“Lamento que recursos públicos sejam desperdiçados em estudos sobre o efeito de moléculas ilusórias sobre qualquer enfermidade, inclusive a adição à cocaína”. Assim o biólogo Beny Spira, livre-docente do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, reagiu à notícia de que a prefeitura do município catarinense de Itajaí, a Universidade do Vale do Itajaí (Univali) e o Ministério da Saúde decidiram patrocinar um estudo sobre o uso de homeopatia no tratamento de viciados em crack, chamado CocaCrack3.
Anunciado originalmente em 2017, mas lançado de modo oficial no fim do ano passado, o CocaCrack3 pretende determinar se preparados homeopáticos à base de folha de coca podem reduzir a “fissura”, o desejo intenso do viciado pela próxima dose de droga.
O problema, apontado na menção de Spira a “moléculas ilusórias”, reside no fato de que as diluições homeopáticas são tão extremas que, na maioria das vezes, torna-se impossível detectar qualquer traço do suposto princípio ativo no preparado final.
O CocacRack3 se baseia num estudo que usou seguidas diluições “Q”, onde uma parte do material-base é diluída em 150 mil partes de solvente. A partir da quarta diluição “Q” sucessiva, a probabilidade de haver uma única molécula originada das folhas de coca no líquido que será usado para elaborar os medicamentos entregues aos pacientes é, para todos os efeitos práticos, zero.
“Temo que o CocaCrack3, se for financiado, não forneça elementos para definir atividade dos medicamentos preparados com extremas diluições das drogas. E vemos, mais uma vez, o pouco dinheiro do SUS sendo desperdiçado com este tipo de coisa”, comentou o médico infectologista Jacyr Pasternak, um dos principais pesquisadores da área médica no Brasil.
Baixa mundial
À ausência de plausibilidade científica da homeopatia – qual o sentido de tratar pacientes com medicamentos que são quimicamente idênticos a água limpa? – somam-se diversos estudos que mostram que tratamentos homeopáticos são, de fato, inúteis, e que vêm sendo levados em conta na formulação de políticas públicas em diversas partes do globo.
Uma grande revisão da informação científica disponível sobre o tema, realizada por autoridades australianas em 2015, concluiu que “não existe condição de saúde para a qual haja evidência confiável de que a homeopatia é eficaz”.
Nos últimos anos, o NHS, sistema de saúde pública da Inglaterra, vem cancelando o financiamento de tratamentos homeopáticos, por considerá-los desperdício de verbas públicas. A Espanha prepara-se para seguir o mesmo caminho, e nos Estados Unidos, órgãos de defesa do consumidor exigem uma rotulagem específica para esses medicamentos, deixando claro que se baseiam em princípios contrários à ciência moderna.
Situação local
No Brasil, a prática foi reconhecida como especialidade médica pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), em 1980, e como especialidade farmacêutica pelo Conselho Federal de Farmácia (CFF), em 1993. A homeopatia faz parte do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC). A PNPIC é uma política pública do Ministério da Saúde de estímulo a práticas alternativas de saúde.
Esse respaldo formal-burocrático do Ministério e dos órgãos de classe aparece entre os principais pontos citados, tanto pela prefeitura de Itajaí quanto pela Univali, quando surgem questionamentos a respeito do envolvimento dessas instituições no CocaCrack3.
“A secretaria de Saúde de Itajaí acredita que o tratamento homeopático será uma alternativa para deixar o vício com a redução dos efeitos da abstinência”, afirma nota enviada à reportagem pelo município. Diz ainda o comunicado:
“Itajaí conta, desde 2008, com um Centro de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde (CEPICS), no qual são oferecidos recursos terapêuticos para a população através do SUS, como homeopatia, acupuntura, do-in e lian gong. Essa estrutura tem cadastrados 7.278 usuários, o que demonstra a boa procura e a aceitação do serviço”.
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A secretaria de Saúde prossegue: “Assim como o Brasil, por meio da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde, o município também tem incentivado a ampliação desses recursos, em especial na Atenção Básica, pois acredita que deve-se buscar novas formas de promoção da saúde, do autocuidado e do bem-estar físico, mental e social”.
