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Imagine nascer, em pleno século 21, em um país em que seu futuro já está traçado desde o berço. Não é possível escolher onde morar, nem que curso estudar, muito menos com quem se casar. Caso seus pais, avós ou bisavós tenham mantido atividades consideradas antipatrióticas em algum momento do passado, você e todos os outros descendentes deles carregam essa marca e são diariamente lembrados dela. Esse país é a Coreia do Norte.
Segundo um relatório do Comitê por Direitos Humanos na Coreia do Norte, existem ali três categorias de cidadãos: a classe principal, os vacilantes e os hostis. A primeira é formada por famílias com origem entre proletários, camponeses sem posses, membros de primeira hora do Partido dos Trabalhadores da Coreia, intelectuais comunistas e militares que lutaram contra a Coreia do Sul. Mais de 80% da população da capital, Pyongyang, é formada por essa elite.
Os vacilantes, em geral, são descendentes de antigos pequenos donos de fábricas, pequenos comerciantes, artesãos, fazendeiros com terra própria, intelectuais não alinhados ao comunismo ou simplesmente famílias em que parte dos integrantes lutou a favor da Coreia do Sul., ou simplesmente morou no Japão ou na Coreia do Sul em algum momento da vida. Seguidores do confucionismo também entram nessa categoria, que costuma morar em cidades de porte médio e atuar com cargos de nível intermediário.
Mas não há nada pior do que ser um “hostil”. Basta ser neto ou bisneto de um antigo grande fazendeiro, comerciante ou industrial, ou ter um tio-avô que décadas atrás foi favorável ao Japão ou aos Estados Unidos, ou pertencer a uma família que foi expulsa do partido, muitas vezes por se recusar a abandonar a fé cristã ou budista, para fazer parte de uma categoria que é a mais vigiada, a última a receber alimentos e a primeira a ser convocada para trabalhos perigosos ou pesados. Vagas em faculdades ou fichas de filiação ao partido que controla a nação são vedados.
Conhecido como songbun, o sistema de castas norte-coreano se subdivide em 51 categorias, que se encaixam em cada uma das classes. Por exemplo: caso a pessoa tenha nascido numa família que, na década de 40, perdeu terras, confiscadas durante a reforma agrária forçada, ainda hoje é considerada perigosa e sujeita a vigilância especial.
Ter um familiar que estudou no exterior em qualquer momento do passado exige vigilância constante. Também há categorias mais subjetivas: “aqueles foram preguiçosos a vida toda e causaram problemas” devem ser monitorados de perto, porque podem apresentar comportamento “anti-revolucionário” durante as crises.
Monarquia absolutista
O historiador Leonado Lopes informa que a cultura da região facilita a adesão a estruturas sociais rígidas. “Já existe uma característica de respeito à hierarquia, uma tendência das pessoas a serem submissas a uma classe burocrática que teria a obrigação de cuidar do povo de maneira paternalista”, explica ele.
“A cultura de que existe uma classe dominante, uma intermediária e uma inferior já existia. Quando o comunismo chegou, os mais pobres e os militares que lutavam com os comunistas assumiram esses postos mais elevados”. Nesse contexto, a própria família que governa a Coreia do Norte desde 1948 se comporta como as antigas famílias reais do país.
A diferença, no sistema de castas desenhado pelo líder supremo Kim Il-sung, está na base social das categorias. E os moradores do país sabem muito bem qual é o seu lugar. “A população tem a percepção de que nasceram numa posição e não questionam. As pessoas não pensam nisso, a não ser quando questionadas sobre. Mas fazem piadas sobre outros grupos e evitam casamentos com castas inferiores”, diz o historiador.
Essa estrutura funciona sem maiores contestações, afirma Lopes, porque os líderes que contam com os maiores privilégios são os mesmos que controlam as armas. “Um terço da população masculina da Coreia do Norte é militar. E esse efetivo não quer abrir mão de seus privilégios”.
Testemunhos concretos
O governo norte-coreano nega que exista um sistema de castas no país. Mas os relatos que confirmam a imposição do songbun são numerosos. “A Coreia do Norte é dividida em três classes”, já declarou, por exemplo, Thae Yong-ho, ex-embaixador da Coreia do Norte em Londres, que desertou. “Elas são designadas para as pessoas no nascimento e definem a educação, a moradia, as oportunidades de trabalho e os casamentos. As pessoas não podem casar com outras, de outras classes”.
O ex-embaixador estima que a segunda classe seja composta por 55% da população e a terceira, de 20% a 25%. Os demais 20% a 25% formam a elite, que tem acesso inclusive aos mais altos postos das Forças Armadas – quando um homem da terceira classe é convocado a participar do Exército, ele não tem sequer acesso a armas, nem a treinamento, apenas faz trabalhos pesados.
A Comissão de Inquérito para a Coreia do Norte, organizada pela Organização das Nações Unidas, realizou, ao longo de 2013, uma série de audiências com norte-coreanos que conseguiram fugir do país. Ouviu dezenas de testemunhos que comprovam a existência das castas. Também Comitê por Direitos Humanos na Coreia do Norte faz um esforço no sentido de coletar e denunciar informações a respeito da ditadura que vige no país.
“Na Coreia do Norte, tudo estava relacionado ao passado da pessoa. Na família da minha mãe havia pessoas que tinham morado no Japão, e parentes do meu marido haviam vivido nos Estados Unidos, o que significa que nós temos um passado ruim”, contou, por exemplo, Seo Jeong-sim.
Por sua vez, outra refugiada, Young-hui Park, relatou: “Meu pai era da Coreia do Sul, então era difícil para mim conseguir me casar. Os homens de Pyongyang que recebiam mais comida eram considerados os maridos mais desejáveis, mas ninguém queria casar comigo por causa do meu passado familiar”.
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