Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
sociedade

Cidade paga “bolsa-bandido” para manter jovens longe do crime. Entenda 

Para receber o dinheiro, não basta apenas não cometer crimes. É necessário cumprir uma lista de metas que inclui, por exemplo, parar de suar drogas, voltar a estudar, tirar carta de motorista, ajudar algum membro idoso da família, e conseguir um emprego | Reprodução
Para receber o dinheiro, não basta apenas não cometer crimes. É necessário cumprir uma lista de metas que inclui, por exemplo, parar de suar drogas, voltar a estudar, tirar carta de motorista, ajudar algum membro idoso da família, e conseguir um emprego (Foto: Reprodução)

Pense na violência como uma doença. Ela surge em regiões específicas do corpo (ou, no caso, em determinadas áreas de uma cidade) e se alastra a partir daí. É possível neutralizar seus agentes causadores, que, em geral, são homens jovens que vivem em bairros dominados pelo crime organizado. Mas não é necessário neutralizar matando, ou colocando na cadeia, até porque geralmente os mesmos jovens também são vítimas. É possível curar essas pessoas, dando a elas novas oportunidades de estudo e carreira. E, assim, recuperar o corpo todo. 

Dezenas de programas de redução da violência e da criminalidade trabalham com esses pressupostos: em vez de operações policiais massivas e agressivas, ações pontuais junto a pessoas selecionadas. Há pelo menos 20 anos cidades americanas como Chicago, Boston, Nova York e Detroit mantêm programas que investem na abordagem dos indivíduos específicos que fazem parte de um ciclo vicioso: eles crescem em lugares violentos, perdem amigos e familiares em situação violenta e acabam envolvidos em atividades violentas que fazem outras pessoas perderem amigos e familiares. 

Richmond, na Califórnia, também tem uma iniciativa desse gênero. Com uma diferença: ali, parte da recuperação consiste em dar dinheiro para jovens de comportamento agressivo reorganizarem sua vida. É isso mesmo: a cidade paga para possíveis bandidos não cometerem crimes. 

Os valores partem de US$ 300 e chegam a um teto de US$ 1000. São concedidos por nove meses seguidos, no máximo, para os jovens que participam do programa e não se envolveram em confusão por seis meses. E mais: neste período, os garotos são orientados por ex-criminosos – é um dos poucos empregos do mundo em que ter ficha policial é pré-requisito. Eles comunicam a experiência de quem já passou por problemas parecidos até encontrar um caminho de reabilitação. Um dos instrutores, por exemplo, é James Houston, que cumpriu 18 anos de pena por duplo homicídio. 

Resultados expressivos 

O programa gera polêmica nos Estados Unidos. Em 2016, Washington anunciou que adotaria uma iniciativa parecida, mas voltou atrás porque a ideia encontrou resistência ferrenha do prefeito. Sacramento, Toledo, Los Angeles e Filadélfia ainda observam Richmond com atenção, sem começar seus próprios programas. 

A insegurança é razoável. Por enquanto, além da cidade californiana, a ideia só foi aplicada uma vez, e por apenas poucos anos, em Baltimore, a partir de 1972 e até que um novo prefeito cancelou a iniciativa por não concordar com as mesadas. Mas a questão é que, por mais difícil que seja aceitar a iniciativa, ela parece estar funcionando: os índices de homicídio de Richmond vêm caindo. Em 2014, chegaram a 11, o menor número em quarenta anos, uma queda de 77% em relação a 2007. O total tem se mantido na média de 15, contra 47 há dez anos

Pode-se alegar que Richmond pode ter alcançado tal avanço porque, nos últimos anos, também reorganizou suas delegacias e instituiu o policiamento comunitário. Além disso, a crise econômica americana diminuiu e a população envelheceu. Mas Oakland, outra cidade californiana marcada pelos assassinatos, também mudou a estrutura da força policial, passou pelas mesmas mudanças econômicas e demográficas, e ainda assim não atingiu os mesmos resultados. Parece mesmo que pagar pela paz compensa. Ou, pelo menos, é um recurso útil de prevenção, que funciona em paralelo ao trabalho da polícia. 

Na verdade, a iniciativa é mais complexa do que simplesmente dar dinheiro para jovens ficarem quietos. Os garotos também participam de atividades variadas, que incluem desde tratamentos de controle de raiva e conversas com mães de jovens assassinados até visitas a campi universitários e a outras cidades. 

Alguns dos jovens já foram à Disney, a Washington, ou mesmo ao México, à Arábia Saudita e à África do Sul. Membros de diferentes gangues viajam juntos e assim têm a oportunidade de se conhecer melhor. 

Além disso, para receber os US$ 1000 mensais, não basta apenas não cometer crimes. É necessário cumprir uma lista de metas, estabelecidas caso a caso, mas que inclui, por exemplo, parar de suar drogas, voltar a estudar, tirar carta de motorista, ajudar algum membro idoso da família, conseguir um emprego. “Nossa ação é baseada em práticas tradicionais, de eficácia comprovada, como o contato pessoal nas ruas, o trabalho com conselheiros e a terapia”, diz o idealizador da iniciativa, DeVone Boggan. “O resultado é uma redução significativa da violência urbana com armas de fogo”. 