A farmacêutica e pesquisadora da Univali Noemia Liege Bernardo, que participa da coordenação do CocaCrack3, declarou que “A Univali vem seguindo o eixo de formação das políticas públicas nacionais, em que a homeopatia é um dos pilares. Assim, seu papel social é fortalecer e avaliar a políticas públicas propostas e em casos negativos propor novos modelos. Neste caso, é o que este projeto se propõe”.
Os estudos
Como o nome sugere, o CocaCrack3 representa a terceira etapa do estudo do uso de preparados homeopáticos contra a “fissura” em cocaína.
As etapas anteriores – conduzidas na cracolândia paulistana e, depois, na cidade de São Carlos (SP) – são descritas em uma síntese assinada por Noemia Bernardo pelo pesquisador responsável, Ubiratan Adler. Adler também é autor do artigo científico, publicado no Journal of Integrative Medicine (JIM), que descreve e discute a etapa CocaCrack2, conduzida em São Carlos, e que teria produzido resultados encorajadores.
O artigo no JIM chamou atenção de Edzard Ernst, médico e cientista alemão, radicado no Reino Unido, que durante 20 anos ocupou a cátedra de Medicina Complementar da Universidade de Exeter. Ernst, que já publicou inúmeros estudos e artigos críticos à homeopatia, não teve uma boa impressão do trabalho brasileiro. Ele menciona, em sua crítica, a alta taxa de desistência dos voluntários. De acordo com ele, se esse fator tivesse sido levado corretamente em conta na análise estatística dos dados, os resultados teriam sido negativos.
A síntese, enviada à reportagem pela secretaria de saúde de Itajaí e pela Univali, reconhece a fragilidade dos resultados obtidos nas etapas anteriores. “Os resultados do estudo Cocacrak-2 podem ter sido frutos do acaso? Sim. A baixa adesão pode ter criado algum direcionamento (viés) a favor da Homeopatia. Como saber? Por meio de um estudo confirmatório, usando estratégias para melhorar a adesão, dentro das políticas do SUS.”, diz o texto, que conclui: “Valerá o investimento de recursos públicos? Só o tempo poderá dizer.”
As autoridades de Itajaí argumentam, na nota da secretaria de Saúde, que “há grandes diferenças em relação aos estudos realizados anteriormente” sobre o assunto. “No CocaCrack3, os 120 dependentes químicos de crack e cocaína recrutados para o estudo serão tratados em cinco unidades básicas de saúde, que possuem um maior vínculo com a comunidade e podem facilitar a adesão do usuário ao tratamento. Com isso, após sair da fase aguda da dependência, o usuário poderá dar continuidade ao tratamento na rede pública municipal”.
Beny Spira, da USP, tem uma visão menos otimista. Para ele, não é preciso esperar – nem gastar dinheiro público – para responder à questão colocada na síntese. “A resposta é um claro e sonoro não. Como posso dar uma resposta tão definitiva? É simples: a homeopatia tem tanta probabilidade de funcionar como uma máquina de moto-perpétuo. Ambas as invenções, a homeopatia e o moto-perpétuo, desafiam leis da ciência plenamente estabelecidas. Seria como tentar provar que a Terra é chata, ou que 2+2 = 5”.
“A pesquisa clínica na medicina convencional prima pelo rigor estatístico e metodológico. Em contraste, os estudos preliminares mencionados no artigo sofrem do problema recorrente nos testes de terapias alternativas: baixo rigor e pequeno número de amostragem”, assinala.
Jacyr Pasternak, ao mesmo tempo em que elogia a integridade dos envolvidos nos estudos CocaCrack, por reconhecerem a fragilidade dos resultados obtidos até agora, também não espera avanços revolucionários nesta terceira etapa.
“Alguns pacientes dizem que se beneficiaram do medicamento. Isto e efeito placebo são a mesma coisa: quando qualquer medicamento homeopático se submete a um estudo duplo cego randomizado, os resultados são inevitavelmente os mesmos, ou seja, os resultados dos medicamentos são iguais aos dos placebos”, aponta.