito, com calma. Em 45, o pensamento era uniformizado, de manada, e tinha que ser simples o bastante para caber num slogan a ser repetido pelas massas.
Ora, se trocar slogan por hashtag, dá na mesma. Hashtag nada mais é que um slogan com jogo da velha na frente. Os slogans, na época de Bernanos, eram sempre de indignação moral seletiva. A um assovio dos intelectuais-propagandistas, era preciso repetir slogans para mostrar indignação com a morte de crianças na Indochina, então colônia francesa. Mas indignar-se com as crianças por detrás da Cortina de Ferro estava fora de cogitação.
Em 2013, não vivíamos isso. Em 2020, vivemos, e culpamos as redes sociais. Mas em 1945, eles não tinham redes sociais e viviam isso. Como em 1945 uma potência totalitária estava fazendo muito estardalhaço, prefiro atribuir o clima de hoje à China, em vez de atribuí-lo às redes sociais. Esse clima deve ser fruto de propaganda totalitária embaralhando o debate público das democracias.
Hipótese de Bernanos
Ele não tem a possibilidade de olhar para 2020, e na verdade nem para 1945 direito, uma vez que o Relatório Kruschov ainda estava por vir. Bernanos, tal como muitos de nós hoje, achava que o clima totalitário era culpa da técnica. Quando olhamos os campos de concentração high tech dos uigures, ficamos apavorados e cremos que a tecnologia é má em si mesma. E nos anos 40 era assim que as pessoas normais reagiam aos sofisticados campos de concentração nazistas. Quem apostou que a técnica era incompatível com a democracia errou.
Como bom francês, Bernanos achava que tudo era culpa da Inglaterra, porque a Inglaterra inventou as máquinas. Discordo dele e acho que a culpa está mais para francesa do que para inglesa. A culpa é do cientificismo , a crença de que a ciência é uma obra pronta e acabada, e que cabe a uma meia dúzia de cientistas iluminados planejar a sociedade de cima a baixo.
Essa concepção mina a liberdade, e Bernanos tem razão quando diz: “A ideia deles – pode-se dizer a única ideia que lhes resta – é que o mundo segue seu caminho como uma locomotiva nos trilhos, e, a partir do momento que se peça para que qualquer coisa seja mudada naquilo que está aí, eles falam em retrocesso. […] A submissão deles ao progresso só é igualada por sua submissão ao Estado, e possui absolutamente a mesma natureza. O progresso os dispensa de alguma vez afastar-se um único passo da rota seguida por todo o mundo.”
A imagem dos trilhos – tão usada por marxistas para tratar da história – é elucidativa. Maquinista não tem liberdade; a rota já está toda traçada. Na ideologia progressista, é assim também. O progresso se dá como que sobre os trilhos já traçados pelo burocrata. Bernanos chama isso de desprezo pela liberdade.
Concordo e aponto que isso se confunde com a passividade. Veja bem: um escravo pode ser um inconformista, planejar fuga, juntar dinheiro para comprar a liberdade. Esse escravo não é livre, porque é escravo. Outro escravo, a seu turno, poderia também estar de acordo com a própria situação e elogiar muito o seu dono, dar sempre razão a ele. Caminhar para o tronco tranquilo, porque o senhor sabe o que faz. Tomar chibatadas cônscio de que aquilo era para o bem dele. Esse escravo não é livre, e além disso é passivo.
Mas se quisermos reduzir tudo à liberdade, podemos. Diríamos então que um escravo tem liberdade de espírito; o outro, não. No fim, é essa a liberdade que interessa a Bernanos. Tanto é que assim continuava: “O Estado os dispensa um pouco a cada dia da preocupação de dispor de sua própria vida, esperando o dia próximo – que já chegou para milhões de homens – sim, para milhões de homens agora neste instante – em que os dispensará de pensar. Afinal, a questão: liberdade, para quê? é colocada pelo Estado moderno a seus cidadãos, quero dizer, àqueles que lhes pagam impostos, porque em quase todo lugar o pagador de impostos tomou o lugar do cidadão: ‘Liberdade, para quê? Para quê, seus imbecis? Deem-me um pouco mais de tempo, trabalhem firmes, e logo vou cuidar totalmente de vocês, vou proteger vocês contra todos os riscos (exceto contra a perda de liberdade, claro), vou casar vocês, vou criar os filhos de vocês, o que mais vocês podem querer? Liberdade, para quê? Se serei eu que vou até ter o trabalho de pensar por vocês, posso ser livre no lugar de vocês.”
Exagero?
Mas aí, claro, há aquela frase de efeito que leio e penso que é exagero: o “homem livre [será] uma espécie de monstro considerado perigoso pela coletividade inteira, […] cuja existência na sociedade futura será tão insólita quanto a presença atual de um mamute nas margens do Lago Léman”. Penso que é exagero até me lembrar do começo da pandemia, quando gente sem máscara era tida como caso de polícia e o uso da força era louvado por progressistas. Sair sem máscara, não pode. Ir trabalhar, não pode. Tomar uma cerveja com amigos, não pode. Faz do homem um pária. Mas usar crack no meio da rua, pode.
Pensando bem, faz tempo que, segundo a opinião progressista, o homem não tem uma porção de direitos – direito a contar piada, a dar cantada, a ter uma arma dentro de casa – mas tem todo o direito de ficar muito louco no meio da rua fumando crack. Se o policial mexer, errado está o policial.
Ora, não é segredo pra ninguém que cracudo rouba pra financiar o vício. Que cracudo tem surto psicótico e pode ferir outrem. Que quem lucra com o crack são as ditaduras das favelas brasileiras e da Venezuela. Que o tráfico custa “vidas negras” e tantas outras. Existe ser menos livre que um usuário de crack? E, no entanto, eles são os que têm toda liberdade.
Eles têm toda liberdade porque servem à perfeição aos negacionistas da liberdade humana. Os negacionistas acham que os homens são seres que andam sobre trilhos pretederminados e que o estado de degradação ao qual aqueles homens se conduziram é uma prova cabal de que os trilhos da sociedade estão ruins, porque nada senão tais trilhos levariam os homens até ali. Por isso, não há nada de errado com eles. São frutos do meio e ainda fazem o favor de mostrar que o meio é ruim. A sociedade precisa de bons burocratas para ajeitá-la, consertar os trilhos de todo mundo.
Certo é o cracudo. Errado é você, que quer ir trabalhar quando os burocratas dizem que não. Você é o monstro livre, o genocida de vontade espontânea. Um mamute à beira do Tietê. O cracudo é vítima da sociedade.