Iraque na Califórnia 

A Operação Peacemaker começou a partir de 2007, quando a cidade estava em pânico. Com pouco mais de 100 mil habitantes, era a 9ª mais perigosa para se viver nos Estados Unidos. Nada parecia funcionar. Os políticos locais a comparavam a viver no Iraque. Em setembro de 2006, por exemplo, um homem levou um tiro no rosto durante o funeral de um adolescente que havia sido morto a tiros. Foi quando a comunidade aceitou contratar DeVone Boggan. Ele criou um departamento municipal, o Office of Neighborhood Safety, para sustentar a operação. 

Se decidiu dedicar sua vida a recuperar jovens, é porque DeVone foi um deles. Nascido em Michigan, chegou a ser detido por tráfico de drogas. Dois conselheiros o ajudaram a mudar de vida. “Foram pessoas mais velhas, que se interessaram por mim e investiram tempo, energia e recursos”, o ativista conta. “Eles viram algo positivo em mim num momento em que muitos outros não viam, nem mesmo eu”. O jovem acabou por cursar direito na Universidade da Califórnia-Berkeley. Um de seus irmãos se tornou treinador de futebol americano. Outro, Dhanthan, morreu assassinado em agosto de 2008. 

DeVone já estava envolvido com iniciativas contra a violência (era diretor de uma consultoria da área em Oakland) e havia acabado de começar o trabalho em Richmond quando chegou para o enterro e os amigos disseram que sabiam quem eram os culpados pela morte de Dhanthan. “A polícia não vai fazer nada. Se você quiser, podemos nos vingar deles”, afirmaram. O ativista teve que manter o autocontrole e dizer não. Foi embora da cidade rápido, antes que mudasse de ideia e deixasse o desejo de vingança falar mais alto do que seus ideais. 

Nos primeiros dois anos em Richmond, DeVone criou um sistema de ronda nos bairros violentos. Em 2008, os homicídios caíram para 27. Mas, em 2009, chegaram a 47 de novo. Foi quando ele, contando com a consultoria do especialista em criminologia Barry Krisberg, desenvolveu o formato atual do programa, com os conselheiros com ficha criminal e o pagamento de mensalidades. 

Dessa vez, o trabalho começou com uma análise dos arquivos da polícia. DeVone concluiu que, da cidade inteira, havia 17 jovens suspeitos de terem participação em 70% dos 47 homicídios de 2009. Começou então a pesquisar a vida um a um, para conhecer seus hábitos antes de fazer o primeiro contato. O trabalho demorou três meses. Neste meio tempo, a equipe descobriu que o número era maior: 28 suspeitos de envolvimento, ainda que sem provas contra eles. 

Antes mesmo do primeiro contato, três deles já tinham sido assassinados. Dos 25 que sobraram, 21 toparam conversar. Todos homens, com mais de 16 e menos de 26 anos. Começava assim a nova etapa do programa. Até hoje, foram convidados 93 garotos, dos quais 84 aceitaram. Nenhum desistiu durante os 18 meses de programa, que custa US$ 3 milhões anuais, divididos meio a meio entre a prefeitura e a iniciativa privada. 

Críticos e defensores 

Em outubro de 2011, dois grupos de jovens, de gangues rivais, chegaram ao Office of Neighborhood Safety ao mesmo tempo. Começaram a se agredir logo no estacionamento. Algumas fraturas (mas nenhuma morte) depois, todos fugiram. DeVone se recusou a fornecer qualquer tipo de informação à polícia sobre o incidente. Diz que foi neste dia que ganhou a confiança dos jovens. Desde então, mantém a política: não colabora com dados, nem obriga seus jovens a testemunhar contra ou a favor de ninguém. 

Os críticos da iniciativa são muitos. “Concordo com a ideia de focar as ações nos indivíduos com maior risco de cometer atos violentos ou se tornar vítima de crimes. Mas acredito que existem ações mais eficazes do que o pagamento aos participantes”, diz John Roman, professor da Universidade de Chicago e especialista em violência urbana do Urban Institute, de Washington. 

Para ele, fornecer educação e treinamento profissional não deixa de ser uma forma de investir nos garotos, mas funciona melhor. “Pequenas mesadas por um curto período de tempo não dão conta de mudar o comportamento no longo prazo.” Também é comum que programas desse tipo sejam obrigatórios e voltados para os jovens que estão em condicional. Em Richmond, é voluntário. O jovem pode sair quando quiser. 

Mas DeVone tem seus defensores. Uma entidade dedicada ao problema, a National Council on Crime & Deliquency, publicou em julho de 2015 um levantamento a respeito do impacto do programa de Richmond. Identificou que, das 68 pessoas que participaram até 2014, 66 eram negros, 30 tinham filhos e 14 já tinham sido baleados. Entre os 68, 54 se mantiveram longe de problemas com a lei. Quatro morreram baleados. 

Será que o programa funcionaria em cidades maiores? Mesmo no Brasil? DeVone acredita que sim: “Desde que replicado na escala apropriada e com fidelidade ao programa, pode funcionar até mesmo em cidades com o tamanho e os problemas do Rio de Janeiro.”

Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Principais Manchetes

Receba nossas notícias NO CELULAR

WhatsappTelegram

WHATSAPP: As regras de privacidade dos grupos são definidas pelo WhatsApp. Ao entrar, seu número pode ser visto por outros integrantes do grupo.